A Constituição dos Estados Unidos tem uma excepcional preocupação com os direitos de propriedade intelectual. Tão excepcional que, antes das Emendas, a única ocasião em que aparecia uma referência explícita a direitos individuais era esta: “O Congresso terá o poder […] de promover o Progresso da Ciência e das Artes práticas, assegurando, por tempo limitado, aos Autores e Inventores o Direito exclusivo sobre seus respectivos Escritos e Descobertas.” A ideia dos redatores da Constituição, explica Robert Nisbet, era que, “no sentido de gerar ou promover a prosperidade e o bem-estar dos norte-americanos, não havia nada mais importante do que assegurar a criatividade da mente humana.”
Os EUA são mais o país das patentes do que o país dos direitos inalienáveis. Os direitos inalienáveis não raro servem para empurrar coisas com patentes. Um exemplo disso é a indústria farmacêutica, que primeiro usa dinheiro público para se desenvolver, depois cria patentes privadas e obriga o Estado (nos EUA e onde mais der) a pagar pelos medicamentos patenteados. O caso das patentes de remédios mostra que a história é muito mais complexa do que gostariam de dizer os liberais do Twitter; afinal, o criador de uma patente tem o interesse em eliminar a concorrência de medicamentos sem patente, ou com patentes mais baratas. A situação mais fácil de isso ocorrer é com o uso off label de medicamentos antigos que perderam a patente – como a ivermectina para covid, por exemplo. Quanto aos conflitos entre os interesses dos laboratórios e da saúde pública, eu recomendo os artigos de Paula Schmitt, que costuma desse assunto em seus textos (como este sobre os opioides e este sobre o PrEP).
Junto com a indústria farmacêutica, a informática se abilita a constituir um império global de patentes norte-americanas. O ungido número 1 para essa missão foi Bill Gates.
O corpo político dos EUA não tem nem 300 anos, e sua hegemonia no mundo ocidental ainda não completou 100 anos. Assim, podemos dizer que toda essa ordem que os liberais exaltam é experimental e vem lutando para resistir ao teste do tempo. Sem dúvida é uma ordem mais exitosa que o comunismo; mas também está longe de alcançar a estabilidade milenar do feudalismo e do Império Romano, que a precederam. A Espanha não teve uma hegemonia milenar, mas sua ascendência global durou bem mais do que cem anos.
Mas vamos ao assunto prometido, que é o da informática. Junto com a indústria farmacêutica, a informática se habilita a constituir um império global de patentes norte-americanas. O ungido número 1 para essa missão foi Bill Gates. A despeito de toda a retórica do self made man que o American way tanto prega, William Henry Gates III não é um mero aluno que largou a faculdade e aparentava estar fadado a se sair mal na vida. Ele tem uma senhora árvore genealógica ligada a bancos dos Estados Unidos, e, como lembra Flávio Gordon, é filho de um ex-diretor da Planned Parenthood – que é uma paraestatal do governo dos EUA. Aliás, não é de estranhar que uma pessoa tão importante na oligarquia daquele país termine por reunir os dois pilares das patentes: a informática (com o Windows) e a indústria farmacêutica (com “filantropia” de “controle de natalidade” e “vacinação”).
Na virada dos anos 80 para 90, parecia que a Microsoft, de Bill Gates, seria a única opção para computadores domésticos, detentora de um monopólio de sistemas operacionais. Todos os computadores de escritórios e casas, ao menos no mundo ocidental, tinham tudo para ser um monopólio da empresa de Bill Gates. Como isso fere a combalida lei antitruste, a empresa foi processada pelos Estados Unidos na virada do século, mas deu em nada.
Houve, porém, uma reviravolta que impediu esse monopólio de se tornar realidade: ninguém previu que um punhado de estudantes do MIT quisesse criar tecnologia sem patente. A figura de liderança nesse processo foi Richard Stallman. Em 1983 ele começou o projeto de fazer um sistema operacional com código aberto e livre, o GNU. De onde ele tirou esse nome? Stallman queria fazer um sistema operacional parecido com um chamado Unix, que tem patente, usando engenharia reversa. Ele queria fazer, portanto, um sistema Não Unix. Acrescentando a letra G à frente, tem-se GNU, que significa “GNU Não é Unix” e é um acrônimo recursivo. O símbolo do projeto é o gnu que ilustra este texto.
A criação do sistema operacional foi coletiva e não tinha interesses pecuniários. Foi, em grande medida, obra de estudantes. Para estudar, é preciso ter acesso ao código; e, uma vez que você tenha criado um código e queira melhorá-lo, é preciso que as pessoas saibam que aquele é o seu código e que é com você que elas devem falar sobre ele. Ora, no sistema de patentes ao estilo Gates, o código é segredo comercial e não dá para estudá-lo, exceto como exercício de engenharia reversa. Stallman gosta de usar a culinária como metáfora: códigos são como receitas, programadores são como cozinheiros, e ambas as classes gostam de trocar receitas para se aprimorar. Assim, a sociedade como um todo se beneficia do aprimoramento do conhecimento. E por isso é preciso que os códigos não sejam segredos comerciais guardados a sete chaves.
Ninguém previu que um punhado de estudantes do MIT quisesse criar tecnologia sem patente. A figura de liderança nesse processo foi Richard Stallman.
Por isso, em 1985, Richard Stallman publica o Manifesto GNU que lança as bases para criar a Licença Pública Geral GNU, conhecida pela sigla em ingês “GNU GPL”. A primeira versão da licença foi lançada em 1989, e pode ser lida aqui. A licença GNU tem uma patente porque a lei obriga, mas já na primeira linha se lê: “Todos podem copiar e distribuir cópias verbatim deste documento, mas não podem alterá-lo.” A dona da patente dessa licença é a Fundação do Software Livre (FSF, na sigla em inglês), criada por Stallman. E a licença patenteada pela FSF deveria ser usada gratuitamente por quem quisesse.
No começo, era expressamente voltada para programadores, como se pode ver pelo começo da cláusula 1: “Você pode copiar e distribuir verbatim cópias do código fonte do programa tal como o recebera, desde que…”.
Graças a essa possibilidade de ser reconhecido pelo trabalho sem precisar pensar em dinheiro, um jovem cidadão finlandês da minoria étnica sueca, chamado Linus Torvalds, registrou sob a Licença GNU (versão 2) o Linux, um núcleo de sistema operacional tipo Unix – era tipo Unix, mas, tal como o GNU, não é Unix. Isto aconteceu em 1991, quando Torvalds tinha 22 anos. Stallman tinha 38 anos à época, e o núcleo era justamente o que ele e sua equipe não conseguiam desenvolver. Em 1991, portanto, surgiu a primeira alternativa ao Windows, o GNU/Linux, popular e erroneamente conhecido como Linux.
As pessoas cometem esse erro porque o GNU/Linux, diferentemente do Windows ou do iOS (da Apple), não designa um sistema operacional específico, mas sim uma espécie de árvore genealógica. Se cada programador (ou equipe de programadores) é livre para aprimorar o trabalho alheio, o natural é que os sistemas operacionais vão se sucedendo uns aos outros. Os espécimes dessa árvore genealógica se chamam “distribuição”, ou “distro”. Eu, por exemplo, uso o Debian. Os novatos costumam usar o Mint, que é “filho” do Ubuntu, que é “filho” do Debian. Isso não quer dizer que o Debian seja um sistema parado no tempo: eu uso o Debian 12; tal como o Windows, as distribuições GNU/Linux vão tendo novas versões. É outro tipo de evolução: os sistemas mais velhos podem se renovar enquanto dão origem a sistemas mais novos, que, a seu turno, também vão se renovando. Existe demanda por sistemas diferentes porque existem usuários de computador com demandas diferentes. Eu, por exemplo, gosto de sistemas mais enxutos e não me incomodo de gastar um tempo aprendendo coisas novas, como usar linha de comando. O “neto” do Debian, porém, é fácil de usar (não exige linha de comando) e parece Windows.
No mesmo ano em que o GNU/Linux estava pronto para uso educacional, o Brasil assinava a lei de informática. Muita coisa poderia ter acontecido se tivéssemos acesso a computadores e se tivéssemos alguma iniciativa análoga à Embrapa na área. O máximo que tivemos foi a distribuição Kurumin, um “filho” brasileiro já falecido do Debian. Foi coisa de estudante universitário e de entusiastas de computação. Não é da minha época e eu só sei da história por meio de material sobre ela. É exíguo. Aqui vocês podem ver o criador do Kurumin, Carlos Eduardo Morimoto da Silva, falando do projeto ainda em funcionamento.
A GNU GPL foi profícua também fora do mundo da programação. A Wikipédia e seus projetos associados, como Wikimídia, permitem o compartilhamento e a edição gratuitas de imagens, textos e informações, criaram uma licença chamada “Creative Commons” que é baseada no projeto GNU.
Ao que parece, portanto, os Pais Fundadores estavam errados ao supor que o controle da propriedade intelectual estava fundamentalmente atrelada ao conhecimento. Se os hackers liderados por Stallman não hackeassem o sistema de patentes introduzindo o GNU GPL, o desenvolvimento do conhecimento estaria atrasado. E cabe a nós, no Brasil, usar essa liberdade de programar para alcançar a nossa soberania em informática.
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