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WhatsApp: aplicativo que “enfeitiçou” os eleitores para que votassem em Bolsonaro| Foto: Pixabay

Queridos leitores, após ler “Guerra Cultural e Retórica do Ódio: Crônicas de um Brasil Pós-Político” (Caminhos, 2021), de João Cezar de Castro Rocha, concluí que sua interpretação da realidade política brasileira é uma teoria conspiratória embasada em falsidades históricas. Como a minha conclusão é grave, me esmerei em esmiuçá-la tim-tim por tim-tim. Por isso a resenha ficará grande demais para caber em um artigo só e terá de aparecer em fatias.

João Cezar de Castro Rocha é professor de literatura da UERJ e editor da obra de José Guilherme Mequior pela É Realizações. Merquior, como se sabe, era um polemista liberal de primeira e uma pedra no sapato da esquerda universitária. A É Realizações foi fundada por egressos do círculo de Olavo de Carvalho. A junção Merquior + É Realizações fez com que João Cezar travasse relações com a nova direita e se acreditasse conhecedor do assunto.

Ao cabo, é interessante vermos como, mesmo com amplo acesso à nova direita, suas crenças esquerdistas genéricas o impedem de enxergar o que tem diante do nariz. A teoria comum da esquerda sobre o momento atual é a teoria conspiratória do Golpe do Zap-Zap, segundo a qual Bolsonaro enfeitiçou seus eleitores por meio do WhatsApp. O Prof. João Cezar é, nesse quesito, um esquerdista típico. Será interessante ver como ele mobiliza todo o seu atípico convívio com a direita para embasar sua típica teoria conspiratória.

Comecemos com sua dificuldade em lidar com fatos.

Doutrinação na escola não é fake news

É tão controvertido assim que existe doutrinação nas escolas? Para responder a isso, basta perguntar como seu professor de história lhe apresentou Cuba e a Guerra do Paraguai. Se você não é idoso, eu aposto que você ouviu que em Cuba há saúde e educação de qualidade para todos. Os Estados Unidos são os vilões que punem esse regime tão bom com embargos econômicos. Na Guerra do Paraguai, o papel de vilão fica para a Inglaterra. O Paraguai era um lugar plenamente alfabetizado que ia se tornar a nova potência mundial, quando a Inglaterra, não suportando o desafio ao seu poderio, mandou os bobalhões do Brasil, Argentina e Uruguai destruírem a potência nascente. O elogio a Cuba dispensa comentários.

Quanto à Guerra do Paraguai, essa versão foi inventada pelo historiador argentino León Pomer, que fugiu da ditadura de direita de lá e veio para o Brasil. Aqui, sua tese foi copiada pelo autodidata Júlio Chiavenato, que, ainda na época da ditadura, fez um livro didático dizendo que o Brasil tinha perpetrado um genocídio contra o Paraguai. Aí hoje as pessoas nem sabem que Solano López começou a guerra invadindo o Brasil pelo Mato Grosso.

Esses são os exemplos de doutrinação esquerdistas mais antigos, creio eu. Mas para saber se há doutrinação hoje, o expediente elementar e acessível a qualquer um, sem nem precisar filmar professor, é consultar livros didáticos aprovados pelo Plano Nacional. Fernando Schüler fez isto em 2018 e concluiu que “o viés ideológico é claro e brutal”. Cito-o:

“Exemplo rápido: FHC é um desastroso neoliberal (‘apesar de tentar negar’), que vendeu nosso patrimônio em meio a ‘denúncias e escândalos por todos os lados’, e Lula, o primeiro presidente ‘que não é da elite’. Seu governo foi acusado de um certo ‘mensalão’ amplamente explorado pela ‘imprensa liberal’. É só um aperitivo. Está tudo lá. O problema é real. Parte de nossa elite intelectual não se importa com isso simplesmente porque concorda com o viés político. Inclui-se aí boa parte da academia. Outro tanto não concorda muito, mas não quer se incomodar. Gente que descobriu o óbvio: o melhor jeito de escapar da patrulha ideológica é concordar com ela, ou ao menos fazer de conta.”

O problema da ideologização é debatido por gente séria e sem qualquer relação com as direitas ditas bolsonarista ou olavete. Além de Fernando Schüler, vale ver o “Escola Partida”, do Prof. Ronai Rocha (UFSM), provavelmente o maior nome da Filosofia brasileira voltado ao ensino básico. E isso não é um juízo pessoal; ele é o autor óbvio nas bibliografias sobre filosofia no ensino médio. Pois bem: “Escola Partida” se dedica ao exame das queixas fundamentadas e das reivindicações em grande parte legítimas do movimento Escola Sem Partido.

Crença independente da experiência

Mas, a acreditarmos em João Cezar de Castro Rocha, Fernando Schüler e Ronai Rocha devem ser vítimas de uma complexa rede que inclui Olavo de Carvalho, o Brasil Paralelo, o Orvil e o messianismo evangélico, que, por meio do WhatsApp, abduzem até as pessoas inteligentes e fazem com que reproduzam a “retórica do ódio”, alienadas da “verdade factual”.

Eis o que diz João Cezar à p. 59: “Pouco importa se podemos mostrar objetivamente, por exemplo, que nunca [sic] houve doutrinação na educação pública pelo simples fato de que as competências nessa área, definidas pela Constituição, atribuem tarefas específicas para Municípios, Estados e a União. Não há, portanto, uma instância central capaz de impor uma doutrina de ensino.”

Essa passagem dá a tônica da obra. Em primeiro lugar, há o desconhecimento básico da educação brasileira. Há o Plano Nacional do Livro Didático; há a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional; há a Base Nacional Comum Curricular — que foi fustigada por Demetrio Magnoli quando pretendeu racializar a História. Vê-se portanto que João Cezar é ignorante no que concerne à educação brasileira. Dessa ignorância ele tira uma conclusão radical e simplista que é imune à experiência. Qualquer evidência empírica será rejeitada porque o sistema descentralizado impede tal coisa.

O simplismo do raciocínio é enorme. Eu concordo com Fernando Schüler no que concerne à ideologização esquerdista da educação. Eu até acho que um problema maior do que os documentos nacionais da educação são as faculdades de educação brasileiras, que são descentralizadas em tese, mas na prática são uma guilda de freireanos que se aprovam mutuamente em concursos públicos. Reconheço tudo isso. Não obstante, como a realidade é complexa e os indivíduos são livres, eu jamais diria que nunca houve doutrinação direitista numa sala de aula da escola pública brasileira. Eu tive um colega de faculdade olavete obsessivo que passou em seleção para professor temporário de escola pública. Como vou dizer que nunca um direitista pôde doutrinar em sala de aula? E se o PSOL está abarrotado de historiadores, como eu iria dizer que nunca nenhum deles doutrinou em sala de aula, ainda mais com livros didáticos tão favoráveis à doutrinação esquerdista?

Com ignorância e simplismo João Cezar tira conclusões radicais. Isto é uma constante no livro.

Ideologia de gênero existe

Ele também tem certeza de que a ideologia de gênero não existe e é uma fantasia. As clínicas de gênero que castram quimicamente crianças, amputam os seios de mocinhas e dão hormônios do sexo oposto a adolescentes de ambos os sexos se embasam na teoria de gênero, mas João Cezar já decretou que é tudo teoria da conspiração.

Ele deveria se inteirar do movimento detrans, de gente induzida na adolescência a mudar de sexo, que se arrependeu depois. Deveria se inteirar do seu nome mais importante, Keira Bell, que venceu um processo contra a Clínica Tavistock e mudou a lei do Reino Unido relativa à idade mínima de consentimento para a mudança de sexo. (Keira foi convencida de que era uma menino presa no corpo de uma menina, mas era só uma lésbica.) Ele deveria assistir ao programa 60 minutes com jovens detrans e ver como é fácil um gay deprimido entrar na sala de um terapeuta e sair três meses depois sem o saco escrotal.

Se eu não for repetitiva demais, eu mandaria que lesse “Irreversible Damage”, de Abigail Shrier, especialmente sobre o ensino da teoria de gênero para crianças nos Estados Unidos. Aqui no Brasil, o PSOL tentou usar o STF para incluir aulas de teoria de gênero nas escolas.

A teoria de gênero merece ser chamada de ideologia porque consiste em prescrições sobre como ler a realidade, não num esforço de tentar compreendê-la. Segundo essa ideologia, “homem” e “mulher” não são parte da realidade biológica, mas sim da realidade linguística e cultural. “O homem” é do gênero masculino, assim como “o porta-lápis”. Além disso, o gênero é um espectro cujas extremidades são “homem” e “mulher”, havendo as “pessoas não-binárias” entre uma coisa e outra. Por isso elas precisariam de uma gramática nova, com gênero neutro: porque não são “a mulher” (gênero feminino) nem “o homem” (gênero masculino). Ensinar isso às crianças é o mesmo que doutriná-las para não saber se são meninas ou meninos. Portanto não é de admirar que os casos de disforia de gênero estejam explodindo nos países desenvolvidos.

Mas, segundo João Cezar, a “imaginária ‘ideologia de gênero’ […] desempenhou um papel central nas eleições de 2018; como se sabe, trata-se de uma deturpação deliberada de uma área de estudos iniciada sobretudo nas universidades norte-americanas, os ‘gender studies’.” (p. 38) Os gender studies evoluíram para gender clinics, que mutilam adolescentes. O grosso do “eleitorado evangélico” nem deve saber disso, mas já sabe o suficiente para rejeitar a ideologia. João Cezar, analista político, tinha a obrigação de saber mais do que “o eleitorado evangélico”.

Hannah Arendt se revira no túmulo

Vamos nos colocar no lugar de João Cezar, que acredita piamente que não existe doutrinação esquerdista em escola nem ideologia de gênero. Esta pergunta então se torna premente: por que as pessoas acreditam que tais coisas existam? É esse o pretexto para a teoria conspiratória do Golpe do Zap-Zap, segundo a qual a direita tem o condão de enfeitiçar as massas e fazê-la crer nos maiores absurdos.

O esquerdista se sente como Ulisses amarrado no mastro do navio, o único a ouvir o canto das sereias sem ser seduzidos por elas. Mas ao menos sabemos que Ulisses não foi seduzido por estar amarrado. Por que os esquerdistas acham que só eles são o pináculo da sobriedade é um assunto à parte. Minha suspeita, lendo o livro, é a arrogância que a formação superior traz a algumas pessoas. É como se erudição e títulos acadêmicos trouxessem uma sabedoria superior à do povo sob todos os aspectos.

Assim, basta ele conhecer Hannah Arendt para chamar a mim, a Fernando Schüler, a Ronai Rocha, a Demétrio Magnoli e ao “eleitorado evangélico” de analfabetos ideológicos bolsonaristas. Cito-o: “precisamos resgatar o pensamento de Hannah Arendt acerca da centralidade da verdade factual para encontrar um ponto de equilíbrio entre verdade e política. […] Sem uma dimensão minimamente objetiva, o espaço público se desmancha no ar e a convivência coletiva se torna uma estéril batalha de versões. O analfabetismo ideológico bolsonarista produz um ameaçador caos cognitivo precisamente ao confundir rumor e fato.” (p. 350)

Se há algo sobre o que podemos concordar, é isto: o diálogo é mesmo impraticável quando alguém resolve ignorar fatos por causa de ideologia.

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