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Com a insólita “nota técnica” sobre o aborto, felizmente revogada, creio que tenha entrado no debate brasileiro pela segunda vez o aborto em qualquer período da gestação. A primeira foi em 2022, com o aborto da menina de Santa Catarina grávida de inacreditáveis sete meses.
Num estado avançado de gravidez, o aborto é uma decisão deliberada pela morte de um ser humano formado. Não se trata de tirar um embrião ou feto incapaz de sobreviver fora do corpo da mãe, mas sim de matar o bebê dentro da barriga a fim de que ele venha à luz já morto. Por que não tirá-lo vivo e entregá-lo à adoção?
Como o assunto é deveras macabro, não é de admirar que ele tenha demorado muito a entrar no debate público brasileiro. Vale a pena, portanto, fazer uma breve retrospectiva do debate do aborto em rede social para em seguida apontarmos as suas raízes.
No começo da década passada, o Brasil, recém-conectado às redes sociais, foi inundado pela polêmica da descriminalização do aborto expressa nos seguintes termos: os pró-vida versus os pró-escolha. Os pró-vida consideram que a vida humana começa na concepção, e por isso consideram o aborto um assassinato. Os pró-escolha, por outro lado, costumavam falar do início da formação do sistema nervoso e defendiam o direito ao aborto até os três meses, antes de o feto ser capaz de sentir dor. O CFM endossava essa recomendação e, além de balizar o debate da descriminalização, fixava um prazo para os abortos feitos dentro da lei. É claro que aí o que pesava era o caso de estupro, pois a necessidade de interromper a gravidez por motivos de saúde não implica fazer o aborto. Se uma grávida de sete meses precisa deixar de estar grávida por razões de saúde, ela vai antecipar o parto e rezar pelo bebê na UTI neonatal.
O que tornava a situação dos pró-vida brasileiros espinhosa era a permissão do aborto em caso de estupro, um legado eugenista da Era Vargas (ninguém queria estupradores se reproduzindo). A consequência lógica da posição pró-vida era a proibição também desse aborto. No entanto, desconheço iniciativas robustas de tentar fazer passar essa proibição.
Como o assunto é deveras macabro, não é de admirar que ele tenha demorado muito a entrar no debate público brasileiro
O lado pró-vida sempre atuou na defensiva, no sentido de impedir “avanços” legislativos. Que eu me lembre, a Igreja Católica só entrava em cena (ou só aparecia na mídia) quando, em algum lugar da América Latina, uma criança estuprada ia fazer aborto. Não me parece a estratégia mais eficaz de convencer o público abordar o assunto quando se trata do estupro mais abominável de todos.
Outro problema é que as lideranças da Igreja Católica têm uma relação histórica com a esquerda petista por causa da teologia da libertação. Na década passada, o PT já tinha virado um partido institucionalmente abortista (um bom marco para isso é a punição de Bassuma, então um um destacado petista pró-vida, ocorrida em 2009); mas a cúpula da igreja não fez qualquer oposição séria ao partido. As lideranças evangélicas tampouco fizeram lá grande coisa. Não custa lembrar que as maiores lideranças neopentecostais costumavam instruir seus fiéis, beneficiários de Bolsa Família, a votarem no PT pelo menos no segundo turno. A questão de “costumes” que mais os mobilizava era o casamento gay, e ficava-se numa obsessiva problematização de novelas da Globo, ou outras coisas da cultura pop (filmes da Disney, Harry Potter...).
O lado “pró-escolha”, porém, foi o que mais mudou de lá para cá. Afinal, na década passada ninguém discutia a possibilidade de fazer um aborto voluntário em qualquer período da gravidez. A própria mudança ficou evidente no caso da menina catarinense, quando a autoridade do CFM foi mobilizada pelo lado “pró-vida”. O mesmo CFM mantinha sua posição de dez anos atrás, mas agora ela estava contra os “pró-escolha” da vez. Deve ser a tal da janela de Overton correndo em disparada para o lado da liberalização do aborto.
Dia desses, lendo o novo livro de Norman Finkelstein contra o politicamente correto – I will burn that bridge when I get to it! (Sublation Press, 2023) – deparei-me com uma revisão do mesmíssimo debate, porém passado em 1973 nos EUA. Mais conhecido por causa do antissionismo, nessa obra o cientista político faz uma análise muito profunda da cultura e da academia dos EUA. Nela, vi que a Suprema Corte, em Roe v. Wade (1973), embasou-se filosoficamente no suposto mistério de quando começa a vida, e as posições discutidas eram os extremos “pró-vida”, que consideravam que a vida começa na concepção, e os “pró-escolha”, que, em sua posição purista, consideravam que a vida começa no parto.
Visando incitar ceticismo nos seu leitorado laicista (já que nos EUA a divisão entre homens de ciência e homens de fé é historicamente grande, ao contrário do Brasil), Finkelstein comenta que a liberação do aborto, considerada um progresso inquestionável nos EUA, foi combatida pelo mesmo tipo de gente “atrasada” que era contrária à esterilização forçada por razões eugenistas. Se antigamente o progresso e a ciência estavam do lado dos nazistas e dos eugenistas americanos, mas hoje sabemos que eles estavam errados, o que garante aos atuais progressistas pró-aborto que eles estão “do lado certo da História”? Finkelstein menciona ainda que a “Igreja Católica foi o primeiro bastião nos EUA a se opor a esterilização eugenista, não só por causa de sua oposição ao controle de natalidade, mas também por causa de seu compromisso teológico com a sacralidade de toda vida humana, independentemente da ‘adequação’ eugênica” (p. 40).
Afinal, na década passada ninguém discutia a possibilidade de fazer um aborto voluntário em qualquer período da gravidez
Finkelstein é um comunista ateu, por isso avalia as coisas da perspectiva da História. Nas palavras dele: “O veredito da História é cristalino: aqueles que obedeciam à ciência – os ‘progressistas’ – estavam errados, aqueles que se aferravam à religião – os ‘regressistas’ – estavam certos. O direito de esterilizar dizia respeito à interferência do governo no processo reprodutivo; o direito a abortar diz respeito a impedir a interferência do governo aí. Mas no fim, pode-se dizer que a questão moral é a mesma: a sacralidade da vida humana. Os religiosos se opuseram à esterilização à época e se opõem ao aborto agora, ao passo que os progressistas apoiaram a esterilização à época e apoiam o aborto agora” (p. 40). É curioso notar que o argumento nos EUA para permitir o aborto é liberal e defende a não-interferência do Estado, ao passo que no Brasil a sua popularização deu-se por meio do entendimento de que o Estado tem a obrigação de oferecer aborto às mulheres supostamente estupradas. De casos pontuais a serem resolvidos pelo médico, quiçá por métodos da época de Hipócrates, o aborto passou a ser uma “questão de saúde pública”, como se as mulheres vivessem engravidando de estuprador a torto e a direito. E o SUS virou um baita comprador para a indústria farmacêutica.
Mas não desviemos dos EUA. Finkelstein acusa a Suprema Corte de ter se evadido dessa questão moral premente (a sacralidade da vida humana) em Roe v. Wade (1973), trocando-a pela questão científica. Cito-o: “A decisão […] começa assim: ‘Quando aqueles treinados nas respectivas disciplinas da medicina, filosofia e teologia são incapazes de chegar a algum consenso, o judiciário, nesta altura do desenvolvimento do conhecimento humano, não pode especular a resposta.’ Mas a Corte estava se fazendo de sonsa. Primeiro, salvo por artifício, parece impossível decidir a legalidade do aborto sem se envolver nessa questão irredutível. Segundo, mesmo que só de modo indireto, a Corte fixou uma posição na qual a vida começa. O problema é que essa posição não é nada persuasiva e completamente política. A Corte descartou a posição ‘pró-vida’ de que a vida começa na concepção como ‘rígida’, mas não explicou por que era rígida. Se a vida de fato começa na concepção (o que a Corte alegou não saber), o que poderia haver de ‘rígido’ na oposição a todos os abortos com base em princípios? A Corte descartou, no lado oposto do espectro, a rigidez da posição ‘pró-escolha’ de que a vida começa no nascimento, declarando que cabia ao Estado decidir quando a ‘vida potencial’ começa e protegê-la. Mas isso não é só deslocar a questão decisiva para, por assim dizer, um passo atrás? Se a Corte não sabia quando a vida começava, como, então, ela poderia saber quando a ‘vida potencial’ começava? ‘Potencial’ é uma firula adjetiva de ‘vida’; se o início da vida é uma caixa preta, então o modificador não pode lançar luz alguma; pois, ao que se saiba, a ‘vida potencial’ poderia começar num milésimo de segundo antes do parto. Noutras palavras, a inovação conceitual da Corte de ‘vida potencial’ não dirime, muito menos enfraquece, a posição pró-escolha purista de que, com a vida começando no nascimento, o acesso ao aborto deveria ser irrestrito” (p. 40-42).
Caso vocês estejam se perguntando de onde a Suprema Corte tirou essa “posição purista”, as fontes citadas na decisão são “a crença dos estoicos”, a “atitude predominante, mas não unânime, da fé judaica” e “a posição de um grande segmento da comunidade protestante”. Do jeito que a nova direita vai, é capaz de daqui a alguns anos estar chamando de comunista, nazista e antissemita quem é contra o aborto em qualquer prazo…
Vamos agora a alguns apontamentos. No frigir dos ovos, o debate “pró-vida” X “pró-escolha”, no Brasil, foi uma reprise adaptado de um debate estadunidense da década de 70. Como as redes sociais são geridas pelos EUA, é de se perguntar pelo quão espontâneo foi, ou se não foi plantado. No entanto, dada a formação católica do país, ninguém teve coragem de propor a “posição pró-escolha purista”, e a posição “pró-escolha” padrão acabou sendo a do CFM, coincidente com a proposta mais restritiva de Roe v. Wade.
Norman Finkelstein estava certo quanto ao limite "purista" não ter sido exorcizado; afinal, em 1992 saiu a Planned Parenthood v. Casey, que proibia a imposição de limites temporais ao aborto. Vale apontar que a Planned Parenthood não é uma organização qualquer; tem relações promíscuas com os EUA e pode ser considerada praticamente uma paraestatal que faz lobby do “direito ao aborto” como um “direito humano” a ser espalhado por todo o mundo (como qualquer direito humano). A minha curiosidade é quem diabos vai fazer um aborto aos oito, nove meses. Só penso em alguma psicopata que queira agredir um homem (o pai da criança), ou em alguém que descobriu no feto um traço indesejado muito tarde, ou (mais importante) em alguma drogada disposta a vender feto morto. A indústria farmacêutica é doida por tecidos fetais para fazer pesquisa, e a Planned Parenthood volta e meia tem que rechaçar denúncias de que os vende.
Por fim, mais duas considerações. Primeiro, o problema do “início da vida” pode ser retardado para depois do nascimento. O pai do veganismo, Peter Singer, meio que já fez isso na década de 90 no insólito artigo “Matar bebês nem sempre é errado”. Basta pegar o critério utilitarista da dor, usado pelo CFM, e trocar por “consciência”, como fazem os veganos. E a consideração final é que, se Bolsonaro tivesse sido eleito, o problema não estaria resolvido. Porque bastaria um Randolfe da vida entrar com ADIN acusando o Congresso de “omissão legislativa” para o Supremo liberar geral. Depois disso, o máximo que Bolsonaro poderia fazer é convocar manifestação depois do fato para “tirar uma fotografia” e “mostrar ao mundo” que o povo não gostou. Mas resultado, que é bom, nada. A própria Nísia Trindade, a socióloga da saúde ministra de Lula, presidia a Fiocruz desde 2017, e foi reconduzida ao cargo por Bolsonaro em 2021.
Post scriptum: Segundo apurou o colunista Márcio Campos, foi útil a CNBB ter mantido laços com o petismo, já que ela atuou nos bastidores para derrubar a tal nota técnica da Sinistra Nísia Trindade. Ao contrário do que os bolsonaristas pensam, é possível, ou até necessário, fazer política sem gritaria nas redes sociais.
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Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima