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Bocejando tranquilo, o bebẽ não deve ter passado por uma complicada barriga de aluguel.
Bocejando tranquilo, o bebẽ não deve ter passado por uma complicada barriga de aluguel.| Foto: Tim Bash/Unsplash

De fato, a reprodução assistida voluntária está entrando na moda. Nem bem saiu o meu último texto, intitulado “Barriga de aluguel: as consequências extremas da sociedade baseada em contrato”, e no dia seguinte a Folha de S.Paulo publicou uma matéria-apologia intitulada “Cada vez mais mulheres de classes altas preferem ter filhos sozinhas”. Em resumo, as mulheres estão se dedicando ao trabalho (ninguém pergunta se isso é uma nova obrigação social ou uma escolha livre), têm dificuldades em achar um marido (achar sexo é outra história), e, quando estão pelos trinta e tais, livres e empoderadas, resolvem pagar para ter um bebê porque querem ser mães. Se a sociedade de mercado não lhe deu tempo para casar e ter filhos, o mesmo mercado lhe oferece a miragem de um filho por partenogênese, somente dela. O fato de que a criança vai crescer não só sem pai, mas sem nem saber quem ele é, passa a ser um mero detalhe a ser contornado por psicólogos.

Bom, se você vai ter filho com uma pessoa que não conhece, qual é o critério para escolhê-la? Será impessoal, o que já abre uma portinha para a eugenia. Uma entrevistada da Folha de S. Paulo importou esperma dos EUA e disse que “o histórico de saúde foi determinante para a escolha do doador”. A escolha pelos EUA costuma ser justificada pelo cardápio mais completo do que os bancos brasileiros. No caso, ela “também teve acesso a uma extensa lista de informações sobre as características físicas, personalidade, relações familiares e vida acadêmica da pessoa selecionada.”

Por mais que saibamos que a genética é muito importante para determinar uma série de coisas, escolher um desconhecido em função da saúde e da vida acadêmica não deixa de ser um lamarckismo sem-noção. Exemplo: minha saúde e escolaridade são ótimos, mas a minha educação tem a ver com isso. Se minha família não me criasse com regras para comer, não me desse atenção e se não valorizasse os estudos, eu poderia ser uma gorda doente sem capacidade de me concentrar, tomando remédio pra TDAH e depressão. Aí eu imagino quanto não custará o óvulo de alguém com doutorado e que não toma remédios psiquiátricos, como eu. Então um eugenista pagaria caro pelos meus óvulos, faria um filho com metade do DNA dele, deixaria a criança com smartphone, não faria refeições à mesa, depois iria ao banco de óvulos reclamar que a filha é diabética, viciada em rede social, não quer saber de estudar e ainda tem um gênio do cão que não se parece com o de ninguém da família dele. “Quero o meu dinheiro de volta!”, diria, deixando a filha no balcão. Ou seja: a pessoa teria pago para acrescentar as minhas qualidades à própria prole, sendo elas, em grande medida, características adquiridas. Tudo se passa como se o doador de gameta fosse um fornecedor de uns “plus a mais” (sic) para a genética do cliente, e não alguém que é, biologicamente, tão pai quanto o comprador, sem ter, porém, capacidade de transmitir valores e cultura que são parte de sua identidade. Eu não sou um DNA, eu sou alguém com DNA e história.

O fato de que a criança vai crescer não só sem pai, mas sem nem saber quem ele é, passa a ser um mero detalhe a ser contornado por psicólogos

Mencionei preço de óvulo, pus o carro diante dos bois. Vamos a outra razão que me levou a prestar atenção a esse assunto: na Grã-Bretanha, as mulheres estão se queixando de serem alvo de propaganda de congelamento de óvulos. Na Escócia, em particular, o governo estava pagando por anúncios em redes sociais voltados para mulheres a partir dos 18 anos! A razão de tamanha insistência? Abastecer bancos de óvulos.

No Reino Unido, essa overdose de propaganda dirigida veio após uma regulamentação da “doação”, que permite também o “compartilhamento” de óvulos. Trocando em miúdos, você paga em óvulos pelo congelamento. Se a mulher está com medo de perder a fertilidade antes de conseguir arranjar um pai para o filho, a maior barreira para ela congelar os óvulos é o custo. Para reduzi-lo, a mulher coleta uma porção de óvulos e “doa” parte deles ao banco. O banco, a seu turno, poderá vendê-lo para qualquer lugar do mundo, valendo-se de brechas regulatórias. Pode haver incentivos econômicos diretos para doar, também: embora proíbam a venda de óvulos, países europeus não raro oferecem “compensações” financeiras às “doadoras” que podem, como no caso da Espanha, chegar a mais que um salário mínimo. Por aí se vê a pauperização que está atingindo a verdíssima Europa…

Aonde vão parar tais óvulos comprados? Segundo lemos na FAPESP, alguns óvulos vindos da Espanha entram no Brasil graças às brechas legais na importação. O Brasil não permite vender óvulo, nem “compartilhar”; por isso a importação. E vêm da Espanha porque são mais baratos do que os dos Estados Unidos. Imagine você explicar a um filho que ele nasceu porque era mais barato… No entanto, algo ocorre na Colômbia e na Argentina, que, apesar de não autorizarem por lei o comércio de óvulos e o aluguel de barrigas, contam como países onde se pode encomendar o bebê por meio de uma empresa israelense sediada em Tel-Aviv. Na Colômbia, segundo a empresa, é possível encomendar um bebê mesmo sendo um homem solteiro – tão permissiva quanto a Califórnia. Um bebê (com óvulo + barriga de aluguel) custa 70 mil dólares, num plano que dá direito a uma tentativa ilimitada de óvulos e embriões até nascer vivo. Inclusiva, a empresa informa que é capaz de limpar o HIV do sêmen para fazer o bebê sadio.

Embora o site da empresa esteja em português e em várias línguas europeias (sobretudo nórdicas) além do hebraico, a origem israelense é relevante. Israel talvez é o país com o maior número de nascidos por fertilização in vitro em relação à população, segundo este estudo de 2016 da autoria de Daphna Birenbaum-Carmeli republicado pelo NIH, órgão do governo dos EUA.

Segundo lemos nele, Israel destoa dos demais países ocidentais por ser pró-natalista. Assim, esse pró-natalismo, somado às heranças cientificista e socialista do sionismo (já mencionei aqui que Israel tinha junta médica eugenista para avaliar pedidos de aborto), se traduziu na criação de um programa estatal de inseminação artificial e fertilização in vitro para fazer israelenses. Se nos EUA os bebês de proveta podem ser feitos por contrato pura e simplesmente, em Israel eles começaram sendo planejados e regulados pelo Estado em 1981 – poucos anos após o nascimento do primeiro bebê de proveta do mundo. O Ministério da Saúde liberou os procedimentos para mulheres de 18 a 45 anos, independente do estado civil. Na década de 90, juntando a fertilização in vitro com o tratamento ICSI, para homens, houve um boom de bebês de proveta subsidiados pelo Estado de Israel. Tamanha expertise fez com que o país se tornasse um polo e atraísse clientes do mundo inteiro, surgindo assim um mercado privado, altamente regulado, de bebês de proveta.

A “doação” de esperma era paga. Ainda assim, como a lei judaica religiosa não autoriza o desperdício do sêmen, e como o pagamento foi caindo, a doação tornou-se rara, e o país teve de importar esperma para abastecer os bancos. Como a lei não se estende aos gentios, os religiosos dão preferência ao esperma estrangeiro. Surge então o mercado global de gametas em Israel.

Quanto aos óvulos, só mulheres submetidas a fertilização in vitro podem doar em Israel. Por causa da restrição, os preços dos óvulos das judias é muito alto, chegando a 50 mil dólares em 2015. E por causa do comércio e do preço alto, aconteceu de um médico ser pego roubando óvulos das pacientes para vender. Assim, em 2016, Israel já era um receptador de óvulos, recebendo-os sobretudo do Leste europeu, dos EUA e da África do Sul.

Pela lei judaica religiosa, judeu é quem nasce do ventre judaico. Alguns rabinos decidiram que isso se aplica ao óvulo, mesmo que não esteja no útero. Outros, que o que vale é o útero, mesmo sem o óvulo. A questão dos úteros nos leva à das barrigas de aluguel. Israel foi o primeiro país do mundo a regulamentar a prática: fez isto em 1996 após um caso traumático no qual um marido rompeu com uma mulher quando ela quis pagar por uma barriga de aluguel nos EUA, e deixou os embriões num limbo jurídico. O Estado não financia, nem permite aluguel de barriga em seu território, mas concede cidadania a filhos de israelenses gestados mundo afora por barrigas de aluguel. E em 2008 houve um boom de barriga de aluguel graças ao surgimento de agências como a que citei acima.

Uma coisa interessante é que os gametas estrangeiros normalmente têm que ser de brancos, mesmo que uma significativa parcela dos judeus israelenses seja de origem mediterrânea. A meta é dar aos filhos a aparência europeia ou, particularmente, asquenazita (judeu de cultura alemã, que por gerações falou ou fala iídiche). Quanto ao uso de gametas árabes, está fora de cogitação.

Vale citar um trecho do estudo: “No espírito da autonomia neoliberal, os israelenses são chamados a estabelecer suas próprias metas de vida livremente. A busca por uma família biogenética é amplamente vista como uma meta pessoal valiosa. Assim, quando os israelenses passam por dezenas de ciclos de fertilização in vitro ou viajam pelo mundo à procura de doadores de gametas ou barrigas de aluguel, eles seguem o desejo autônomo por parentesco biogenético.”

Pois bem, um desejo por “parentesco biogenético” é tão velho quanto o mundo, de modo que a adoção costuma ser a opção de quem não conseguiu conceber. A novidade, é claro, é o desejo “autônomo”; a vontade de ser sozinho o pai de uma criança “melhorada” por meio das características mais ou menos genéticas de um doador anônimo. Se sou uma morena sefardita em Israel, quero um filho branquinho como um asquenazita; se sou uma pessoa de qualidades intelectuais medianas nos Estados Unidos, porém endinheirada, vou querer comprar o gameta de um indivíduo “high achieving” – se possível (isto é, se couber no orçamento), um PhD por uma Ivy League. Deve ter um gene de diploma em Ivy League!

Se é assim, o próprio casamento é repensado como uma parceria na produção de herdeiros customizados. Vejamos o caso dos Collins, um casal eugenista pró-natalista do Vale do Silício da área de TI. Eles se casaram, ela era child free (ou seja, valorizava a ausência de filhos), mas se converteram a um movimento de eugenistas doidos da turma de Peter Singer que crê ter uma ética “altruísta eficaz”, sendo altruísmo da parte deles presentear a humanidade com herdeiros dotados do seu maravilhoso DNA cheio do QI. Eles não conceberam filhos naturalmente; em vez disso, fizeram uma “grande colheita”, fertilizaram óvulos, congelaram embriões, analisaram as predisposições de cada um, e assim vão decidindo quais serão implantados e quais serão descartados. O autismo da mãe é considerado um traço bom, e assim não é um motivo de descarte do embrião. A mãe não teme ser chamada de nazista, pois sua avó judia fugiu da França ocupada (o que é um péssimo argumento, pois o eugenista radical Peter Singer é filho de judeus que fugiram da Áustria para escapar do Holocausto). Além disso, Simone Collins diz: “Eu não estou eliminando pessoas. Quer dizer, eu estou eliminando do meu próprio pool genético, mas isso é só comigo e com Malcom.” Ou seja, o problema dos nazistas parece ter sido o de mexer no gene pool dos outros; Magda e Joseph Goebbels não fizeram nada de errado ao eliminar o próprio gene pool da face da terra matando os seus seis filhos à queda do Reich.

Note-se que eles (os customizadores de bebê de modo geral) têm uma concepção individualista da reprodução humana que não corresponde à realidade. Reprodução nunca foi assunto privado na história da humanidade. Era resultado de algum rito no qual um homem se unia a uma mulher, e tais uniões sempre tinham algo de político ou social. Ninguém se reproduzia com um completo anônimo, salvo em situações de estupro e guerra. Filhos fora de casamento existiam, mas a mãe não podia tratá-los como assunto privado.

O casamento, ao menos enquanto norma, já acabou (como mostrei aqui) e foi substituído por uma união estritamente subjetiva (porém sancionada em cartório público) cujo propósito, estritamente privado, é dois adultos fazerem o que quiserem “entre quatro paredes” – coisa que noutros tempos seria típica de amantes, relação avessa a publicidade e cartórios.

O passo seguinte é dado agora, transformando a filiação numa questão subjetiva. Este artigo da Compact Magazine explica que, pelo entendimento da ordem de advogados dos EUA (que não tem lei federal sobre o assunto), “afirma que a mulher que doa os seus óvulos e o homem que doa o seu esperma à reprodução assistida não devem ser considerados pais, nem ter direitos ou obrigações relativas à criança feita com seus gametas. São estritamente ‘doadores’ e seus direitos acabam após a coleta do material. Mas, se o mesmo homem e a mesma mulher combinarem o mesmo esperma e o mesmo óvulo num laboratório e o implantarem numa outra mulher com a intenção de ficarem com a criança, são considerados os pais naturais da criança. Doze estados […] não exigem sequer que um dos pais tenha parentesco com a criança para que os pais pretendidos tenham direitos plenos.”

A filiação passa a ser inteiramente subjetiva – e uma espécie de direito, segundo alguns projetos de lei dos EUA citados no artigo da Compact Magazine. Assim, as empresas teriam a obrigação de dar um bebê ao cliente, não importando quantas tentativas fossem feitas, ao estilo da empresa israelense que vimos mais acima.

Outra incompreensão deles diz respeito à própria explicação evolucionista da reprodução humana. Uma coisa é o evolucionista explicar as características preferidas por homens e mulheres no sexo oposto como indícios de saúde e bons genes a serem transmitidos para a prole. Outra é dizer que a ordem social e as relações pessoais são suficientemente explicadas por seleção de melhores genes e melhor descendência. Quando uma mulher gosta das características tais e tais de um homem, ela está escolhendo uma companhia para a constituição do seu lar, um pai e um provedor, não um mero inseminador. Dizer que as pessoas devem ser consideradas como pacotes de genes é reduzi-las à animalidade – e é de nos perguntarmos se essa cosmovisão patológica não advém do “gene egoísta”, de Dawkins, segundo a qual os próprios seres vivos são um agregado de genes que amiúde competem entre si pela sobrevivência. Assim, eu seria um pacote de genes em busca de genes melhores, e pagaria uma clínica para escolher por mim.

Richard Hanania, um libertário desses de think tank, promotor dessa nova forma de racismo que seleciona gene pool em vez de raça, tem sido muito ativo contra a crítica das barrigas de aluguel. Diz ele: “Ou temos um interesse societal pelas características das crianças que estão nascendo, ou não temos. Não dá para apoiar a procriação ilimitada de criminosos, doentes e pobres, e depois dizer que pessoas ricas não deveriam poder pagar por uma barriga de aluguel porque existe a chance de a criança, que provavelmente nascerá com muito mais inteligência e beleza que a média, um dia se sentir mal com isso. […] Já se disse que fertilização in vitro e barriga de aluguel permite a reprodução daqueles que são naturalmente inaptos para isso. Mas o ponto de cuidar com a qualidade de populações futuras é que queremos coisas como beleza, inteligência e ausência de comportamento antissocial, não a capacidade literal de se reproduzir com facilidade.” E olhem que ele é descendente de cristãos palestinos e um entusiasmado apoiador dos bombardeios israelenses sobre Gaza -- pertencer a uma etnia vítima de limpeza étnica não quer dizer nada mesmo.

Mas, moralidade à parte, será mesmo que as crianças nascem mais saudáveis? O artigo da Compact sobre barriga de aluguel faz crer que não: “ ‘Em casos de barriga de aluguel, vemos uma esmagadora maioria de crianças nascendo com pouco peso, peso de severamente prematuros, o que tem consequências para toda a vida’, disse [Jennifer] Lahl [, fundadora e presidente do Centro de Bioética e Cultura da Califórnia]. ‘Até quando têm um filho único, e com certeza quando têm gêmeos ou trigêmeos, é frequente esses bebês passarem semanas ou meses na UTI neonatal.’ ” No artigo, aprendemos ainda que as barrigas de aluguel têm que tomar uma bateria de drogas (como o onipresente Lupron) para impedir o corpo de rejeitar o bebê com um DNA totalmente estranho.

Como a pressão econômica e ideológica é muita, é difícil fazer pesquisas que possam descobrir coisas desagradáveis ou esperar que os argumentos de puro bom-senso tenham qualquer efeito. O rumo para o qual os EUA e seus satélites se encaminham é a sociedade de indivíduos avulsos, sem família, onde tudo se compra – inclusive gente, concebida como agregado de genes e partes de corpos. Se tudo der certo para essa turma, encomendaremos pela Amazon um bebê customizado e, se não gostarmos dele, temos até x meses para devolver. Depois, é só incinerar – porque a bioética do filósofo Peter Singer alega que bebês não são pessoas, de modo que não é errado matá-los enquanto a consciência não está formada.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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