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Uma cisão de mentalidades no Brasil
| Foto: Pixabay

Tocqueville fez um apontamento interessante sobre a mentalidade da França às vésperas da Revolução: “Ao fim do século XVIII, sem dúvida ainda era possível perceber, entre as maneiras da nobreza e a da burguesia, uma diferença; pois não há nada que se iguale mais devagar do que essa superfície dos costumes a que chamamos de maneiras. Mas, no fundo, todos os homens situados acima do povo se pareciam: tinham as mesmas ideias, seguiam os mesmos gostos, se entregavam aos mesmos prazeres, liam os mesmos livros, falavam a mesma linguagem. Só se diferenciavam entre si pelos direitos.”

A tese dele é que essa uniformização da sociedade se deu concomitante com a fragmentação da mesma: todos pensam igual. As diferenças consistem nos privilégios: nobre não pagava imposto. Quem podia nobilitar alguém? O Rei. E o pensamento uniforme que abrangia desde o pequeno proprietário rural até o nobre mais elevado era que ao Estado competia causar a riqueza dos homens. Um agricultor francês de antes da Revolução já redigia cartinha culpando os burocratas pela má colheita, alegando que as melhores técnicas não foram utilizadas – coisa que um agricultor norte-americano jamais cogitaria. A elite francesa, fosse burguesa ou nobre, já corria atrás de favores reais para enriquecer.

Essa mentalidade fazia de cada francês um rival do outro francês, já que ambos disputavam isenções fiscais e cargos públicos. A coesão social foi pro saco enquanto todos se tornaram satélites do poder real.

Esse apontamento de Tocqueville certamente não vale para descrever o Brasil.

Considerações sobre mentalidade e classe no Brasil

Lendo a descrição de Tocqueville, me ocorreu que ela fornece uma distinção muito sagaz para descrever a relação entre os progressistas de elite ou classe média e a cultura do tráfico que vigora entre os pobres.

Existe uma subcultura de pobre chamada de “ostentação”. O “funk ostentação” já rendeu reportagens quando apareceu (e os repórteres, entusiasmados, não se perguntavam de onde vinha o dinheiro para ostentar); no Nordeste, onde não se gosta muito de funk, já apareceram versões em pagode de músicas de funks de ostentação ou proibidões (estes são os que fazem apologia de facções ou de vida de bandido). Num pot-pourri que adoram por aqui, ouço: “Bandido não dança / Bandido balança” para em seguida ouvir “Quer ganhar dinheiro fácil e andar todo arrumado? Vem balançar”. As músicas elogiam a “farda da Lacoste”, o “bigodinho fininho” e até o hábito de comer McDonald’s. Juram que as mulheres preferem os bandidos aos trabalhadores e que, se você jogar a nota de cem, ela vem. O sucesso com as mulheres é tamanho que o eu lírico canta que é um adestrador de cadelas.

Qual é o estilo de vida deles? Arranjar proximidade com um traficante de verdade (que é discretíssimo, ao estilo de chefe de máfia), comprar pó, misturar com "remédios" e revender. O pó pode ser destituído de cocaína e consistir em cafeína sintética, cujo aspecto é igual ao da cocaína e tem efeitos assemelhados. Ou seja: no fim das contas, a relação deles com a droga é similar à relação deles com as grifes. É chique ter uma camisa com um jacarezinho bordado, seja Lacoste ou não. É chique cheirar um pó branco, seja cocaína ou não.

Me inteirando desse tipo de coisa, penso que eles se esforçam conscientemente para imitar as festas regadas a droga e embaladas por música eletrônica da alta sociedade. Em algum momento, lá no Rio, os rapazes do morro provaram um pouco disso e resolveram imitar. Daí espalhou, com o dinheiro envolvido.

E quanto às mulheres? No nicho progressista, vemos relatos e mais relatos de algum figurão sendo acusado por um monte de mulheres de uma vez. O que chama a atenção — ao menos me chamou a atenção no caso de Dani Calabresa — é a falta de clareza quanto ao que é aceitável ou inaceitável, e o tempo que demoram para fazer denúncias, mesmo que cheias de testemunhas. Entre as progressistas, tudo se passa como se os homens fossem realmente opressores pelo mero fato de serem homens. Parece que elas realmente acreditam que mulheres valem menos e são descartáveis. Creio que elas são feministas porque são problemáticas, e não o contrário.

Posso resumir de uma maneira unificada a mentalidade da subcultura do tráfico e da elite progressista: a vida não tem nenhum sentido em si mesma; o que importa é ostentar status por meio de bens materiais. Como homens em geral dão de dez a zero nas mulheres em matéria de competitividade e de assertividade, as mulheres são seres humanos de segunda, que só conseguem assumir algum valor caso emulem um comportamento masculino predatório. Então temos aí, na classe média, as empoderadas que se gabam de fazer e acontecer, e que escolhem funkeiras ricas como ícone de sucesso ou “protagonismo feminino”. No caso de uma Djamila Ribeiro, por exemplo, não basta ser conhecida pelo seu pensamento; é preciso estampar capa de revista e ostentar objetos de luxo.

Tal como os franceses de Tocqueville, essa gente não é capaz de se agregar em torno de nada, mesmo quando pertencem à mesma classe social. Alpinismo social é algo inerentemente solitário e desagregador.

Moral tradicional também atravessa classes

Em contraposição a essa moral nova, à qual vou dar o nome insuficiente de materialista, existe, em todas as classes sociais brasileiras, a moral tradicional, que enxerga no dinheiro um meio para trazer conforto para si mesmo e para alguma espécie de comunidade que geralmente é a própria família. Os amigos se agregam em função de gostarem da companhia uns dos outros e são capazes de construir todo tipo de coisas juntos: campo de futebol, igreja, negócios e, agora, manifestações políticas.

Existe gente desse tipo tanto na favela quanto na elite. Os pobres tradicionais detestam os moleques de cabeça vazia e ficam enojados ao verem a TV os defendendo. Os ricos tradicionais ficam escandalizados com as notícias dos filhos de Fulana e Sicrana, e desprezam os conhecidos que buscam dinheiro fácil na submissão a políticos ou maus empresários.

No que concerne às mulheres, o senso comum tradicional reconhece na maternidade e na constituição de uma família uma forma de realização pessoal típica. Não obstante, espera-se também das mulheres que tenham alguma fonte de renda para ajudar a família, e, se for uma trabalhadora destacada – seja bordadeira ou advogada –, isto será visto com muito bons olhos. Mulheres têm um papel próprio na sociedade, e, como não é o único papel desejável, os homens tradicionais não se sentem obrigados a emular o comportamento do sexo oposto, nem achando que têm que ser donas de casas maternais.

Essa mentalidade produz uma cola social que se espalha de maneira desorganizada entre famílias e classes sociais. Por isso mesmo, é mais poderosa do que a outra, já que não é dada à autofagia. Por outro lado, a falta de ambições alheias ao próprio círculo social afasta esse tipo de gente de Brasília e de posições institucionais de poder. Estas atraem alpinistas sociais predatórios.

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