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Semana passada, a prestigiosa universidade John Hopkins publicou sua meta-análise de estudos sobre o impacto sanitário das restrições à circulação de pessoas e do isolamento domiciliar, concluindo que “lockdowns tiveram pouco ou nenhum efeito para a saúde pública, enquanto impuseram enormes custos sociais e econômicos onde foram adotados. Consequentemente, políticas de lockdown são infundadas e devem ser rejeitadas como instrumento na pandemia”.
Com metodologia científica e objetivando determinar se “há evidência empírica para sustentar a crença de que lockdowns reduzem a mortalidade da COVID-19”, os pesquisadores realizaram a triagem de 18.590 levantamentos sobre os resultados de intervenções não-farmacêuticas, qualificando 24 estudos para a referida análise, que destaca em seu resumo acadêmico:
“estudos sobre o índice de rigor [das medidas] apontam que lockdowns na Europa e nos Estados Unidos apenas reduziram a mortalidade da COVID-19 em 0,2% [dois décimos por cento] na média. Ordens de fique em casa também foram ineficazes, apenas reduzindo a mortalidade em 2,9% na média. Estudos específicos de intervenções não farmacêuticas também não encontraram evidência abrangente de efeitos aparentes na mortalidade por COVID-19.”
Numa avaliação precipitada, superficial e – cumpre reconhecer – bem-intencionada, a simples redução de 3% dos óbitos causados por um vírus que vitimou 6 milhões de almas ao redor do globo justificaria todos os sacrifícios socioeconômicos empregados. Afinal de contas, estamos tratando de algo como 180.000 vidas salvas, e cada uma delas conta. Ocorre que a realidade passada e presente tem sinalizado que o custo em vidas humanas da nossa principal resposta à COVID-19 (o isolamento social com paralisação econômica) pode exceder e muito seus eventuais benefícios de curto prazo – e este desenrolar dos acontecimentos era previsível; aliás, foi alertado por muitos daqueles rotulados como negacionistas.
Exemplos recentes de mortes causadas por recessões ou crises econômicas abundam na literatura técnica. Em 2016, o periódico científico The Lancet publicou ampla análise longitudinal dos dados oficiais de 79 países e do Banco Mundial sobre desemprego, cobertura de saúde e mortalidade por câncer, estimando que “a crise econômica de 2008-2010 está associada a aproximadamente 260 mil mortes a mais relacionadas ao câncer apenas nos países da OCDE [1.3 bilhão de habitantes, em 2017].”
Em 2019, outra análise longitudinal, dessa vez focada no Brasil, avaliou o impacto do desemprego nas taxas de mortalidade do país, concluindo que a crise econômica gestada no governo Dilma Roussef (2014-2016) ceifou dezenas de milhares de vidas adultas entre a população mais vulnerável. O estudo, que envolveu cientistas e pesquisadores da FGV, da Fiocruz e da Universidade de Londres, foi publicado pela The Lancet Global Health após compilação e análise de dados oficiais do Ministério Da Saúde, do IBGE e do Ministério do Desenvolvimento Social, referentes a 5.565 municípios. Concluiu-se que “um aumento de 1.0% [um por cento] na taxa de desemprego foi associado a um aumento de 0.5% [meio por cento] na mortalidade geral, especialmente em razão de câncer e doenças cardiovasculares. Entre 2012 e 2017, o maior desemprego foi responsável por 31.415 mortes em excesso”. Lembrando que, devido às medidas draconianas, prolongadas e pouco criteriosas de paralisação econômica e isolamento social, o desemprego atingiu seu recorde histórico em meados de 2021, registrando 14,7% de população desocupada. Muitas das explicações para o agravamento da mortalidade no Brasil da última crise, caem como uma luva no Brasil da crise atual:
“No caso do câncer, o diagnóstico tardio pode ser uma das causas do aumento da mortalidade. Já as doenças cardiovasculares, além das dificuldades para se buscar tratamento, estão também associadas ao estresse psicossocial sofrido pelas pessoas em momentos de crise” – afirmou, à época, Rômulo Paes de Sousa, epidemiologista PhD da Fiocruz. Na pandemia, o sofrimento psicológico, a demora na busca por tratamento e o diagnóstico tardio têm outras agravantes: as restrições de locomoção impostas aos pacientes e o medo – ou o pânico – de contrair a doença.
Os papers sobre as mortes decorrentes das crises de 2008-2010 na OCDE e de 2014-2016 no Brasil são exemplos pontuais de uma vasta literatura científica que é unânime em demonstrar as repercussões diretas do universo social e econômico na saúde pública e na mortalidade da população – o que, convenhamos, só confirma o senso comum: uma sociedade empobrecida perde qualidade de vida e tende a adoecer e morrer mais (e mais cedo). Uma obviedade inescapável que, durante a pandemia, foi propositalmente ignorada ou subestimada por políticos oportunistas ou apenas acuados por uma opinião pública vítima de desinformação e manipulação. Mas repise-se: desde o início da emergência da COVID-19, não faltaram avisos, levantamentos e estudos indicando os riscos sociais e a ineficácia sanitária do lockdown, especialmente no modelo implementado aqui no Brasil, onde a medida veio desacompanhada de outras ações e manteve-se vigente mesmo com o sistema de saúde a salvo do colapso – vide a desmobilização de milhares de leitos de UTI ainda em 2020 e o desmonte dos extravagantes “hospitais de campanha”. A Organização das Nações Unidas (ONU) e suas agências – tão utilizadas como recurso de “apelo à autoridade” a favor do isolamento social – emitiram diversos alertas nesse sentido:
Em entrevista de outubro de 2020, o emissário especial da OMS para a COVID-19, dr. David Nabarro, fez um apelo público aos líderes mundiais: :
“Parem de usar o lockdown como seu método de controle primário”;
“O único momento em que nós acreditamos que o lockdown é justificado é para ganhar tempo para reorganizar [o sistema de saúde]”;
“Lockdowns têm apenas uma consequência, que vocês nunca devem subestimar, tornar as pessoas pobres muito mais pobres.”
A própriaOrganização Mundial da Saúde, por meio de nota oficial, reiterou que “a OMS nunca advogou por lockdowns nacionais como principal meio de controle do vírus” e que recomendava a adoção de medidas comprovadas de saúde pública, como higiene das mão, distanciamento físico e ficar em casa se estiver doente.
Em abril de 2020, a Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO) publicou um informe sobre a desnutrição no mundo, alertando que a paralisação e a recessão econômica decorrentes da pandemia, poderiam gerar 130 milhões de novos famintos. No mês seguinte, a UNICEF (o Fundo das Nações Unidas para a Infância) divulgou a projeção de que até 6.000 [seis mil] crianças poderiam morrer diariamente por causas evitáveis em decorrência das reações à pandemia. Seriam 1 milhão e 200 mil menores de 5 anos morrendo a mais no mundo em um ano, um retrocesso de duas décadas nos índices globais de mortalidade infantil.
O cálculo político silenciou do debate público as estimativas da ONU e os alertas da OMS, que foram preteridos pela narrativa do “fique em casa, a economia a gente vê depois” e por previsões apocalípticas como aquela do divulgador “científico” Átila Iamarino, que assombrava a Internet no começo da pandemia alegando que haveria 1 milhão de óbitos por COVID-19 no Brasil até agosto de 2020 (há um vídeo em que ele fala em 3 milhões de vítimas fatais). O fato é que as mortes reais decorrentes do novo coronavírus adquiriram protagonismo midiático e repercussão social ímpares – não à toa, autoridades preferiram optar por uma saída autoritária, coletiva e sem critério, de implementação fácil e imediata: o isolamento social horizontal e prolongado. O mais lógico seria focar recursos e energia nos grupos de risco e criar soluções para cada região conforme a sua fase de contágio e o status da sua rede hospitalar – medidas que, associadas à proteção da renda, teriam o potencial de salvar muito mais vidas no médio e longo prazos.
Nada disso foi feito. Nossas autoridades, nacionais e internacionais, preferiram lavar as mãos mimetizando o comportamento medíocre e acovardado umas das outras. Mas agora, gradualmente, as estatísticas se empilham nos ombros de quem empobreceu o mundo alegando salvar vidas. A OMS divulgou, no final do ano passado, um dado chocante: em comparação com 2019, 2020 registrou 14 milhões de casos adicionais de malária, que resultaram num excedente de 69 mil óbitos. Já no mundo economicamente desenvolvido, as autoridades americanas já reportaram aumento de quase 30% nas mortes por overdose de drogas. É questão de tempo para descobrirmos quanto o lockdown e o fique em casa nos custaram em vidas humanas, mas além disso, a certeza científica sobre a sua ineficácia vai se materializando.
Os primeiros números da vacinação em Israel, repercutidos mundialmente pela revista The Economist, nos ofereceram uma rara oportunidade de isolar variáveis de saúde pública. Por lá, em janeiro de 2021, as autoridades implementaram duas medidas simultâneas de enfrentamento à pandemia: um rigoroso isolamento social imposto a toda população e a vacinação prioritária de pessoas acima de 60 anos. Em poucas semanas, o número de internações graves por COVID-19 caiu 26% entre os idosos vacinados; já entre os adultos de 40 a 59 anos – que estavam em lockdown, mas não haviam recebido nenhuma dose da vacina – o número de internações continuou crescendo e aumentou 13% no mesmo período.
Aqui no Brasil, o fracasso do isolamento social fica patente quando analisamos os dados de São Paulo, o Estado mais rico da federação, ironicamente governado pelo garoto-propaganda do lockdown, que chegou a cogitar a prisão de transeuntes nos primeiros meses da pandemia. Apesar das coletivas de imprensa enfadonhas e autorreferentes alardeando o sucesso do fique em casa à paulista, os números são eloquentes em desdizer o governador. Comparando a taxa de isolamento social – que se manteve relativamente constante, variando entre 40 e 50%, no semestre anterior à vacinação – com o número diário de óbitos no mesmo período – que oscilou bruscamente, com variação de dezenas de mortes por dia, para mais e para menos – fica nítido que não eram as políticas draconianas de isolamento social e paralisação econômica do governador que estavam influenciando o comportamento e a mortalidade do vírus. Não por acaso, se São Paulo fosse um país, em janeiro de 2021 (pré-vacinação) ele estaria entre as 20 nações do planeta com maior número proporcional de mortes por COVID-19, uma lista que não incluía o Brasil.
Vai ficando cada vez mais difícil argumentar (racionalmente) que o lockdown salvou vidas; e que o lockdown não tirou vidas. Pra quem foi longe demais com a narrativa, o melhor é nem tocar no assunto... talvez por isso, a Fox News americana tenha denunciado que suas concorrentes, “CNN, MSNBC, ABC, CBS e NBC ignoraram as descobertas anti-lockdown [publicados pela John Hopkins] após passarem grande parte da pandemia ridicularizando Estados com restrições mínimas [à circulação de pessoas] governados por Republicanos e eventos considerados como super-propagadores por seus críticos”. A Fox acrescenta que “não foram apenas as emissoras que evitaram o estudo. Segundo os mecanismos de busca, [os jornais e sites noticiosos] The New York Times, The Washington Post, The Associated Press, Reuters, USA Today, Axios, Politico entre outros veículos também fecharam os olhos para os achados”. Todos estes grupos de comunicação têm sua linha editorial alinhada ao partido democrata, defensor ferrenho das medidas de isolamento domiciliar e lockdown.
Aqui no Brasil, em meados de 2020, o G1, O Globo, O Estado de São Paulo, a Folha de São Paulo, o Uol e o Extra estabeleceram uma parceria batizada de Consórcio de Veículos de Imprensa, cuja finalidade era informar dados sobre a pandemia. Estranhamente, nenhum deles noticiou a publicação do estudo da John Hopkins, uma das mais respeitadas universidades do mundo. Já o Átila Iamarino – aquele dos 3 milhões de mortos em 2020 – escreve na Folha e dá entrevista na Globo, além de aparecer em todos os resultados de busca do tal consórcio. Parece que, seja por aqui ou seja lá fora, a mídia se esforça para manter a verdade ou, pelo menos, o contraditório em quarentena, assim como fez com milhões de trabalhadores, estudantes e cidadãos saudáveis durante esta pandemia... mas agora é mais difícil: ideias circulam muito mais fácil do que pessoas.
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