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Na semana passada, logo depois de iniciada a invasão da Ucrânia pela Rússia, comecei a anotar algumas reflexões sobre o conflito. Chamei a série de "Tragos de Vodca".
Os quatro primeiros "tragos" publiquei na Revista Oeste e estão na sequência dos outros três, que trago hoje para minha coluna da Gazeta do Povo. Espero que essas sete anotações ajudem o leitor a entender melhor o ataque à Ucrânia.
Jogo de palavras
O Ministério da Defesa – do Ataque? – russo teceu duras críticas à Ucrânia pela iniciativa de armar sua população civil. O major-general, porta-voz da pasta, afirmou que “o regime nacionalista de Kiev distribui massiva e incontrolavelmente armas leves automáticas, lançadores de granadas e munição para moradores de assentamentos ucranianos”, acrescentando que “o envolvimento da população civil da Ucrânia pelos nacionalistas nas hostilidades levará inevitavelmente a acidentes e baixas” – talvez como aquela ogiva russa armada e parcialmente enterrada num parque infantil...
A escolha de palavras do Kremlin requer tradução: “regime nacionalista de Kiev” é putinês para o governo democraticamente eleito da Ucrânia, capitaneado por um Presidente, Volodymyr Zelensky, que obteve mais de 70% dos votos em 2019. Já as hostilidades supostamente incentivadas pelos nacionalistas nada mais são do que a resistência heroica e patriota de cidadãos livres, de um país independente, lutando por sua autonomia – não se trata de moradores de assentamentos, mas de residentes nacionais de um povo em pleno gozo da sua autodeterminação.
O porta-voz russo insiste: “Pedimos ao povo da Ucrânia que seja consciente, não sucumba a essas provocações do regime de Kiev e não se exponha e seus entes queridos a sofrimento desnecessário”. Pegar em armas contra uma força estrangeira invasora não requer muita provocação, nemparece sintoma de ausência de consciência; mas será que o sofrimento de civis e militares da resistência é fútil ou desnecessário?
“Aqueles que abrem mão da liberdade essencial por um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade nem segurança” disse Benjamin Franklin, na época em que os EUA eram o farol da humanidade, onde abundavam lideranças de verdadeira envergadura moral – como são os anônimos da resistência ucraniana.
País desarmado, povo refém
O pronunciamento oficial da Rússia sobre a distribuição de armas em Kiev veio um dia após o Ministério da Defesa e do Interior da Ucrânia solicitar a colaboração dos moradores da capital: “nos informem sobre movimentos de tropas, façam coquetéis molotov e neutralizem o inimigo”. Nas redes sociais, o governo publicou um passo-a-passo para a fabricação caseira de bombas de gasolina e, segundo fontes oficiais, 18mil armas foram distribuídas.
O descontentamento da força invasora com o armamento voluntário da população violada sinaliza a potencial efetividade da estratégia de formação de milícias civis e do combate de guerrilha. Muitas batalhas já foram vencidas dessa maneira, inclusive durante a sanguinária incursão nazista na Rússia. Obrigar o inimigo a lutar por cada esquina, rua e prédio – apreensivo a cada palmo que avança em território hostil – abala a moral do exército intruso; além disso, nada como o combate homem a homem para materializar a violência (e a estupidez) do conflito, tanto para quem participa, quanto para quem assiste.
Daí a insatisfação do porta-voz e major-general russo, cujas palavras desbordam para o campo da ameaça ao citar uma inevitável escalada de baixas e de sofrimento entre os civis ucranianos. Por outro lado, o exército russo pareceu não se incomodar com a (nobre) tentativa de civis desarmados de barrar o avanço de tanques blindados na cidade ucraniana de Chernigov – o metal prevaleceu sobre a carne-e-osso, assim como a força prepondera sobre a razão em situações de guerra.
O episódio do armamento civil em Kiev nos chama atenção para a verdadeira natureza das armas de fogo: são instrumentos de defesa que previnem, ou ao menos dificultam, que a população seja refém de uma tirania, refém de uma força invasora ou refém do crime organizado – como é o caso do povo trabalhador do Brasil, absolutamente vulnerável diante do assédio de assaltantes, latrocidas, sequestradores, estupradores e homicidas. Num país que contabiliza mais de meio milhão de mortes violentas só na última década, surpreende que a opinião pública ainda não tenha despertado em sua totalidade para a falácia desarmamentista daqueles que responsabilizam objetos inanimados pela conduta de seus proprietários. Seja no Brasil ou na Ucrânia, o direito à legítima defesa é um imperativo moral e não surpreende que tanto os russos em Kiev quanto as facções nos morros abominem o armamento da população que eles pretendem subjugar.
A guerra, a fome e o sofrimento desnecessário
No terceiro dia de guerra, o número de fatalidades permanece desconhecido e sigiloso. Um relatório das Nações Unidas dá conta de, ao menos, 64 mortes entre os civis ucranianos – suspeita-se que o número de baixas entre os militares já esteja na casa de centenas, em ambos os lados. Esses óbitos vão pra conta de um governo russo de pretensões imperialistas, que violou tratados internacionais e tem pouca tolerância a regimes democráticos, exceto quando alinhados ao Kremlin. Putin já declarou que “o colapso da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica do século [XX]” – sim, por incrível que pareça, ele se referia ao mesmo centenário que assistiu a duas guerras mundiais e aprisionou centenas de milhões de pessoas na escuridão da cortina de ferro socialista.
Há menos de 100 anos, no alvorecer da URSS, outro governo russo impôs aos ucranianos sua visão de mundo enviesada e ideológica. Entre 1932 e 1934, a Ucrânia foi devastado pela Grande Fome, ou Fome Terror, ou ainda Holodomor (“matar pela fome”) que massacrou 3.9 milhões de ucranianos étnicos por inanição – para muitos, um genocídio levado a cabo pelo governo soviético, que impôs políticas isolacionistas, coletivistas e de confisco agrícola aos camponeses, muitos dos quais recorreram até ao canibalismo na tentativa desesperada de sobrevivência.
Os horrores do Holodomor levaram décadas para chegar ao conhecimento do Ocidente. Só após a queda da União Soviética – a tal catástrofe geopolítica – o mundo livre conheceu a verdade sobre a fome, a miséria e a violência do comunismo e suas doutrinas derivadas. Putin até que se esforça para imitar seus antecessores, dificultando a livre circulação da informação e restringindo o acesso às redes sociais; mas o mundo de hoje é muito mais conectado e talvez mais sensível ao “sofrimento desnecessário”, como diria o major-general russo. Bastam as mortes – e não milhões de mortes – para alertar e mover a opinião pública. Na zdoróvie.
Velhos hábitos
Vladimir Putin tem um andar característico, flagrado em múltiplas filmagens, que já foi até objeto de artigos científicos. Ao invés de movimentar os braços livremente, utilizando-os como contrapeso aos seus passos, o presidente da Rússia caminha de forma assimétrica, com a movimentação reduzida em seu lado direito, dos ombros à mão.
Essa forma peculiar de marcha – apelidada (e glamourizada) pela imprensa internacional como “gunslinger’s gait”, o passo do pistoleiro em tradução livre – é atribuída ao treinamento de agentes da KGB, o serviço secreto soviético, onde Vladimir Putin chegou à patente de tenente-coronel.
Segundo os pesquisadores, a proximidade do braço ao corpo favoreceria o acesso mais rápido ao coldre e a agilidade no saque da arma numa eventual situação de emergência. Assim caminham o líder russo e seus velhos hábitos.
Tempos difíceis e seus homens
O avô paterno do Presidente da Rússia, Spiridon Putin, era cozinheiro pessoal de Lenin e outros líderes da Revolução Russa – uma informação que, por algum motivo, foi mantida em sigilo até 2018. Quando Stálin tomou o poder e perpetrou a carnificina dos expurgos, chef Putin e sua esposa foram poupados: “Eles eram, provavelmente, valorizados por serem pessoas de confiança”, comentou Putin, o neto, nascido em 1952 em Leningrado, onde viveu com a família em um apartamento comunitário.
Putin, o pai, nasceu em 1911, com o país sob domínio czarista. Ainda na infância, testemunhou uma revolução, uma guerra mundial e a fome russa, que matou cerca de 5 milhões dos seus conterrâneos. Lutou na 2ª grande guerra e foi gravemente ferido por um tiro de metralhadora; sobreviveu, assim como sua esposa, que resistiu ao cerco a Leningrado, um morticínio que vitimou ao menos 2 milhões de russos, entre militares e civis. Vladimir Putin, presidente russo, é o filho mais velho desse casal – mas só porque seus irmãos, nascidos antes, faleceram na infância.
Reza o provérbio oriental: “Homens fortes criam tempos fáceis e tempos fáceis geram homens fracos, mas homens fracos criam tempos difíceis e tempos difíceis geram homens fortes”... onde estaremos?
Tempos fáceis e seus homens
Emanuel Macron nasceu em 1977, formou-se em filosofia e graduou-se administração com mestrado em políticas públicas. Tornou-se sócio do Rothschild & Cie Banque, que o fez milionário antes dos 35 anos. Já como presidente da França, lançou mão de uma estratégia velada e intelectualmente desonesta de protecionismo agropecuário contra o Brasil, amealhando quase 150mil coraçõezinhos em sua postagem lacradora sobre a Amazônia em 2019, ilustrada pela foto de um incêndio de décadas atrás: “Nossa casa está queimando. Literalmente. A floresta amazônica – os pulmões que produzem 20% do oxigênio do nosso planeta – está pegando fogo. É uma crise internacional”. Claro que pulmões não produzem oxigênio, absorvem – exatamente o que faz a floresta, que consome a maior parte do gás liberado pela fotossíntese, embora contribua de outras formas para a ecologia e o clima do mundo. Mas o que salta aos olhos é a definição do presidente francês de crise internacional.
Outro que já usou a Amazônia para bravatear e capitalizar politicamente foi o commander-in-chief, Joe Biden, que, num debate eleitoral, sugeriu o pagamento – estamos aguardando! – de algo como 20 bilhões de dólares para que o Brasil parasse de destruir a Amazônia. O então candidato até ameaçou: “se não parar, vai enfrentar consequências econômicas significativas”.
Parece que os líderes do mundo-livre finalmente se depararam com uma crise internacional de verdade, que requer medidas concretas contra agentes políticos realmente antagônicos aos valores do Ocidente. E agora?
O mundo dá voltas
Há dez anos, Mitt Romney, candidato republicano à presidência dos Estados Unidos, foi entrevistado pela CNN e afirmou: “A Rússia é, sem dúvida, nosso maior inimigo geopolítico”. Romney acrescentou: “Quem sempre se alinha aos piores atores globais? A Rússia, geralmente com a China ao seu lado”.
Ato contínuo, em sua campanha pela reeleição, o presidente Barack Obama fez questão de zombar seu adversário por essa resposta:
“Quando você foi perguntado qual era a maior ameaça geopolítica contra a América, você respondeu Rússia, não Al-Qaeda [grupo terrorista de extremistas islâmicos responsável pelos ataques de 11 de Setembro]. E os anos 80 estão na linha solicitando sua política externa de volta, porque a Guerra Fria acabou há 20 anos”.
Barack Obama, o sarrista, foi o único presidente americano na história a completar 8 anos de gestão com as tropas do seu país em combate ativo no exterior – uma contradição flagrante à sua plataforma eleitoral, que contemplava o encerramento de conflitos e o retorno das forças armadas ao lar. Durante seu governo, em 2014, os russos invadiram e anexaram o estratégico território da Crimeia, antes pertencente à Ucrânia. Embora a anexação não seja reconhecida pela ONU, a unificação ao território russo é dada como fato consumado. Especialistas avaliam que a incursão pela Crimeia foi o balão de ensaio para um movimento mais ousado de Putin na Ucrânia que ocorreu tão logo um democrata voltou a ocupar o Salão Oval. São as coincidências de um mundo que dá voltas...