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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Vinte anos depois

As torres do World Trade Center em chamas após o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001. (Foto: Jason Szenes/EFE/EPA)

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Onde você estava no dia 11 de setembro de 2001? Esta é uma pergunta comum a todos os que já eram então capazes de entender a importância daqueles atentados. Na prática, foi o fim do milênio anterior, o acontecimento que marcou a virada de um para outro momento histórico. Eu mesmo estava fumando um cigarrinho numa varanda da universidade quando começou o zum-zum-zum. Dizia-se que a Casa Branca, o Congresso, o Pentágono e as Torres Gêmeas haviam sido atingidos por aviões. Esquerdistas celebravam entusiasmados pelos corredores.

Pouco tempo atrás, lembrou-me um amigo que na véspera dos atentados eu dissera a um padre que pintava um Islã pacífico que ele não tinha ideia do que os fanáticos da lei islâmica eram capazes de fazer. A prova chegou no dia seguinte, o famoso 11 de Setembro; confesso que preferiria ter errado no que disse. Mas o fato é que tanto o acontecimento em si – com todas as coisas inexplicadas e mal-explicadas do discurso oficial posterior – quanto, mais ainda, suas consequências para o mundo e para o império americano foram o maior divisor de águas histórico desde as revoluções do fim do século 18.

Nos dias imediatamente ulteriores, antes da consolidação do discurso oficial, eu me lembro ter estranhado muito o buraco na parede do Pentágono, supostamente fruto do choque de um avião. Não havia nada que o sugerisse, nenhum pedaço de motor ou asa, nada. Só um buraco, como o que poderia ter sido provocado por um míssil. Falou-se então que seria reconstituído o avião atacante a partir de supostos fragmentos pequenos demais para ver nas fotos. Nunca mais se falou nem disso nem do outro avião desaparecido, supostamente derrubado por passageiros heroicos.

Tanto o 11 de Setembro quanto, mais ainda, suas consequências para o mundo e para o império americano foram o maior divisor de águas histórico desde as revoluções do fim do século 18

Do mesmo modo, o discurso oficial de que teriam sido apenas os aviões, sem recurso a – por exemplo – explosivos plantados nas torres prevaleceu depois. Na época, um construtor já famoso – mas que veio a tornar-se ainda mais conhecido ao ser eleito presidente –, Donald Trump, declarou ser impossível que as torres houvessem sido derrubadas pelos aviões. Afinal, elas eram gaiolas de aço, com janelas estreitas, e aviões são feitos de alumínio muito fino. Mutatis mutandis, seria como um balão de papel-alumínio destruir uma jaula de aço. Perduram ainda as teorias sobre o que pode ter derrubado um terceiro prédio, igualmente robusto, sito ao lado das torres e que caiu sem sequer precisar do choque de um avião. Imagino que jamais se saberá perfeitamente o que aconteceu.

O fato é que as teorias da conspiração abundam, mas o discurso oficial tornou-se completamente hegemônico. Foi ele a justificar uma série de reviravoltas nas políticas interna e externa dos EUA, cujos efeitos hoje se fazem sentir e aumentam ainda mais. Em termos práticos, pouco importa para a política como algo se passou; a questão é como a população percebe o ato. Até hoje o ataque japonês a Pearl Harbor, porto militar americano no Havaí, serve de apelido para qualquer ação traiçoeira. O fato de que o então presidente norte-americano havia bloqueado o Japão, forçando-o ao confronto, só é relevante para os estudiosos posteriores. Na hora, e até hoje, criou-se o desejo de guerra que Roosevelt tanto almejava criar. Do mesmo modo, foi só depois de finda a Guerra do Vietnã que se veio a saber ter sido falsa a notícia de um ataque norte-vietnamita a navios americanos “inocentemente passando” pelo Golfo de Tonkin. Ou – mais longe na história – como realmente ocorreu o incêndio do Reichstag que possibilitou que Hitler conquistasse poderes ditatoriais, ou o falso ataque polonês a uma guarnição de fronteira alemã que “justificou” a invasão da Polônia. Estas são questões para historiadores; na hora aquilo funcionou politicamente, e é o que basta.

Imediatamente após o 11 de Setembro, a população americana – compreensivelmente – queria vingança. Tinha sede de sangue. Afinal, dada a sua privilegiada posição estratégica, com oceanos em dois lados e vizinhos pacíficos nos outros, os EUA jamais haviam sofrido um ataque direto, menos ainda um que vitimasse civis aos milhares. Pearl Harbor é território americano, mas fica muito longe do coração do país. Na Segunda Guerra, o máximo que os japoneses conseguiram fazer contra os EUA continentais foi lançar balões aos ventos para atear fogo às matas da costa leste. Nenhum inimigo americano conseguira perpetrar qualquer ataque eficaz aos EUA, que dirá algo da magnitude do 11 de Setembro. E estes, mais ainda, foram ataques simbólicos, atingindo a cabeça do império – Washington – e seu centro comercial e cultural – Nova York. Para não falar no que diria Freud sobre o formato das torres derrubadas.

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Daí ter sido possível que ocorresse tão rapidamente uma mudança extrema na política interna, com a aprovação-relâmpago do dito Patriot Act. Foi basicamente a maior reviravolta na história dos direitos civis americanos, dando ao governo até mesmo poderes explicitamente proibidos pela venerada Constituição. A justificativa, claro, foi o combate ao terrorismo, termo que evidentemente esquentava o sangue de qualquer americano naquele momento. O próprio nome da peça jurídica é um desajeitado acrônimo, em que as palavras “ato patriota” são formadas pelas iniciais de “unir e fortalecer a América pelo fornecimento de ferramentas apropriadas, requeridas para interceptar e obstruir o terrorismo”. Basicamente, nele decretou-se que basta ao governo americano afirmar que alguém é “terrorista” para poder fazer com ele o que quiser, inclusive matá-lo sem julgamento, negar-lhe todo e qualquer direito, torturá-lo, e o que mais for desejado pelos poderosos.

Um calhamaço de mais de 300 páginas, evidentemente preparado de antemão, o tal Ato foi apresentado ao Congresso no dia 26 de outubro d 2001 e aprovado literalmente no dia seguinte. Os poderes então conquistados pelo Estado forneceram o arcabouço para o vastíssimo sistema de informação e espionagem sobre os próprios americanos mais tarde exposto por Edward Snowden. A repartição encarregada da espionagem doméstica, criada em resposta aos atentados, é o Homeland Security Department, literalmente “departamento de segurança da terra-lar” Segundo o Washington Post, dez anos atrás ele já empregava quase 1 milhão de espiões domésticos. Sem o Patriot Act, sem o 11 de Setembro, não seria hoje possível manter presos os seguidores de Trump que adentraram o Capitólio na Epifania passada.

Evidentemente, tendo tido 20 anos para acalmar os ânimos, é ainda mais evidente agora que terrorismo é uma técnica, não um inimigo objetivo – como um Estado-nação ou mesmo uma ideologia. Mas esse “combate ao terrorismo” foi logo transformado em “Guerra ao Terrorismo”. Foi então que conseguiu o Executivo a autorização do Legislativo americano para “uso de força” em ações unilaterais; até hoje usa-se e abusa-se desse suposto direito. Notemos que teria sido perfeitamente possível, por exemplo, falar de um combate ao fundamentalismo salafista, na medida em que os sequestradores dos aviões – e a Al-Qaeda, organização de que fariam parte – orientariam e justificariam suas ações com base nessa ideologia. Até, esticando um tanto ou quanto o termo, se poderia falar em “guerra à Al-Qaeda”. Mas, convenhamos, ao mover guerra contra uma tática – por mais covarde que seja o assassinato de civis – não é possível nem ganhar nem perder a guerra. É, a priori, uma guerra sem fim, como o próprio presidente americano G.W. Bush declarou então.

O dito Patriot Act foi basicamente a maior reviravolta na história dos direitos civis americanos, dando ao governo até mesmo poderes explicitamente proibidos pela venerada Constituição

Esta guerra sem fim, todavia, tal como o vazamento de óleo do motor de uma famosa marca americana de motocicletas, “não é defeito: é característica”. Ela já estava prevista no papel no que depois acabou-se por chamar “doutrina Rumsfeld-Cebrowski”, adotada oficialmente menos de dois meses após o 11 de Setembro na ação externa (logo, militar) americana. Donald Rumsfeld, então secretário (equivalente americano de nosso “ministro”) da Defesa, decretou a criação do Office of Force Transformation, “Birô de transformação da[s] Força[s Armadas]”, e confiou-o ao almirante Arthur Cebrowski. Este, por sua vez, passou a preparar e participar na formação dos oficiais de Estado-Maior americanos, ensinando-lhes o que – por coincidência ou não – foi primeiro expresso formalmente pelo tenente-coronel da reserva Ralph Peters num artigo escrito logo após os atentados e publicado na prestigiosa revista Parameters, da Escola Superior de Guerra dos EUA, no quarto trimestre de 2001.

A tese de Peters, depois reafirmada e atribuída a Thomas Barnett, professor da mesma escola, é um passo além da tradicional Doutrina Lewis (popularizada por Samuel Huntington) de um “choque de civilizações” entre o Islã e o Ocidente. Peters defendia fervorosamente que os EUA não mais tentassem manter pela força governos “amigos” nos países que não abraçassem a globalização em curso. Enquanto Roosevelt referiu-se ao ditador centro-americano Somoza como “um fdp, mas nosso fdp”, a nova tese, que passou a orientar a política externa militar americana a partir do 11 de Setembro, nega qualquer valor real a tais fantoches. A estabilidade dos territórios a explorar – antes garantida pelos fdps de estimação dos gringos – passou a ser percebida como prejudicial aos interesses americanos. Herdeiro da política colonial inglesa – que basicamente mantinha os governos locais anteriores como sátrapas, submetendo-os todavia aos ditames de Londres –, o colonialismo americano basicamente continuara a mesma técnica, inclusive adotando como sátrapas seus os impostos pelos britânicos e franceses na divisão Sykes-Picot do Oriente Médio.

A partir, todavia, da mudança de perspectiva preconizada pelas novas teorias estratégicas e possibilitada pela sede de sangue causada pelo 11 de Setembro, tudo mudou. O mesmo Iraque que poucos anos antes, na administração do presidente Bush pai, havia sido derrotado, mas não destruído, foi basicamente destroçado por Bush filho. Madeleine Albright, uma sua fiel conselheira, veio a dizer depois que “valeu a pena” a morte de centenas de milhares de crianças inocentes numa guerra sem razão moral alguma. Como depois foi confessado pelos envolvidos, as supostas armas de destruição em massa de que o Iraque disporia eram uma ficção. Além disso, por ser baathista, Saddam era laicista, e via como inimigos os adeptos do fundamentalismo islâmico.

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O que, então, moveu os EUA a aproveitar o ensejo dos atentados para perpetrar ações tão aparentemente contraproducentes? Na verdade, a doutrina é bem simples. O mundo passou a ser visto como dividido em duas partes: a primeira e principal delas seria a globalista. Nesta, Estados nacionais ligam-se uns aos outros por laços comerciais, adesão a instituições plurinacionais e outros mecanismos pacíficos de convivência e auxílio mútuo. Estariam nesta parte tanto a Europa quanto China, Índia, Israel, as Américas e a Oceania. A outra parte, não globalizada, englobaria toda a África subsaariana e o “Oriente Médio estendido”, basicamente sinônimo da imensa mancha verde do Islã. Nesta área situam-se o Iraque, com petróleo em grande quantidade, e o Afeganistão. Neste, o governo fundamentalista islâmico do Talibã havia quase eliminado o cultivo de papoulas, dificultando assim o uso do tráfico de ópio para financiar operações secretas de serviços de inteligência americanos (prática iniciada na Guerra do Vietnã e jamais interrompida). Mesmo tendo se oferecido a entregar Bin Laden para um julgamento justo, o país foi invadido e destroçado.

Ao contrário da estratégia neocolonial anterior, em que alguma estabilidade de governo seria garantida na parte não globalizada pelas potências americana e europeias e seus sátrapas, nesta a estabilidade passou a ser percebida como o inimigo. Em outras palavras, passou-se a buscar propositadamente o caos em toda essa parte do nosso vasto planetinha azul. Tornar instável a situação política garantiria a preponderância (pelas armas, próprias ou nas mãos de “procuradores” locais) das potências globalizadas, evitando contudo que surgisse uma capacidade eficaz de defender os interesses das próprias populações.

Pôs-se então em ação no mundo não globalizado o esquema de revolução desenhado por Gene Sharp: as chamadas “revoluções coloridas”. Trata-se de um processo revolucionário em que a ação americana é relativamente indireta, possibilitando defender a ficção de serem sublevações locais. Dólares são derramados às mancheias por “ONGs” que servem de fachada aos serviços secretos americanos, e toda ação violenta americana é via de regra o mais discreta possível. Para tal, foram criadas forças militares secretas, que hoje (segundo a revista Newsweek) contam com cerca de 60 mil soldados sem uniforme. A eles somam-se as enormemente extendidas Forças Especiais “normais”, especializadas em ações violentas pontuais, geralmente secretas.

Tornou-se objetivo dos Estados Unidos buscar propositadamente o caos em toda essa parte do nosso vasto planetinha azul que vai da África subsaariana ao “Oriente Médio estendido”

Criou-se, assim, com grande sucesso, instabilidade em todo o Norte africano e em grande parcela do Oriente Médio, além, claro, do Afeganistão. Basta ver, como exemplo, a Síria. Pelo preço relativamente módico de alguns mísseis e alguns caminhões abarrotados de armas para distribuir a fundamentalistas islâmicos nativos, foi tremendamente diminuída a capacidade de ordenação do governo nacional laicista, facultando aos americanos e seus aliados o roubo descarado que lhes interessa. Não é coincidência alguma que os grupelhos salafistas criados e bancados pelos EUA (como o famoso Estado Islâmico), aos quais se somou na arrecadação de mesada americana a milícia comunista curda, tenham feito com que o governo sírio tenha perdido controle de vastas parcelas do seu território. Menos ainda seria coincidência tratar-se justamente da área mais rica em petróleo. Com um governo nacional enfraquecido e sem precisar manter no poder um sátrapa, basta hoje manter o domínio militar da área cujas riquezas são cobiçadas.

Do mesmo modo a Líbia, acerca da qual Hillary Clinton parafraseou César ao declarar, logo após o bárbaro linchamento de Kadafi, que “viemos, vimos e ele morreu”. Sem que haja um governo central estável o petróleo pode ser explorado por potências estrangeiras; o retorno dos mercados de escravos é apenas um irrelevante efeito colateral. Evidentemente, os EUA ganham sua parte na exploração dos recursos minerais e “garantem a segurança” das operações no território na prática desnacionalizado. O custo de armar as diversas milícias locais que almejam tomar para si um poder central destruído pelos EUA é baixo. Do mesmo modo, tampouco há de custar muito impedir que uma delas alcance seu objetivo. Os nativos são facilmente enganados pelo apoio americano a suas ações geradoras de instabilidade, sem perceber que o objetivo de seus financiadores não é uma nova ordenação da sociedade local, mas a manutenção do caos e desordem.

Basta ver, por exemplo, o que foi feito com a milícia comunista curda, armada e paparicada pelos EUA, que a atiçou contra o governo sírio para enfraquecê-lo. Os milicianos acreditaram que os EUA estavam a ajudá-los na criação de um Estado curdo, apenas para ver-se de mãos abanando quando a conquista das áreas petrolíferas foi atingida pelos americanos. Eram muitos os atores no conflito: milícias salafistas árabes e comunonacionalistas curdas bancadas pelos EUA, forças turcas (aliadas dos EUA na Otan e tremendamente anticurdas), as Forças Armadas sírias e, finalmente, os russos. Foram estes que conseguiram vencer as milícias armadas e treinadas pelos EUA, garantindo ao governo sírio estabilidade na parte de seu país que não caiu nas mãos dos americanos. Agindo, como sempre, como 51.o estado americano, Israel continua tentando gerar instabilidade concentrada na parte do território sírio que lhe é fronteiriça. Para isso, chegam eles também a bancar milícias salafistas. Estas, diga-se de passagem, tornaram-se o cão raivoso do ditado americano que orienta quem encontre um não a matá-lo, mas a jogá-lo no quintal de um inimigo.

Os milicianos curdos acreditaram que os EUA estavam a ajudá-los na criação de um Estado curdo, apenas para ver-se de mãos abanando quando a conquista das áreas petrolíferas foi atingida pelos americanos

Quando se pensa que o objetivo teórico das ações militares autorizadas pelo Congresso dos EUA seria capturar Osama Bin Laden (que fugiu do Afeganistão logo antes da invasão americana e aparentemente morreu de falência renal no ano seguinte) e vingar o 11 de Setembro, vê-se a tremenda utilidade política dos atentados ocorridos quase 20 anos atrás. No plano externo, ao gerar o caos em tão vasta região, gerou-se também a crise migratória que hoje assola a Europa. No plano interno, foi possível a criação de um tremendo sistema de segurança e vigilância dos próprios cidadãos americanos. Agora, então, com o novo pretexto dado pela pandemia, as ações de controle interno dos EUA correm sério risco de vir a gerar uma ditadura e/ou uma nova guerra civil.

Como disse Churchill, afinal, “nunca se deve desperdiçar uma boa crise”...

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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