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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Cerco à Eurásia

(Foto: Christof Stache/AFP)

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A gigantesca massa de terra ininterrupta chamada Eurásia sempre foi o centro da civilização. Em comparação a ela, nós, das Américas, somos a periferia da periferia. Estamos tão longe que, mesmo tendo sido iniciadas por eurasianos na remota Antiguidade, as civilizações americanas desenvolveram-se em separação completa. A própria África, berço da humanidade, também acabou ficando para trás na marcha civilizatória, devido à barreira natural do Saara.

Já na Eurásia, o processo foi diferente. Com as idas e vindas de caravanas comerciais, povos ou tropas, os contatos comerciais e culturais jamais foram completamente interrompidos, ainda que prosseguindo com maior ou menor dificuldade através das cadeias montanhosas que levaram a geografia a considerar as “protuberâncias” europeia e indiana da vasta Eurásia entidades distintas. As vastas estepes gramadas do interior eurasiano tornaram possíveis os ataques a centros civilizacionais distintos e distantes encetados pelos nômades citas, tártaros, hunos e mongóis, entre tantos outros, sem com isso facilitar o comércio. Este, todavia, sempre existiu e de alguma forma persistiu, ainda que situado mais ao sul, ligando o Mediterrâneo à Índia e à China por intermédio da Pérsia, sempre agarrado às vastas cadeias de montanhas até hoje habitadas por povos túrquicos.

Do Mediterrâneo, no “nosso” lado, os modos de vida civilizados foram se propagando para o norte, mais ainda com a Cristandade levando-os além da área que o Império Romano conseguira dominar em seu apogeu. Do extremo norte europeu, por sua vez, foi levada a civilização aos povos eslavos, alcançados na extremidade ocidental das vastas e até hoje vazias estepes da Eurásia central. Do outro lado, a Índia e a China desenvolveram-se separadamente (mesmo pela dificuldade de transpor os Himalaias, que os separam), mas com contatos culturais frequentes; o budismo, religião tradicional do Extremo Oriente, afinal, teve origem no subcontinente indiano.

Após a devastação causada pelo comunismo no século 20, tanto Rússia quanto China adotaram formas híbridas de governo e, junto aos multimilenares parceiros comerciais persa e indiano, uniram-se em aliança

Com o surgimento do Islã e sua conquista pela espada de vasta área, estendendo-se do norte africano antes fenício e depois romano à Pérsia, e desta às terras altas dos povos túrquicos, contudo, dificultou-se o diálogo cultural, e mesmo comercial, entre os extremos ocidental europeu e oriental asiático do mesmo vasto continente eurasiano. Ele continua, no entanto, sendo de muitas maneiras o centro do mundo; uma zona vasta demais para unir sob um mesmo governante, com povos tantos e tão díspares que não é possível evitar o espanto quando se começa a conceber tamanha diversidade.

O caminho do comércio entre as extremidades eurasianas, no mundo antigo, era conhecido como “Rota da Seda”, por ser a seda chinesa um produto sempre valioso em qualquer sociedade. Camelos abarrotados de mercadorias cruzavam sem cessar tal caminho, vasto de milhares de quilômetros, fazendo com que uma dama romana ou medieval pudesse comprar seda recém-chegada duma viagem de cinco a dez anos da China a suas mãos. Ao longo deste caminho, civilizações, ideias e povos traçavam algum contato cultural, inevitável consequência e adjuvante do contato comercial. Foi encontrada no século passado uma caverna perto da extremidade chinesa da Rota da Seda em que alguém escondera centenas de milhares de manuscritos produzidos ou deixados num posto de comércio e caravanas. Escritos em centenas de línguas, tratando de inúmeras religiões, trazendo anotações comerciais de fantástica diversidade de mercadorias, eles trazem a nossos olhos um vislumbre do que era aquela rota de “globalização”, aquela tremenda encruzilhada de culturas do centro do mundo.

No alvorecer da Era Moderna, entretanto, uma nova tecnologia permitiu que, literalmente, se pudesse dar a volta à Rota da Seda: as Grandes Navegações, que ao fazer dos mares caminhos também tiveram o bônus de incluir a periferia americana no comércio internacional. Um piscar de olhos mais tarde, e o avanço tecnológico levou à criação de navios a vapor econômicos o bastante para valer mais a pena usá-los que veleiros. Destes, então, surgiu o equivalente moderno das hordas de cavalaria nômade das estepes eurasianas: a canhoneira blindada, permitindo uma projeção de poder por via marítima que antes só podia ser alcançada por via terrestre, em uma fração do tempo por uma fração do custo.

Inverteu-se assim completamente a dinâmica geopolítica: as cadeias de montanhas e desertos que protegiam as civilizações das hordas nômades das estepes, permitindo que os litorais eurasianos se tornassem os pontos focais das grandes civilizações, perderam quase totalmente seu papel protetor. Os mares, que antes eram o maior e mais inexpugnável dos fossos, nutrindo os litorâneos ao mesmo tempo que garantiam que dificilmente por lá chegaria algum inimigo, tornaram-se avenidas abertas para o que se convencionou chamar “diplomacia da canhoneira”.

A China e o Japão, que haviam se fechado a todo contato exterior no início das Grandes Navegações, tiveram seu ensimesmamento voluntário arrombado por canhoneiras anglo, que os forçaram a abrir os portos e mesmo a aceitar colônias extraterritoriais estrangeiras à beira dos melhores portos. A China passou, então, pelo dito Século de Humilhação, em que chegou a sofrer traficantes de ópio apoiados pela Coroa inglesa forçando-a a permitir a livre venda do perigoso estupefaciente. A Índia teve sua indústria destruída pela mesma Inglaterra, então o grande poder naval, sendo forçada a regredir à situação de mera produtora de matérias-primas e importadora de produtos manufaturados ingleses, de qualidade muito inferior aos que produzia e vendida a preços muito mais altos. A Pérsia, tendo perdido sua posição de nexo comercial da Rota da Seda, tornou-se um paiseco pobre e periférico, sofrendo humilhações britânicas, russas e mesmo turcas.

O auge desta situação geopolítica em que o mar tomou as vezes da terra ocorreu no século passado, quando as guerras mundiais (na verdade apenas uma, em duas etapas) foram combatidas em grande medida por ao menos via naval, ainda que a exaustão militar alemã tenha ocorrido na luta pelo território eurasiano profundo, com a invasão da Rússia. O Japão, geograficamente situado de modo semelhante à Inglaterra, teve na Segunda Guerra o seu momento de potência naval, dominando enorme parcela das vastas cadeias de ilhas do Pacífico. Os EUA, continuação civilizacional da metrópole inglesa, aproveitaram sua condição de país altamente industrializado para, por meios transversos, tornar-se a potência naval por antonomásia. Seus navios porta-aviões, verdadeiras bases aéreas flutuantes, possibilitaram aumentar exponencialmente a projeção de força da era das canhoneiras; seus submarinos tornaram-lhe possível, como no apelo poético de Castro Alves, “fechar a porta” de vastos mares.

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Esta era, todavia, está chegando ao fim. Após a devastação causada pelo comunismo no século 20, tanto Rússia quanto China adotaram formas híbridas de governo e, junto aos multimilenares parceiros comerciais persa (forçado à aliança pelos abusos do poder financeiro americano) e indiano, uniram-se em aliança. O objetivo maior desta aliança é a reunião da Eurásia pela construção de vastíssimas redes de transporte rápido e moderno unindo todas as partes do enorme continente central e todos os seus grandes portos.

Esta nova Rota da Seda é provavelmente o maior acontecimento comercial e geopolítico de toda a história. Nunca terá a humanidade sido tão fácil, eficiente e completamente conectada. Um produto chinês poderá chegar à Europa, e vice-versa, em uma fração do tempo do transporte marítimo, por uma fração do custo. Com a união das ferrovias rápidas e portos, até mesmo as zonas periféricas, como a África, a Oceania e as Américas, terão enormes facilidades de exportação e importação do que quer que seja.

Há, porém, no tabuleiro geopolítico um gorila ensandecido, ferido de morte e desesperado, que tenta impedir que isto ocorra. As rédeas do governo americano, ao menos desde o assassinato de Kennedy, estão firmemente nas mãos do inimigo interior contra o qual o presidente Eisenhower alertara: a união das forças militares com a indústria bélica e os políticos por esta bancados. Quando, por engano, permitiu-se a eleição de Donald Trump com um discurso menos belicista (erro que dificilmente os verdadeiros donos do poder permitirão que se repita), ficou claro que se sentar na Sala Oval da Casa Branca é muito diferente de ter poder de fato. E agora, com a eleição de um evidente fantoche, a liderança  “ex” trotskista dita neoconservadora está decidida a recuperar o tempo perdido, lançando os EUA diretamente no caminho da guerra. Mais ainda, duma guerra mundial que desta vez eles não têm como vencer.

“Que babaquice é a guerra”, escreveu com razão Sartre; a economia americana, todavia, como avisara Eisenhower, gira hoje em função dela

Joe Biden, entre outras declarações incendiárias, disse que a China deseja tornar-se “o país mais importante, rico e poderoso do mundo, mas isso não vai acontecer no meu plantão porque os EUA vão continuar a crescer e a expandir-se”. Seria até uma atitude relativamente saudável, se por “crescer e expandir-se” ele estivesse se referindo à mera concorrência comercial pacífica. Mas não é o caso; infelizmente, trata-se de crescimento e expansão das guerras de agressão com que os EUA têm, desde o fim da Segunda Guerra, devastado grande número de países. Hoje a maior parte dos países do mundo tem bases americanas em seu território, ainda que contra a vontade do governo (Síria, Iraque e Cuba, entre outros), isso quando ainda têm governo depois da devastação americana.

O desgoverno que tem Biden como carranca de proa está fomentando guerras e provocando gratuitamente todas as antigas civilizações eurasianas, num vasto arco em que apenas o norte gelado está mais ou menos a salvo. Mesmo isto, todavia, não é garantido, na medida em que o possível descongelamento parcial do Ártico pela mudança climática ora em curso pode levar à abertura de novos teatros de conflito lá.

“Que babaquice é a guerra”, escreveu com razão Sartre; a economia americana, todavia, como avisara Eisenhower, gira hoje em função dela. Resumindo muito, os EUA aproveitam o fato de o dólar (ainda) ser a moeda de troca internacional convencional para sustentar-se pela emissão sem lastro de mais moeda. A desindustrialização dos EUA, hoje quase total (em benefício principalmente da China), porém, tem sua exceção na indústria bélica. É ela que gera empregos na produção direta. Seu produto, todavia, tem apenas um fim: matar e destruir, e sendo por sua vez destruído no processo. É necessário que cartuchos sejam disparados, mísseis explodam festas de casamento e robôs assassinos voadores (ditos drones, mas que nada têm a ver com os simpáticos quadricópteros de brinquedo) chacinem pés-rapados moreninhos planeta afora para que continue a demanda que move a indústria bélica americana.

Vejamos, então, alguns dos mais perigosos conflitos que vêm sendo exacerbados e mesmo provocados gratuitamente pela “nova” administração americana em todo o entorno da Eurásia, em sentido anti-horário, iniciando-se no norte da Europa. Recomendo a quem não conheça bem a geografia eurasiana munir-se de mapas ao ler o restante deste artigo.

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No Mar Báltico, existe um enclave russo chamado Kaliningrado, que, como quase tudo lá, já mudou de dono várias vezes. É a mesmíssima cidade então prussiana de Königsberg em que vivia o filósofo alemão Kant. Violando a palavra dada aos russos quando da dissolução do Pacto de Varsóvia, os EUA incluíram na aliança militar antirrussa Otan a Polônia e a Lituânia, antigos estados-fantoche soviéticos que separam hoje Kaliningrado da Belarus, ainda aliada a Moscou. Atiçada por Washington, a Polônia tem rugido que deseja incorporar Kaliningrado, e provocado, por enquanto ainda diplomaticamente, a Belarus.

Passando pelo fundo do mesmo Báltico, um gasoduto ligando a Rússia à Alemanha, previsto para estar concluído em menos de dois meses, tem sido ameaçado pelos americanos. A Alemanha fez uma aposta arriscada em energias renováveis (solar, eólica etc.) e a perdeu, passando por sérios problemas no último inverno europeu. Para ela, é fundamental ter acesso a combustível barato e em grande quantidade para garantir a produção de eletricidade; é aí que entra o gasoduto.

Os EUA, porém, vendem à Alemanha caríssimo gás natural “engarrafado” em navios-tanque, e não querem perder o freguês. O resultado é que qualquer empresa europeia ligada à construção do gasoduto está sendo punida pelos americanos, forçando a Alemanha a aumentar ainda mais a participação russa no empreendimento. Nos últimos dias, navios de guerra americanos têm ameaçado os navios-oficina russos que estão concluindo a instalação do gasoduto, e já houve até mesmo ameaças americanas de vandalizá-lo para impedir o seu funcionamento. Como a Alemanha é um fantoche americano, e em seu território estão permanentemente dezenas de milhares de soldados americanos desde o fim da Segunda Guerra, para os EUA é inadmissível que ela busque seus próprios interesses em detrimento dos americanos.

A Ucrânia jamais teria capacidade para retomar a Crimeia, mas, ao colocar tal objetivo como política de Estado, na prática declarou guerra à Rússia

Ao sul, ao redor do Mar Negro, os EUA estão atiçando outro conflito, que corre o sério risco de estourar e mesmo de desencadear nova guerra mundial. Num golpe de Estado financiado pelos EUA, foi instalado na Ucrânia um governo apoiado por grupos de extrema-direita, muito afeitos a suásticas e outras insígnias neonazistas. A Ucrânia e a Rússia sempre foram nações muito próximas; durante a vigência da União Soviética, a Ucrânia era praticamente província russa, e fez parte do Império Russo. Havia na Ucrânia duas Igrejas orientais, uma subordinada à Santa Sé e a outra ao Patriarcado de Moscou. Para incentivar o nacionalismo ucraniano antirrusso, os EUA convenceram (simoniacamente) o Patriarca de Constantinopla a declarar autocéfala (ou seja, independente) a igreja antes subordinada a Moscou. Com isso destruíram a intercomunhão dos dois maiores patriarcados cismáticos orientais.

No leste ucraniano, na região do Rio Don, dita Donbass, a maioria da população é de fala e cultura russa, e centenas de milhares deles são cidadãos russos. Com a ascensão da extrema-direita antirrussa e a subsequente proibição até mesmo do uso da língua russa, os habitantes da região declararam-se independentes da Ucrânia. Já ao Sul da Ucrânia, a província da Crimeia, desde o século 18 administrativamente parte da Rússia, mas transferida para a Ucrânia pelo líder soviético ucraniano Nikita Kruschev, também declarou primeiro sua independência, como resultado de outro referendo, e escolheu tornar-se novamente russa através de outro. A Rússia a retomou, sem reação militar, e construiu uma ponte rodoferroviária ligando diretamente Rússia e Crimeia sobre a entrada do Mar de Azov.

O governo ucraniano, confiando nas reiteradas promessas de ajuda e parceria dos EUA e da Otan, em que deseja entrar (já é “parceira para a paz”, irônica designação categorial duma espécie de país-estagiário da Otan), declarou semana passada oficialmente estar entre suas prioridades retomar tanto o Donbass quanto a Crimeia. A conquista do Donbass, que se quer independente, representaria uma ameaça a cidadãos russos, mas não à integridade territorial russa. Já a da Crimeia, tanto em termos de percepção cultural russa quanto de estupidez, equivaleria a uma ameaça mexicana de reconquista da Califórnia e do Texas. A Ucrânia jamais teria capacidade para tal, mas, ao colocar tal objetivo como política de Estado, na prática declarou guerra à Rússia. Até mesmo uma aventura no Donbass seria extremamente arriscada para ela se não contar com apoio militar direto e aberto da Otan (de que não faz parte plenamente, pelo menos ainda).

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E, se tropas forem mandadas pelos países-membros da Otan, a doutrina russa de guerra manda atacar os centros de comando de tais tropas, o que na prática significaria bombas russas na Europa ocidental, Polônia, Turquia, e quiçá nos próprios EUA, que jamais sofreram no próprio território continental ataques militares do exterior. Em outras palavras, ou bem uma nova guerra mundial ou bem um holocausto nuclear. E isto tudo está sendo abertamente fomentado pelos EUA e Turquia, que têm mandado centenas de milhões de dólares em armamentos e dado sucessivas garantias aos aventurescos neonazistas ucranianos.

Ainda na mesma região, o apoio americano à Geórgia, que igualmente tem conflitos territoriais com a “mãe” Rússia, ameaça atiçar as brasas dum conflito militar mais ou menos suspenso há 13 anos. A recente guerra entre a nação cristã multimilenar armênia e os islâmicos turcos do Azerbaijão (outro “parceiro para a paz” da Otan) também teve auxílio americano (claro, para o lado anticristão) e da Turquia (membro da Otan). O conflito cessou, em prejuízo da Armênia, graças à intervenção de forças de paz russas, mas o Azerbaijão, também amparado pelos EUA e parceiros de Otan, agora ameaça cortar o acesso armênio ao Irã.

Descendo um pouco ao sul, encontramos a Síria, onde tropas de ocupação americanas estão estacionadas para – nas palavras do próprio Trump – “ficar com o petróleo” e auxiliar milícias islamofascistas, dentre as quais a Al-Qaeda e o Estado Islâmico, a derrubar o governo internacionalmente reconhecido do país. Imediatamente a leste está o Iraque, invadido, destruído e ainda ocupado pelos EUA, apesar das sucessivas e reiteradas demonstrações de desagrado do governo local em relação à presença das tropas americanas. Cabe lembrar que o pó das munições de urânio americanas, disparadas às dezenas de toneladas no pobre país, causa até hoje enorme incidência de má-formação fetal. Aliás, exatamente o mesmo que o desfolhante Agente Laranja, usado na guerra do Vietnã, continua fazendo. Não basta matar com tiros ou napalm; é necessário aleijar os descendentes das vítimas e envenenar a todos os que venham a morar nos países invadidos pelos EUA, aparentemente.

Motivados pela memória recente do Século de Humilhação, os chineses conseguiram alcançar e mesmo sobrepujar em termos de produção industrial e de combate à pobreza os países que os haviam humilhado

O próprio Irã, nome atual da antiquíssima Pérsia, que separa o Iraque ocupado pelos EUA do Afeganistão igualmente ocupado, vem sendo pintado como monstruosa ameaça e vitimado com todo tipo de sanção. Evidentemente, é mais um incentivo para que participe da construção da nova Rota da Seda.

Pulando vários outros conflitos menores incentivados pelos EUA, chegamos àquele com maior chance de levar a uma escalada bélica potencialmente mundial: a China. Motivados pela memória recente do Século de Humilhação, os chineses conseguiram alcançar e mesmo sobrepujar em termos de produção industrial e de combate à pobreza os países que os haviam humilhado. Tão vertiginosa foi sua ascensão que neste último par de décadas a China usou mais cimento que os EUA em todo o século 20. O que os EUA eram na Segunda Guerra – a potência industrial por antonomásia, capaz de produzir em enorme quantidade todos os insumos necessários para a manutenção das forças aliadas – é hoje a China, para a qual os EUA terceirizaram toda a sua produção não diretamente militar.

É ainda na China que são produzidas peças e matérias-primas necessárias para a produção de armamentos americana, o que faz com que uma eventual paralisação do comércio americano com a China, causada por um conflito militar, conduzisse inevitavelmente à ruptura total das linhas de abastecimento americanas, tanto civis quanto militares. Hoje mesmo está havendo um sério problema de desabastecimento nas montadoras americanas de automóvel, causado pelas sanções impostas por Trump (e mantidas pela nova administração), que na prática impediram a compra de alguns chips chineses baratíssimos, mas necessários para a produção dos carros e só fabricados lá. O mesmo, claro, vale para mísseis, aviões de caça, o que for.

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Pois são ao menos três as brigas que os EUA vêm tentando comprar com os proverbialmente pacientes chineses. A primeira delas é a ajuda americana à Índia em seu conflito de fronteira com a China, que vem se tornando cada vez mais intenso. Evidentemente, sendo tanto China quanto Índia quanto Paquistão (rival da Índia e vizinho dos territórios disputados nos picos gelados do Himalaia) potências nucleares, é imenso o potencial de destruição de tal conflito. Para os EUA, todavia, isto parece ser algo a buscar, não a evitar.

A segunda é um pouco mais complexa, mas bastante evidente quando se olha para um bom mapa da região: paralelamente à costa chinesa há uma vasta fila de ilhas, em dois arcos. O primeiro sai da Coreia (de que falaremos a seguir), passa pelo Japão (que é um arquipélago) e segue até a ilha de Formosa, e o segundo vai desta ao Sudeste Asiático, beirando as Filipinas. Estrategicamente, quem controlar as ilhas tem controle total sobre o acesso internacional aos portos chineses. É, diga-se de passagem, uma situação estratégica em muito semelhante à que levou Israel a ocupar e anexar as Colinas de Golan, donde era possível bombardear toda a Galileia, ainda que em escala muitas vezes maior. Ora, ainda está crua a memória dos horrores perpetrados pela diplomacia de canhoneira ocidental e pelas tropas de ocupação japonesas no recentíssimo passado – o Japão invade a China regularmente, a cada três ou quatro gerações. Tendo agora a China voltado a ser um país rico, evidentemente o controle das ilhotas do Mar da China passou a ser uma prioridade estratégica básica. Para tal fim muitas das ilhotas, das quais várias que só emergem naturalmente na maré cheia, foram aterradas e transformadas pela China em bases militares aeronavais.

Algumas delas, contudo, são disputadas pelo Japão, Filipinas e Vietnã, ainda que em função dos pesqueiros ao redor, não duma habitabilidade que os chineses só produziram a duras penas nos últimos anos. Os EUA, então, decidiram anunciar diretamente e ao público internacional seu compromisso de defender o lado não chinês dessas disputas por ilhotas. Por meios militares inclusive. Em outras palavras, comprometeram-se a declarar guerra à China (que tem um exército maior que toda a população americana e mísseis ultrassônicos capazes de afundar qualquer navio de guerra americano que dela se aproxime com más intenções) em função da territorialidade de arrecifes de mar aberto!

São ao menos três as brigas que os EUA vêm tentando comprar com os proverbialmente pacientes chineses

Para deixar bem claro que estão, sim, procurando confusão, navios americanos têm feito demonstrações de força junto às tais ilhotas, aviões de guerra americanos as têm sobrevoado (por vezes com os transponders simulando aviões civis), e exercícios de guerra têm sido feitos pelos EUA em conjunto com os países que disputam ilhotas com a China. A agressividade americana na área está sendo tamanha que o próprio governante filipino (um dos beneficiários das garantias americanas!) já ameaçou expulsar as bases americanas estacionadas em seu país se for comprovado que há nelas armas atômicas, como se tem dito haver. Do mesmo modo o Vietnã – que já teve de se defender, com sucesso, de uma invasão chinesa em 1979 – não apenas negou aos americanos autorização para construção de bases em seu território, como retirou-se dos exercícios de guerra conjuntos que costumeiramente vinha fazendo.

Mesmo sem apoio dos supostos interessados, contudo, os EUA continuam suas provocações por todo o Mar da China. Vários incidentes que poderiam dar início a uma guerra mundial e/ou nuclear, como tentativas americanas de abalroamento de navios militares chineses, já foram evitados por muito pouco nos últimos meses. Cabe lembrar que – ao contrário da lenda – não é necessária sequer a anuência do presidente americano para que um comandante naval empregue uma arma atômica; foi apenas um motim a bordo que impediu tal tragédia durante a Crise dos Mísseis russos em Cuba, no século passado, quando o comandante de um submarino americano decidira disparar um míssil nuclear contra um comboio de navios russos. Brincar de “quem pisca primeiro” em tais circunstâncias é simplesmente loucura.

Finalmente, o terceiro campo de provocação americana contra a China se dá em torno de Formosa. O governo chinês pré-comunista fugiu para esta ilha em 1948, e até hoje mantém lá a ficção de ser o governo de toda a China, com parlamentares supostamente representando a China continental e outras gracinhas. Tanto o governo de Formosa quanto o da China comunista, assim, declaram-se o verdadeiro governo de toda a China. Em função da irrealidade de tal situação de mais de 70 anos, todavia, há em Formosa um sério movimento “separatista” (ou seja, em prol do reconhecimento da realidade de se tratar de “outra China”). Para o governo da China comunista, contudo, Formosa é apenas uma província desgarrada e amotinada, o que faz com que seja inaceitável tal declaração de independência. Pois, evidentemente, os EUA estão bancando campanhas em prol de tal declaração, passando formações de navios de combate no estreito que separa Formosa do continente, e o que mais puderem fazer para provocar o governo chinês neste ponto. Aliás, do mesmo modo vêm eles incentivando movimentos separatistas em Hong Kong, cidade devolvida à China há pouco tempo após longa colonização inglesa.

A única “regra” que vale para os EUA é que o seu interesse é a única regra

Concluindo nosso passeio pelas bordas não geladas da Eurásia, chegamos finalmente à Coreia, país dividido desde 1950 em dois, com o Norte (que faz fronteira com a Rússia e a China) comunista e o Sul capitalista. No Sul, imensa concentração de tropas americana lembra que a Guerra da Coreia nunca acabou, e o estado de guerra declarada entre os EUA e a Coreia do Norte continua em vigor há quase três quartos de século. Ainda que sejam muito poucos os incidentes reais de violência, é extremamente provável que, se não fosse tal estado de guerra permanente, a Coreia do Norte teria seguido o caminho dos demais países da região e abandonado há muito o comunismo. Tendo, porém, até mesmo mísseis atômicos americanos apontados diuturnamente para seu território a partir das imensas bases deste país no Japão e na Coreia do Sul, o pobre reino eremita norte-coreano transformou-se num imenso quartel que vive em função da defesa antiamericana, agora já na terceira geração de reizinhos loucos e servos famintos.

No discurso americano, os EUA seriam a “polícia do mundo”, e seu domínio econômico e militar uma “ordem baseada em regras”. Segundo Biden, o que estaria em jogo agora seria um confronto entre a democracia e a autocracia, sendo aquela representada pelo país que não consegue organizar eleições (os EUA) e esta, por todos os que não lhe prestam vassalagem, independentemente da forma de governo que adotem. Aliás, é curioso (e potencialmente perigoso para a oposição política doméstica americana) que a acusação bideniana de “autocrata antidemocrático” seja exatamente a mesma que foi feita a seu antecessor ao longo de todo o mandato.

A paz a cada dia parece um sonho menos provável, devido aos atos criminosos da agonizante superpotência que se quer hegemônica

Quanto a uma “ordem baseada em regras”, nada poderia ser mais risível. A única “regra” que vale para os EUA é que o seu interesse é a única regra. Desde a violação sistemática dos tratados feitos com os índios ao longo do século de genocídio de tais populações à admissão na Otan de antigas repúblicas socialistas soviéticas, os EUA sempre foram internacionalmente conhecidos por não respeitarem nem o Direito Internacional nem os próprios tratados assinados por seus governantes, a não ser quando isso lhes for de proveito imediato. Os EUA entram e saem dos tratados à vontade, ignoram solene e completamente as resoluções até mesmo dos organismos internacionais de que fazem parte e em que têm direito de veto, e comportam-se, desde sempre, como um touro numa loja de louças. Ou como um sistemático predador, uma ave de rapina, ou um assaltante em escala ampliada.

Agora, porém, a chance de tais atos receberem resposta à altura e, com isso, causar enorme perda de vidas e fortunas, pela primeira vez atingindo o próprio território americano, tornou-se exponencialmente maior. A paz a cada dia parece um sonho menos provável, devido aos atos criminosos da agonizante superpotência que se quer hegemônica. Ela não consegue aceitar o fato de as coisas estarem lenta e finalmente voltando à normalidade, após um piscar de olhos em que ela gozou de indisputada supremacia e a jogou fora por incompetência. Não, Fukuyama, não foi a história que acabou, e sim a validade dessa curtíssima experiência social maçônica. Melhor ir-se, suavemente, nessa boa noite.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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