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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Complexidade

Hélices de DNA. (Foto: PublicDomainPictures/Pixabay)

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O traço mais marcante do pensamento moderno, desde suas mais bárbaras origens, é a ultrassimplificação do que é na verdade extremamente complexo. Evidentemente tal fuga sistemática da realidade não teria como dar certo. Contudo, isso jamais impediu os poderosos de matar os mais fracos ao tentar aplicar “soluções” simplificadoras. Lutero começou a brincadeira, ao tentar substituir um corpus doutrinário que à época já tinha milênio e meio de aprofundamento pela mera Bíblia, um livro (aliás por ele mutilado, ainda por cima, tendo-se-lhe sido arrancados sete textos) que contém apenas um reflexo incompleto dum momento anterior deste aprofundamento. Com isso, evidentemente, não apenas voltaram a ser discutidos temas que já haviam sido definidos, como ainda se perdeu a possibilidade de um dia tê-los novamente definidos. E daí surgiram formas novas de erros antigos, juntando-se a outros erros novos numa salada de frutas teológica que faz com que hoje a confusão doutrinária protestante atenda por Legião.

Daí a coisa foi ficando progressivamente mais reducionista, num crescendo de absurdidades que afetou a tudo e a todos. O ser humano foi reduzido na política à sua faceta econômica – provavelmente uma das mais insignificantes na sua imensa complexidade. As “nações” inventadas pelos Estados modernos eliminaram, no mais das vezes pela força, riquezas culturais ancestrais que jamais serão recuperadas. A riquíssima metafísica escolástica foi substituída por abstrações matemáticas incapazes de lidar com o que realmente importa – o amor, a vida, a família...

Provavelmente o momento mais patético desse triste fechamento à realidade foi por volta da virada do século 19 pro 20, quando a empáfia dos barbudíssimos “sábios” os levava a crer que tudo sabiam, tudo conheciam, tudo dominavam. Houve, dizem, quem propusesse o fechamento do Escritório de Patentes britânico. Afinal, “tudo já havia sido inventado”! Darwin teria desencantado a vida; Freud, a psique; Marx (ou Adam Smith, podem escolher), a sociedade. O homem branco europeu (quanto mais nórdico, ou seja, mais branco, melhor) seria o auge da evolução, a religião seria superstição e a técnica tudo resolveria.

O momento mais patético desse triste fechamento à realidade foi por volta da virada do século 19 pro 20, quando a empáfia dos barbudíssimos “sábios” os levava a crer que tudo sabiam, tudo conheciam, tudo dominavam

Qual não foi a surpresa de toda essa gente quando, no século 20, se veio a descobrir, campo por campo, que a coisa era infinitamente mais complicada. Surgiu até a piada de que a função social do estudioso de hoje é dizer “não é tão simples assim” a qualquer afirmativa sobre sua área de estudos que um não especialista avente pronunciar. No âmbito sociopolítico, infelizmente, a fantasia em grande medida perdurou e perdura até hoje. Afinal, com a centralização moderna das sociedades, ficou fácil tomar o governo pelo povo, e este por uma nação.

Na física, porém, assim como na biologia, tudo virou de cabeça para baixo. O que era tido por caótico se descobriu dotado duma ordem de complexidade extrema. O átomo (“indivisível” em grego), descobriu-se, não o é. Para piorar, as partículas subatômicas (por que não “os tomos”? Seria tão mais divertido chamá-las assim) apresentam um comportamento que até hoje faz muita gente coçar a cabeça. O limite inferior da ciência biológica, que era a célula, revelou-se um ente complexíssimo, com sistemas próprios de ação, alimentação e reprodução inconcebíveis para os “sábios” barbudos d’antanho. Descobriu-se que os organismos vivos têm um código genético a sustentar os fenômenos mendelianos.

E foi aí que a porca torceu, num belo helicoide de DNA, o rabo. Primeiro descobriu-se que enormes porções do DNA, que eram tidas por “lixo”, por resquícios mal lavados de fracassos evolucionais, na verdade têm funções e mais funções. E, mais ainda, descobriu-se que as funções dos genes que já se conhecia são desempenhadas, mais uma vez, de forma infinitamente mais complexa. As dobras das proteínas, de alguma forma ordenadas pelos genes (quais, como e quando é outra história), ao contrário do que os modelos simplificatórios assumiam, são tão complexas que simplesmente não há computador que possa calculá-las, e cada gene pode influenciar centenas ou mesmo milhares de fatores na produção de proteínas. Os mecanismos de ação de vírus e outros entes intervenientes na reprodução celular, percebeu-se, são também ordens de grandeza mais complexos que o que se achava saber.

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Quando foi lançado o projeto de sequenciamento do genoma humano, tinha-se por certo que cada gene faria uma coisa, e só essa coisa. Teria sido finalmente alcançada a “base”, as porcas e parafusos do (incompreensível, para a ciência moderna) fenômeno da vida. Sequenciando-se, ou seja, reconhecendo-se os componentes do código genético, seria em tese possível criar homens sob medida. Provavelmente, até os tais super-homens nórdicos da fantasia dos “sábios” de que falei há pouco.

Mas, claro, também salta aos olhos hoje que o buraco é bem mais embaixo. Uma primeira experiência humana (ao menos que se saiba; certamente há muitas outras, secretas) foi realizada por um geneticista chinês, que resolveu brincar de deus com os genes de duas menininhas, implantando-lhes um gene que as tornaria imunes à Aids. Previsivelmente, não funcionou como previsto: apenas uma delas tem o tal gene implantado, e mesmo assim diferente do planejado e que ocorre em apenas algumas partes do corpo. Descobriu-se ainda, na prática, inúmeros outros efeitos da sinistra manipulação, e é garantido que ao longo da vida das pobres crianças outros surgirão. O mesmo ocorreu com outras experiências publicadas, que por piores que sejam pelo menos não usaram seres humanos como cobaias: coelhos geneticamente modificados para não engordar ganharam línguas enormes, porcos nasceram com vértebras a mais, e por aí vai. Simplesmente não se sabe o bastante para que se possa ter qualquer segurança ao brincar de deus.

Descobriram-se ao menos quatro níveis de complexidade muito além do que se imaginava estar em jogo na genética. Há genes que são usados aos pedaços; outros são instantaneamente modificados, ativando-se e desativando-se em determinadas células até mesmo em função do estado de espírito ou do nível de atividade física da pessoa. A multidão de micro-organismos que nos habita as entranhas, e sem os quais não digeriríamos nada, troca pedaços de DNA com o corpo. Mecanismos completamente inexplorados de RNA mensageiro editam em tempo real células corpo afora. E por aí vai.

De sementes e insetos geneticamente modificados a projetos de construção de super-homens é um contínuo de arrogância, em que qualquer corte será arbitrário

Até mesmo algumas das vacinas contra a Covid, lamentavelmente, empregam técnicas baseadas em conhecimentos completamente insuficientes dos mecanismos genéticos. Os efeitos colaterais dessas experiências acabam obviamente sendo completamente imprevisíveis. Já se descobriu, por exemplo, que a parte do DNA do vírus da Covid que algumas vacinas ensinam o corpo a reproduzir faz mal por si mesma, e que – ao contrário do que se imaginava – a vacina não fica apenas onde foi aplicada. Daí haver casos de inflamações cardíacas em gente saudável e até mesmo de rejeição da própria placenta, impedindo gravidezes em tudo o mais saudáveis de ir adiante. Por outro lado, é perfeitamente possível que haja efeitos colaterais imprevistos que sejam benéficos a quem por eles seja afetado. O problema maior é que é impossível saber de antemão os resultados do que acaba sendo uma reprodução em escala infinitamente maior da experiência do geneticista chinês, hoje aliás merecidamente habitante duma penitenciária. Bom, ao menos é o que foi dito pelas autoridades chinesas; nada impede que lhe tenha sido dado um laboratório maior e melhor, com bebês aos magotes para tentar criar os “X-Men”. Comunistas, lembro, mentem sem pejo se isso ajudar o Partido.

A arrogância de alguns cientistas atuais, tristes herdeiros dos “sábios” barbudos de cento e poucos anos atrás na autoconfiança que os leva a achar que podem fazer o que quer que esteja tecnicamente ao alcance, acaba sendo o maior perigo. De sementes e insetos geneticamente modificados a projetos de construção de super-homens é um contínuo de arrogância, em que qualquer corte será arbitrário. Comprova-se mais uma vez o que já diziam os gregos: os deuses primeiro enlouquecem aqueles que desejam destruir.

Esta arrogância já teve, tem hoje e terá ainda muitas vítimas humanas. Contudo, a maior dentre elas provavelmente será a confiança na tal deusa moderna chamada “Ciência”. Quem conseguirá confiar no que se lhe diz em nome da tal deusa, ao ver os horrores perpetrados em seu nome?! Ora, convenhamos, “ciência” não é mais que estar ciente de algo. É apenas uma condição interna dum ser humano, não uma coisa coesa e realmente existente. Mais ainda: é uma condição que não implica necessariamente em estar ciente do tanto que não se sabe. O Oráculo de Delfos declarou que Sócrates era o maior sábio grego, justamente por ele, e só ele, ter ciência de que nada sabia.

É esta a ciência que hoje nos falta; seu nome real é sabedoria.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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