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Numa dessas puxadas de tapete em que Deus parece Se comprazer, bem quando eu estava começando a curtir meu papel de avô – que consiste em mimar e estragar os filhos daqueles que a duras penas educamos quando eram crianças – eis que me vejo com duas crianças em casa a educar, exercendo o surrado papel de figura paterna. De novo. Sim, sim, Deus zoa. O homem põe e Deus dispõe, diz o ditado. Ou, melhor ainda, nas sábias palavras do bardo de Liverpool, “‘vida’ é aquilo que acontece conosco enquanto estamos distraídos planejando outra coisa”. Enfim.
Com crianças vêm manha, bicos quilométricos e aquela total falta de bom senso, somada a uma aparentemente infinita capacidade de fazer besteira, quebrar coisas, machucar-se e tocar terror de modo geral. E vejo-me assim de volta aos truques que funcionaram décadas atrás, no adestramento dos meus. Sempre que uma criança me vem fazendo bico por conta de alguma violação percebida de uma certa equidade cuja expectativa irreal aparentemente nos vem de fábrica, digo a mesma coisa: “você não é um coitadinho”. Vendo-me na posição de educar membros de uma geração que mal que bem é a dos meus netos, não dos meus filhos, acabo sendo forçado a perceber mais e de maneira diferente o que já seria parte do meu ganha-pão: os fenômenos sociais. O “jeitão” de cada tempo, o “espírito dos tempos”, que os alemães chamam de “Zeitgeist”. Este, por sua vez, resulta numa visão de mundo compartilhada por uma geração, que os alemães (sempre eles!) chamam de “Weltanschauung” – nem tento pronunciar.
Pois estamos numa era cujo espírito poderia ser chamado “coitadismo”. E ele a tudo penetra, mesmo sem tevê em casa – pois vê lá se eu sou abilolado ao ponto de dar palquinho pro teatro de fantoches do capeta que Sérgio Porto sagazmente batizou de “máquina de fazer doido”. Todo mundo hoje quer ser vítima, todo mundo quer ser coitadinho. Ter tirado uma péssima mão no jogo de cartas da vida hoje em dia conta ponto. E não é nem necessariamente em busca de alguma suposta compensação; fosse o caso, seria simples malandragem. Como quando o pessoal da esquerda arrancou do Estado indenizações milionárias e isentas de imposto por terem sofrido alguma adversidade, por mais leve que fosse, durante os governos militares. Aquilo que Millôr Fernandes disse mais parecer investimento que patriotismo.
Estamos numa era cujo espírito poderia ser chamado “coitadismo”. Todo mundo hoje quer ser vítima, todo mundo quer ser coitadinho. Ter tirado uma péssima mão no jogo de cartas da vida hoje em dia conta ponto
Mas não; hoje em dia busca-se ser um coitadinho pelo simples fato de ter virado coisa fina ser um pobre-coitado, um sofredor. Há até (mais na gringa, de onde, como sempre, vêm as besteiras que macaqueamos) uma espécie de contagem de pontos de “interseccionalidade”. Se o sujeito é ao mesmo tempo membro de vários grupos de coitadinhos, se ele é um pobre-coitado plural, ele tem mais pontos nessa estranha competição de quem é mais azarado, e por isso mais gente bate palmas pra ele. Uma espécie de versão a rovescio da vanglória tradicional. Coisa de doido.
Poucas coisas podem ser piores que isso quando se está falando de como viver, de como ver o mundo. A “Weltanschauung” do coitadismo na prática impede a pessoa de ir adiante, de melhorar, pela simples razão de tratar como se vitória fosse aquilo que se sofre. Aquilo que os outros fazem a nós. As diversas formas de “opressão” que se sofre. Ora, rara é a pessoa que não sofre alguma coisa, que não tem alguma desvantagem ou sofrimento imposto a ela. Mais ainda: quanto mais confortável é a situação, mais graves parecem as supostas injustiças e maldades que se nos são feitas.
Li outro dia, pasmo, um longo artigo em que uma moça se lamuriava, afirmando-se uma pobre-coitada por ter, quando criança, participado num papel importante de um filme dirigido por um cineasta genial. Oh, como sofrera a pobre criaturinha! Cenas gravadas na água fria; o nefando ruído dos efeitos especiais numa cena que – ai dela! – teve de ser regravada várias vezes. E por aí vai. No fim do artigo, motivada e exaltada pelo coitadismo, a dramática figura ainda se deu ao desplante de escrever ao cineasta (que acabara de escolher o filho de uma amiga para outro filme) puxando-lhe as geniais orelhas e demandando que, quando fossem gravadas cenas na água, que essa fosse morna, e por aí vai. E o sujeito ainda teve a pachorra de responder gentilmente à zuretinha (será que esse tipo de doideira também conta pontos interseccionais? Não duvido).
O fato é que o mundo atual é dos coitadinhos, numa inversão satânica da bem-aventurança dos mansos, que herdarão a terra. Afinal, o coitadinho de hoje é tudo, menos manso. Ao contrário, até: é raivoso, furioso, agressivo, esfregando suas desventuras, suas mal-aventuranças, na cara de todos os demais. A grande “vantagem” demoníaca do coitadismo é que a culpa sempre acaba sendo dos outros.
Conheço gente, muita gente, que quando acontece alguma coisa de errado identifica imediata e automaticamente terceiros para neles pespegar a culpa. Precisam nem pensar para isso, tamanha a força do vício. É pá-pum; ocorrido o inconveniente, eximem-se de autoexame jogando toda a culpa nos ombros de terceiros. Na prática, claro, a culpa é vista como sendo de qualquer um (que não si mesmo) que possa ser ligado ao ocorrido, mesmo que indireta e remotamente. Daí a raiva generalizada que acompanha o coitadismo. Ao perceber-se como uma pobre vítima inocente, o que a pessoa está afirmando para si mesma é sua inocência, muito mais que sua suposta vitimização. Esta serve para jogar na cara dos outros, que como a ovelha da fábula podem não ter sujado a água que o lobo bebe, mas herdaram a culpa de quem o tenha feito. O que importa é poder livrar-se de culpa e ver-se inocente e injustiçado. Ai de mim, tadinho de mim!
Ora, bolas, a primeiríssima coisa que se faz em qualquer aprendizado verdadeiro – e o que seria a vida se não uma longa sequência de lições a aprender? – é identificar o que se fez de errado quando as coisas não deram certo. Tentar entender como se poderia ter agido de outra forma, para que o resultado indesejado não houvesse ocorrido. Corrigir-se, em suma, aprimorar-se, aprender, melhorar. Uma das crianças outro dia, fazendo o dever de casa, irrompeu em fúria coitadinhesca contra o irmãozinho que fizera algum ruído súbito do outro lado do cômodo. “Ele me fez errar!”, bradou. Perguntei-lhe algo retoricamente se o irmão havia batido em sua mão ou coisa parecida. Afinal, ele estava do outro lado do cômodo. Ainda com um bico de mais de metro, a suposta vítima supostissimamente inocente retrucou indignada que não, que fora o barulho que o irmão fizera que “a fizera errar”.
Conheço gente, muita gente, que quando acontece alguma coisa de errado identifica imediata e automaticamente terceiros para neles pespegar a culpa. Precisam nem pensar para isso, tamanha a força do vício
Ora, pitombas, o que “a fez errar” foi a própria incapacidade de trabalhar sem um silêncio sepulcral ao redor (coisa que a presença de crianças – ela inclusive – preclui liminarmente). Ao identificar tal incapacidade, o correto a fazer é procurar vencê-la, por exemplo trabalhando o mais que possa em ambiente cheio de ruídos inesperados. Só assim se vai adiante e se vence aquela incapacidade, podendo então descobrir a próxima a vencer. O coitadismo, contudo, impede que seja dado justamente este passo, ao jogar nas costas do próximo a culpa pela própria incapacidade. O próximo, claro, que não tem chongas a ver com isso, não vai resolver é nada. E a sofrida e pesarosa vítima inocente de um mundo injusto e cruel continua abraçada à incapacidade tão prezada, incapaz também de aprimorar-se.
Pombas, a vida é basicamente composta de conquistas, de formação de capacidades antes inexistentes. Nascemos mudos e incapazes de nos comunicar. Nascemos, como a mãe do Lula, analfabetos. Nascemos sem sequer saber andar. “Nasci pelado, careca e banguela; o que vier é lucro”, lembra o para-choque de caminhão. Mas vamos vencendo as incapacidades, trocando-as com esforço por novas capacidades; para isso só precisamos ter consciência de que o que nos interessa é saber perceber onde nós erramos. Melhor dizendo, onde eu errei, já que só a mim posso consertar e só eu mesmo posso me levar a melhorar.
Não temos como evitar que os outros errem. Menos ainda poderíamos evitar que os outros, ao viver a própria vida, criem marolas que venham a nos afetar. Só o que podemos fazer, como ensinavam os estoicos, é lidar com a nossa percepção do que nos vem de fora e corrigir o que está dentro de nós. Para fazê-lo, a primeira coisa de que temos de nos dar conta é o quanto é venenoso e perigoso o raciocínio coitadista, a culpabilização habitual de terceiros.
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Há culpa de terceiros? Sim, claro; assim é a vida. Mas no mais das vezes ela simplesmente não interessa, na medida em que não podemos fazer nada a respeito. E, mais ainda, mesmo quando somos realmente vitimados por algo feito por terceiros, só o que podemos fazer é tentar impedir que as consequências negativas nos atrapalhem muito. Convenhamos: já é bastante difícil mandarmos em nós mesmos, vencermos as próprias incapacidades; se nos fixamos em atribuição de culpa a quem quer que seja que não nós mesmos, praticamente garantimos que não venceremos dificuldade alguma, que jamais conseguiremos ir adiante. Condenamo-nos ao atoleiro perpétuo.
Eu mesmo provavelmente teria um belo escore interseccional de coitadinho. Além de ter sido preso no tempo da ditadura (exercendo meu inalienável direito à imbecilidade; não, não pedi nem aceitaria dinheiro do Estado para premiar minha sandice juvenil), tirei várias outras mãos fracas no jogo da vida. Como a essa outra vítima pobrezinha, coitadinha, sofrida e injustiçada, um tal de Roberto Carlos, falta-me uma perna. Quando pensamos nele, entretanto, o que nos vem à cabeça é seu sucesso como cantor e compositor, ou mesmo suas superstições amalucadas; a pernetice, ainda que sabida pelo grande público, jamais foi brandida por ele como um troféu. Ele é “O Rei”, não “O Perneta”. Pela simplíssima razão de que ser perneta não é troféu de porcariíssima nenhuma: é um mero obstáculo a superar, coisa que ele fez magistralmente.
A minha própria pernetice, por tardia, me forçou a mudar um monte de coisas na minha própria vida. A botar rampas nos degraus da casa, a usar uma cadeira de rodas, e por aí vai. E daí? Isso em nada me faz melhor que os outros. Muito pelo contrário, aliás, como deveria ser evidente. Não é infrequente que sonhe estar numa estrada a pedalar no treino diário de 100 km de ciclismo de velocidade que fazia quando era garotão e bípede. Coisa que, claro, se tornou impossível para mim. Mas não se tornou impossível continuar a escrever, e por isso continuo aqui batucando minhas mal-traçadas. Não me é impossível tocar música, e depois de velho me botei a aprender piano. Aliás, quando perdi a ponta do polegar esquerdo num acidente anterior, a primeira coisa que me veio à cabeça foi que felizmente sobrara polegar o bastante para continuar a tocar sax.
Prefiro bradar como um sargentão a minhas dores que fiquem no lugar delas e me deixem trabalhar. Prefiro ver os problemas como as chaticezinhas que eles são: reles obstáculos a vencer, não muros a me aprisionar
Por recusar-me a fazer da parte desagradável da minha vida – o aleijão, a necessidade de usar sonda uretral, a dor crônica – seu centro, tornou-se-me possível focar em conquistas que ainda estão ao meu alcance. Não tendo condições físicas para pegar umas materiazinhas a lecionar numa universidade, gravo aulas digitais ou reúno alunos na sala de aula que fiz em casa. Tendo chegado ao editor de uma prestigiosa revista europeia meu artigo publicado aqui mesmo sobre as razões do Olavo de Carvalho, eis que pela primeira vez vendi um texto que escrevi diretamente em inglês: uma explicação para o leitor estrangeiro de quem ele foi e de sua importância na política brasileira. Depois de alguns anos de piano clássico, do mesmo modo, consegui desenvoltura nos dedos suficiente para tocar jazz, que sempre fora meu objetivo. Depois de décadas sem pensar no assunto, voltei a programar para facilitar minha vida e dar a volta nas minhas incapacidades físicas com o auxílio de microcontroladores digitais. E por aí vai. Minhas mazelas só a mim interessam, e não me interessam que não como obstáculos a vencer ou rodear, em busca de algum alvo que nada tem a ver com elas. De alguma melhora, de alguma coisa em que eu possa me aprimorar e ir dormir a cada dia menos ruim que no dia anterior.
O que seria da minha vida se eu me houvesse entregado ao coitadismo? Quiçá ficaria dia e noite drogado – com morfina ou com uísque; a diferença não é tão grande –, com o cérebro basicamente desligado por uma televisão, redes sociais, ou instrumento hipnótico equivalente. Quiçá perderia a capacidade de fazer música, de escrever, de pensar, ou de ensinar. Quiçá precisaria de alguém a me paparicar dia e noite, como um enfermeiro ou cuidador profissional. Ó, pobre de mim, ó pobre coitadinho...
O que haveria de bom nisso? Nada, rigorosamente nada. Eu ficaria pior a cada dia – pois a inércia não apenas impede o aprimoramento, mas faz perder o que já se tinha; a vida é uma subida na escada rolante de descida. Passaria os dias murmurando contra a Divina Providência e adorando a flunfa do meu pobre e sofrido umbigo. Outras muitas desgraças que não menciono aqui por não haver necessidade alguma de o fazer também tomariam enorme parte da minha psique, e eu cada dia mais me identificaria como vítima inocente. Como vítima de terceiros, de injustiças atrozes, de maldades inomináveis. Como inocente de culpas, como incapaz de melhora, como caso perdido. Este, senhores, é o famoso pecado contra o Espírito Santo.
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Prefiro bradar como um sargentão a minhas dores que fiquem no lugar delas e me deixem trabalhar. Prefiro ver os problemas como as chaticezinhas que eles são: reles obstáculos a vencer, não muros a me aprisionar. Prefiro focar além, no mais alto, no melhor, e assim aos poucos ir me tornando uma pessoa menos péssima. Menos coitadinha. Menos falsamente vitimada.
Para isso, para vencer essa tentação tão humana e hoje tão na moda, é preciso ficar atento. Ao nos pegarmos ranhetando, ainda que para nós mesmos, que “foi ele que começou”, devemos perceber que algo está errado, para que imediatamente nos demos a tão necessária descompostura: “você não é um coitadinho!”. Só assim podemos fazer a nossa parte, reconhecendo e remediando os nossos erros e incapacidades, melhorando quem somos, para que assim, quem sabe, possamos fazer nossa parte no difícil processo de tornar o mundo um lugar um pouco melhor. É impossível consertar o mundo sem consertar-se primeiro.
E “coitadinhos”, por definição, são só os outros. E olha lá.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos