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Maioria dos jovens diz não ter propósito de vida. Como mudar isso?

A ausência de propósito tornou-se o principal fator associado à ansiedade e à depressão dos jovens. (Foto: Amir Hosseini/Unsplash )

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Um estudo conduzido pela Universidade de Harvard acaba de lançar um dos diagnósticos mais alarmantes da modernidade. Segundo o relatório On Edge: Understanding and Preventing Young Adults’ Mental Health Challenges, elaborado pelo centro Making Caring Common da Harvard Graduate School of Education, 58% dos jovens entre 18 e 25 anos afirmam não encontrar propósito ou sentido em suas vidas. Outros 50% dizem que sua saúde mental está diretamente prejudicada por “não saber o que fazer da própria vida”.

A ausência de propósito tornou-se o principal fator associado à ansiedade e à depressão. E não há grandes diferenças entre sexos, raça ou renda, trata-se de um vazio coletivo, transversal e silencioso.

O sentido da vida não está no que o mundo aplaude, mas no que permanece quando ninguém está olhando. E talvez essa seja a lição que precisamos reaprender para que a próxima geração volte a acreditar que viver é mais do que trabalhar, rolar a tela e repetir

O estudo complementar Beyond Work, Scroll, and Repeat resume a rotina dessa geração em três palavras: trabalhar, rolar a tela e repetir. A vida digital, marcada por estímulos incessantes, se tornou uma anestesia existencial. Quando o celular vira a principal janela para o mundo, o sentido passa a depender de curtidas e notificações. Cada mensagem dá um lampejo de importância, cada vídeo uma ilusão de movimento.

As estatísticas de Harvard revelam um panorama preocupante:

1 - Falta de propósito e direção: 58% dizem não ter “significado ou propósito” na vida e 50% sentem que “não saber o que fazer da vida” prejudica sua saúde mental.

2 - Preocupações financeiras e pressão por desempenho: 56% relatam que as finanças pessoais e 51% que a pressão por sucesso impactam negativamente sua estabilidade emocional.

3 - Sensação de que o mundo está desmoronando: 45% dizem que uma percepção geral de que “as coisas estão caindo aos pedaços” afeta sua saúde mental

4 - Déficit de relacionamentos: 44% sentem que não importam para os outros e 34% relatam solidão constante.

5 - Preocupações sociais e políticas: 42% dizem ser afetados emocionalmente pela violência armada nas escolas, 34% por mudanças climáticas e 30% pela sensação de que os líderes políticos são incompetentes ou corruptos.

Há um paradoxo evidente: nunca houve uma geração com tanto acesso à informação, conforto e possibilidades, e, ao mesmo tempo, tanta sensação de vazio. Parte da perplexidade dos adultos diante desse cenário vem justamente da dificuldade de compreender como pode haver tanto sofrimento psíquico sem dificuldades reais.

Coincidentemente, nesta semana vi uma entrevista sobre o livro do meu amigo de longa data Murade Murargy, que conheci quando era embaixador plenipotenciário de Moçambique no Brasil. O livro, Traços de uma Vida de Superação, foi lançado em Maputo pela Gala-Gala Edições.

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Murade Murargy nasceu em 1946 em Manjacaze, interior de Moçambique. Filho de uma família pobre, enfrentou fome, doenças graves e a orfandade precoce. Suas conquistas vieram do esforço e apoio de pessoas ao redor. Por exemplo: um pai que o ensinou a ter orgulho, um irmão mais novo que trabalhou para pagar seus estudos, uma tia que o acolheu e um padre que o ensinou latim e filosofia. É graças a essas e tantas outras personalidades do livro que ele diz ter conseguido sucesso em seus esforços para sair da pobreza.

Formou-se em Direito pela Universidade de Lisboa e se tornou um dos maiores diplomatas africanos contemporâneos. Foi embaixador em diversos países, secretário-geral da Presidência de Moçambique e secretário executivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Hoje é conselheiro diplomático do governo de Guiné Equatorial.

Eu o conheci já como um cidadão do mundo, muito hábil nos meandros do poder. Ler suas memórias é reencontrar o contraste entre a dureza da vida material e a abundância de vínculos humanos que o sustentaram. Ele não teve tempo para se perguntar sobre o sentido da vida, porque o sentido estava em sobreviver, em estudar, em honrar aqueles que o ajudaram a chegar mais longe. A pobreza, longe de paralisá-lo, foi o que o impulsionou.

Não digo isso por saudosismo nem para afirmar que a nova geração é fraca. Digo porque a obra é um testemunho de que o que salva o ser humano não são as circunstâncias, mas as relações. Murade Murargy sobreviveu à miséria material, mas nunca conheceu a miséria de alma. E é justamente essa, a miséria de alma, que corrói nossos jovens.

Voltamos, então, ao que Harvard aponta como os caminhos possíveis para reconstruir sentido. São cinco diretrizes que precisam ser incorporadas por todos nós, pais, professores, líderes e adultos que ainda acreditam na ideia de comunidade.

1 - Cultivar relações autênticas. Jovens que se sentem conectados a outras pessoas são muito menos propensos à ansiedade e à depressão. A convivência real, não mediada por telas, devolve a sensação de pertencimento. É preciso resgatar gestos simples: comer juntos, conversar sem pressa, olhar nos olhos.

2 - Escutar com atenção. Muitos jovens se sentem invisíveis, mesmo cercados de gente. Escutar é mais do que ouvir: é permitir que o outro exista plenamente. A escuta verdadeira é o antídoto contra a solidão.

3 - Incentivar o serviço ao próximo. Ajudar é terapêutico. Quando os jovens se veem úteis, descobrem valor e direção. O voluntariado e os gestos de generosidade restauram o sentido da própria existência.

4 - Propor metas com propósito coletivo. Projetos duradouros, ligados a transformações reais, ajudam a dar ao tempo uma função construtiva. Sem propósito coletivo, a juventude se perde em metas de autopromoção.

5 - Nutrir a dimensão espiritual. Mesmo entre os não religiosos, é vital reconhecer que há algo maior que o próprio ego. A espiritualidade ensina a lidar com limites, frustrações e mistérios, e devolve profundidade à experiência humana.

Durante décadas, falamos em cuidar do corpo e, mais recentemente, em cuidar da mente. Mas esquecemos o espírito. E sem ele, a experiência humana se torna mecânica, sem transcendência e sem real sentido. Recuperar a dimensão plena da espiritualidade é o que pode devolver humanidade à nossa espécie. Porque o sentido da vida não está no que o mundo aplaude, mas no que permanece quando ninguém está olhando. E talvez essa seja a lição que precisamos reaprender para que a próxima geração volte a acreditar que viver é mais do que trabalhar, rolar a tela e repetir.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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