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Fake News não são apenas notícias falsas, como na tradução literal do inglês. Podem ser notícias transformadas, que misturam fatos verdadeiros a outros inventados ou distorcidos. É uma estratégia para causar confusão com o intuito de convencer pessoas distraídas sobre a veracidade daquele conteúdo preparado para atingir adversários, difamar pessoas, empresas ou governos.

Como são cheias de nuances, às vezes, sutis, as ditas Fake News levam os mais apressados a acreditar logo de cara no que é dito e a passar adiante a informação, sem a devida reflexão ou checagem dos fatos.

O mais desonesto com o público é que elas vêm sempre embaladas de altruísmo, como se estivessem tirando as vendas dos olhos das pessoas para algo que precisa ser visto e pedindo a ajuda para alguém ou algum grupo minoritário, injustiçado, sem voz. Difícil resistir a um comentário, uma tuitada, um compartilhamento.

Podem também ser denúncias contra algo que está mesmo errado, mas camufladas, com informações omitidas ou acrescentadas para atingir um alvo específico. Normalmente trazem embutida uma ideologia que nem sempre é a de quem recebe a mensagem, embora muita gente distraída acabe abraçando aquela causa como se fosse sua.

Não é à toa que as Fake News são assim. Vêm disfarçadas de boas intenções justamente para convencer as pessoas a acreditarem no que está sendo dito e ainda instigá-las a compartilhar o conteúdo. Aquele ditado “uma mentira dita mil vezes vira verdade” cabe bem aqui.

Depois que uma informação falsa é repetida centenas de vezes, mesmo quem desconfiava dela passa a achar que há ali algum fundo de verdade. E quanto mais gente compartilhar, mais a notícia falsa é reforçada na mente das pessoas.

Mais danosas ainda são as notícias falsas divulgadas com um título forte, uma ideia deplorável ou um termo chocante para virar uma espécie de marca registrada daquele assunto e alçar a falácia ao topo da lista de assuntos mais comentados do momento, o que gera dias e dias de discussões e argumentações em defesa daquela causa.

Fake News: "estupro culposo"

Depois de um ano inteiro lidando com mentiras de todo tipo, da política à Medicina chegamos ao fim de 2020 com um caso grave de notícia falsa que mexeu com o Brasil: a de que um homem foi absolvido de estupro porque a Justiça considerou que ele cometeu um “estupro culposo”, sem intenção.

Tanto não era verdade que os responsáveis pela divulgação da notícia estão obrigados, por ordem judicial, a corrigir os erros da reportagem, dedicando o mesmo espaço de antes para publicar a verdade sobre o caso. E vão ter que divulgar a matéria em todas as redes sociais com a mesma intensidade de antes, sob pena de multa diária.

Estranhamente, antes mesmo do cumprimento da decisão judicial, agora outros veículos estão anunciando isso de forma deturpada, iniciando uma nova onda de fake news sobre esse caso.

A notícia real é: Justiça determina que os sites The Intercept e ND Mais, e a jornalista que assina as reportagens nos dois veículos, retifiquem matérias sobre caso Mariana Ferrer. A juíza determinou que as matérias sejam retificadas, ou seja, corrigidas, como noticiou a Gazeta do Povo tão logo soube da decisão.

Basta uma busca rápida na internet para achar manchetes minimizando a determinação da juíza Cleni Serly Rauen Vieira, da 3ª Vara Cível da Comarca de Florianópolis. Seguem três exemplos:

  1. Justiça manda portal esclarecer que juiz fez intervenções em audiência do caso Mari Ferrer
  2. Caso Mari Ferrer: juíza determina mudança em notícia de “estupro culposo”
  3. Justiça manda The Intercept esclarecer declarações de juiz do caso Mari Ferrer

Esclarecer é completamente diferente de corrigir. Fazer uma mudança em uma notícia já publicada é completamente diferente de retificar, corrigir uma série de informações erradas.

Como nas redes sociais é costume só lerem títulos e saírem compartilhando, a ideia que se tenta passar agora é a de que as matérias tinham um ou outro erro, mas no geral estavam certas. Não é o que disse a juíza ao determinar a correção da reportagem.

Por que Justiça mandou o Intercept se retratar

“Pelo que se verifica em uma análise sumária, as rés [Intercept, ND Mais e Schirley Alves] exibiram trechos com vários recortes, de modo que a versão final apresentada leva a crer que a vítima [Mariana Ferrer] foi alvo de descaso por parte do juiz, que pareceu omitir-se diante das manifestações exacerbadas do advogado de defesa”. diz Cleny Vieira no despacho.

A juíza se refere ao vídeo mostrando um trecho do julgamento, que o Intercept publicou junto com a reportagem e que um perito comprovou que foi editado para dar a entender que havia um complô para constranger a Mariana e absolver o réu. A juíza foi clara também ao expor o que o vídeo editado provocou.

“Ao avaliar o decorrer do ato [o julgamento propriamente dito e não o vídeo editado], nota-se que as rés [Intercept, ND Mais e Schirley Alves] omitiram relevantes intervenções do magistrado... Concluo que as matérias, em maior parte, informaram os fatos de forma distorcida, inverídica, parcial e sem precisa e prévia apuração dos acontecimentos para sua correta divulgação.”

Cleni Serly Rauen Vieira, juíza substituta da 3ª Vara Cível da Comarca de Florianópolis

“No livre exercício dos direitos à informação e expressão admite-se a opinião crítica, o que não se tolera, entretanto, é aquela que extrapola o direito de informar, causando lesão a direitos individuais de terceiros, tampouco a notícia falsa ou veiculada de forma temerária e antiética”, complementa a magistrada.

Lendo o despacho fica claro que ela determinou a correção das matérias, porque concluiu que elas são falsas, trazem mentiras, omissões e deturpações. Então as manchetes de agora também não são verdadeiras. A Justiça não determinou apenas que o Intercept esclareça algo ou mude a notícia simplesmente. Mandou contar a verdade sobre o que realmente ocorreu naquele julgamento.

E antes que alguém queira alegar que não temos como saber o que aconteceu de verdade, porque o processo em questão é sigiloso, reforço que o processo está sim sob segredo de Justiça, como todos os casos de estupro. Mas veio a público porque justamente a suposta vítima de estupro divulgou em suas redes sociais.

A juíza teve acesso à íntegra do julgamento, a todos os depoimentos e a todos os elementos anexados como possíveis provas, antes de concluir que a notícia divulgada pelo Intercept e pelo ND Mais não era fiel aos fatos.

Informações omitidas ou deturpadas

Na última segunda-feira (14) entrevistei aqui mesmo nesse espaço o perito Wanderson Castilho, contratado pelo juiz e pelo promotor do caso Mariana Ferrer. Ele constatou que o vídeo do julgamento foi editado pelo Intercept, que fez quatro cortes, além de uma montagem.

Juntaram uma pergunta feita para Mariana Ferrer pelo advogado de defesa do réu, de forma bem dura, até grosseira, a um trecho anterior do julgamento em que ela chorava e pedia para o juiz intervir. A versão editada mostra o juiz Rudson Marcos em silêncio, quando na verdade ele se manifestou, reprimindo o advogado e até perguntou se Mariana queria a audiência fosse suspensa por alguns minutos para ela se acalmar.

O relatório dessa perícia e o despacho da juíza citam que em mais de 3 horas de julgamento, incluindo os 45 minutos em que a Mariana foi interrogada, o juiz e o promotor Thiago Carriço de Oliveira fizeram 14 intervenções para reprimir o advogado de defesa do réu.

A matéria do Intercept, que publicou o vídeo editado, sem dizer que era editado, não só dá a entender que todos ficaram em silêncio permitindo que o advogado fizesse uma espécie de tortura psicológica com a vítima do suposto estupro, como diz isso literalmente no texto.

Consequências da onda de ódio gerada pela matéria do Intercept

Talvez você não tenha acompanhado o que aconteceu com o juiz e o promotor desse julgamento depois das notícias falsas e da repercussão que o caso ganhou. Apesar de terem desmentido imediatamente a informação de que ficaram calados, deixando o advogado de defesa falar o que quisesse, sem qualquer reprimenda, não puderam conter os estragos causados pela onda de ódio que se seguiu à publicação da reportagem.

Os dois, junto com suas famílias, passaram a ser hostilizados na internet e na vida pessoal, receberam até ameaças. O filho de um deles passou pelo constrangimento de ouvir colegas dizendo que os pais não queriam mais que eles estudassem na mesma sala do filho de alguém que apoiava estuprador.

Juiz e promotor também esclareceram de imediato que jamais usaram o termo “estupro culposo” na audiência de julgamento ou nos autos do processo. Tanto é verdade que dias depois de publicar a história com estardalhaço o Intercept admitiu que o termo foi inventado para “ajudar o público a entender a matéria”.

Ou seja, criaram um tipo penal que não existe, o que acabou insuflando as redes sociais a se revoltarem contra pessoas que sequer tinham cogitado mencionar esse termo. Por enquanto o que sobra disso tudo é que a jornalista Schirley Alves e os sites Intercept e ND Mais estão obrigados pela Justiça a corrigir a matéria errada que publicaram antes e seguem sendo processados por danos morais.

Na entrevista de segunda-feira o perito Wanderson Castilho também anunciou que o juiz e o promotor estão acionando várias pessoas que compartilharam as notícias falsas como se fossem verdadeiras, especialmente influenciadores digitais com centenas de milhares de seguidores (milhões em alguns casos).

Fake News contra Danilo Gentili

Para termos uma ideia ainda melhor da crueldade e da dimensão que as notícias falsas provocam trago outro caso relatado esta semana pelo comediante Danilo Gentili. Ele conta que foi alvo de Fake News e de uma tentativa de assassinato de reputação num episódio, por acaso, também envolvendo estupro.

Danilo Gentili tinha feito um comentário em rede social sobre uma situação que aconteceu num reality show e, anos depois, resgataram esse comentário, apagaram a data e compartilharam como se tivesse sido uma opinião dele sobre um caso de estupro.

O comediante passou a ser difamado como se estivesse fazendo apologia ao estupro, exatamente como tanto outros vem sendo acusados nas últimas semanas simplesmente por não terem caído no conto do “estupro culposo”. Clique no play do vídeo no topo da página para ouvir o próprio comediante relatando a história. O depoimento dele está no fim do vídeo.

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