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Comissão de Educação do Senado ouve o advogado Ives Gandra da Silva Martins em audiência sobre o PL 4.168/2021, em 21 de março de 2024.
Comissão de Educação do Senado ouve o advogado Ives Gandra da Silva Martins em audiência sobre o PL 4.168/2021.| Foto: Pedro França/Agência Senado

Não há o que não haja. Agora a novidade é a possibilidade de o cristianismo, a maior religião do mundo, virar só uma tradição cultural aqui no Brasil, tudo por causa do Congresso Nacional.

Quem está tocando essa bola adiante é o deputado federal Vinícius de Carvalho, autor do PL 4.168/2021, que, pasmem, já passou pela Câmara dos Deputados e agora está nas mãos do Senado. O IBDR já deu o seu parecer contra essa ideia e até sugeriu um texto alternativo que o senador Magno Malta utilizou como base para uma emenda, ainda não votada. Agora a coisa toda está na Comissão de Educação do Senado e, na última quinta-feira, houve uma audiência pública para ouvir especialistas, entre os quais três membros do IBDR, incluindo este colunista.

Apesar da boa intenção do deputado autor do projeto, que busca assegurar que os eventos cristãos não sejam proibidos por aqueles que desejam implantar uma laicidade à francesa que não se aplica ao Brasil (ainda há quem insista nisso), o projeto, se aprovado na forma atual, pode acarretar uma série de problemas para os cristãos e dar munição aos que sempre buscam “pêlo em ovo” para perseguir cristãos no Brasil.

Deixo ao leitor o esboço da minha fala na comissão, mostrando por que o processo precisa ser rejeitado, ou pelo menos modificado.

O PL 4.168/21, se aprovado na forma atual, pode acarretar uma série de problemas para os cristãos e dar munição aos que sempre buscam “pêlo em ovo” para perseguir cristãos no Brasil

Manifestação de Thiago Rafael Vieira, presidente do IBDR, durante audiência na Comissão de Educação do Senado

“Apesar da boa intenção e da justificativa apresentada para a aprovação do referido PL, é importante salientar que o cristianismo é uma religião, não podendo ser reduzido a manifestação cultural, em evidente capitis diminutio. Explico: indo além da definição etimológica de religião, que seria do latim religere, que significa se revincular a Deus, passamos para uma definição jurídica do termo.

Por que uma definição jurídica é importante? Porque os direitos humanos fundamentais, liberdade de crença e liberdade religiosa, previstos nos tratados internacionais de direitos humanos e na Constituição brasileira, possuem como âmbito de proteção exatamente a religião, seja o belief, isto é, a proteção ao foro interno da pessoa religiosa, o direito de ter, não ter, mudar e manter uma crença, seja o action, isto é, o foro externo da pessoa religiosa, a proteção à ação humana revelada no exercício desta crença, seja pela sua manifestação pública, proselitismo, assistência religiosa, ensino religioso, culto e organização religiosa, que integram o plexo de direitos da liberdade religiosa.

As doutrinas internacionais e nacionais sobre o tema têm optado pela definição substancial-objetiva para o conceito jurídico de religião, como podemos verificar nas obras dos portugueses Jónatas Machado e Paulo Adragão, do italiano Silvio Ferrari, do espanhol Ricardo Garcia-Garcia, dos brasileiros Gilmar Mendes e deste que vos fala, e das supremas cortes: a brasileira, na ADI 4.439; a norte-americana, no leading case Davis v. Bisson; na italiana, vide Sentença 467/92; e muitas outras que deixo de citar pela exiguidade do tempo.

Para o conceito jurídico substancial-objetivo, estamos diante de uma religião quando podemos verificar a presença de três elementos, quais sejam: divindade, moralidade e culto. A divindade (ou divindades) é a presença de um deus ou deuses, no qual a pessoa religiosa deposita sua confiança e com a qual se relaciona por meio de sua racionalidade, experiência e emoções. O fiel medita sobre a vontade divina, para então cumpri-la em sua vida e assim se relacionar com a divindade. Mas esse relacionamento com a divindade só é possível a partir do elemento da moralidade. A moralidade se traduz no conjunto de valores escritos vertidos em um ou mais livros sagrados ou, até mesmo, de forma oral, que revelam o divino, seus anseios e a forma de relacionar-se com ele. Assim, a partir da moralidade a pessoa religiosa se relaciona com a divindade. Por fim, então, temos o terceiro elemento, que é o culto. O culto é o ápice, o coroamento do relacionamento que o fiel possui com a divindade, revelado na sua adoração e submissão à divindade, a partir dos dogmas e valores contidos na moralidade.

A religião, para o direito, é a soma de Divindade, Moralidade e Culto. E, nesse sentido, os direitos fundamentais das liberdades de crença e religiosa protegem a dinâmica destes três elementos revelados nas mais diversas confissões religiosas a que os fiéis livremente aderem.

Essa dinâmica desborda do privado para o espaço público, sendo protegida pelos direitos decorrentes da liberdade religiosa de se manifestar, defender sua fé, buscar prosélitos, ensinar e ser ensinado sobre sua religião, assistir e ser assistido religiosamente quando segregado, cultuar individual ou coletivamente sua divindade e, por fim, organizar-se institucionalmente. Todos estes atos humanos são protegidos pelas liberdades de crença e religiosa porque são atos religiosos e não culturais.

Ao Estado brasileiro e seus entes federados, bem como quaisquer outros grupos organizados ou não, é vedado embaraçar os atos decorrentes desta dinâmica religiosa – é o que está previsto no artigo 19, I da Constituição. Aliás, o constituinte originário foi muito feliz ao vedar qualquer tipo de embaraço às igrejas, aqui em sentido lato, e aos cultos religiosos. O constituinte não quis proibir, ele quis vedar, aumentando a carga semântica proibitiva. Usamos o verbo “vedar” na língua portuguesa quando queremos deixar claro que nem mesmo o ar, ou seja, nada pode passar. Ainda: o constituinte quis vedar o embaraço; poderia vedar o impedimento, mas foi além, para vedar qualquer ato estatal ou humano que criasse ou venha a criar embaraço aos cultos e organizações religiosas, da mesma forma que o inciso VI do artigo 5.º tornou a liberdade de crença inviolável e, no artigo 143, §1.º, o Estado brasileiro renunciou até mesmo à sua força militar para liberar aquele alistado que objetar de consciência religiosa por pertencer a uma religião pacifista.

O Estado brasileiro entroniza as liberdades de crença e religiosa em suas melhores versões doutrinárias e em suas duas dimensões protetivas, como ensina Isaiah Berlin em Quatro ensaios sobre liberdade, isto é: negativa, pela não interferência e ausência de obstáculos ao belief e ao action, bem como na positiva, no sentido de criar as condições mínimas para que as diversas fés dos brasileiros sejam exercidas livremente no espaço público e no privado. Além disso, a opção constituinte pela laicidade colaborativa se assenta sobre o tripé da benevolência, colaboração e, principalmente, não interferência com o fenômeno religioso, resultando em outro tripé: laicidade colaborativa, liberdade religiosa e autonomia das organizações religiosas, como ensina Jean Regina.

Se o Estado brasileiro, por meio de uma lei federal, reconhecer o cristianismo apenas e tão somente como cultura, além de estar incorrendo em um erro jurídico de definição, estará aniquilando dois direitos fundamentais de 90% da população brasileira

Assim sendo, o Estado, por meio deste parlamento, ao introduzir no ordenamento jurídico uma lei que reconhece o cristianismo apenas como manifestação cultural, data maxima venia aos entendimentos contrários, estará violando os direitos fundamentais e humanos da liberdade de crença e da liberdade religiosa, além da laicidade estatal. Explico:

Primeiro, porque o cristianismo é uma religião e, nesta qualidade, o Estado deve reconhecê-lo. No cristianismo, em qualquer uma de suas denominações, encontramos a presença da Divindade em Deus, revelado nas três pessoas da Santíssima Trindade, Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo. Outrossim encontramos o elemento da Moralidade, vertido na Bíblia Sagrada e, para a Igreja Católica, igualmente na Tradição e em seu Magistério; por fim, o elemento do Culto está presente em todas as denominações cristãs. Logo, o cristianismo é religião. E qual a importância disto? Humana e constitucional. Porque é a dinâmica destes três elementos, presentes no cristianismo, assim como em todas as religiões, cada uma à sua maneira, que é protegida pelos direitos humanos das liberdades de crença e religiosa, tornados fundamentais e garantidos pela Constituição brasileira.

Isto é, se o Estado brasileiro, por meio de uma lei federal, reconhecer o cristianismo apenas e tão somente como cultura, além de estar incorrendo em um erro jurídico de definição, estará aniquilando dois direitos fundamentais de 90% da população brasileira. Se o Estado reconhece o cristianismo apenas como cultura, por meio de lei cogente, as ações humanas do fiel cristão de ter, manter e mudar de crença, além de se manifestar, defender a fé cristã, buscar prosélitos, ensinar e ser ensinado sobre o cristianismo, assistir e ser assistido religiosamente quando segregado, cultuar individual ou coletivamente a Deus e, por fim, organizar-se institucionalmente, lhe serão negadas, porque, por definição legal, tais ações humanas serão consideradas apenas e tão somente culturais e atos culturais não são protegidos pelos referidos direitos fundamentais.

Segundo, a violação ao Estado laico colaborativo brasileiro também é patente. O PL em pauta pode gerar efeitos opostos ao objetivo de qualquer laicidade, que é de não interferir na vida dos religiosos e nas religiões, garantindo a liberdade de ambos. Além da própria distorção da realidade, visto que negar o status religioso do cristianismo em favor de reconhecê-lo apenas como cultura pode distorcer a realidade e minar a importância histórica e social do cristianismo para a maioria dos brasileiros e para o próprio Estado, que possui a cruz de Cristo em seu símbolo maior, qual seja, o pavilhão nacional. Isso poderia criar tensões sociais e minar a coesão social, que são preocupações importantes para a laicidade estatal e para o regime democrático.

Talvez, a solução que possa se apresentar, além da rejeição do referido PL, é de um substitutivo para deixar claro que o que se pretende reconhecer como cultura são os reflexos do cristianismo na arte, que podem se dar por meio da música, literatura, dança etc. Desse modo, é bem verdade que a religião, incluindo o cristianismo, é um dos aspectos sociais formadores da cultura, posto que as manifestações culturais são representadas por meio dos valores morais intrínsecos de determinado grupo ou sociedade, para os quais a religião também contribui.

Nesse sentido, apenas o reflexo por meio da influência dos valores morais do cristianismo pode ser considerado uma manifestação cultural, pois a cultura não é o objetivo da religião cristã, que busca a religação do homem com o Deus Trino, em sua esfera íntima e pública, a fim de alcançar a salvação de sua alma e a vida eterna por meio de Jesus Cristo de Nazaré.

Por todo o exposto, o IBDR opina pela rejeição do referido Projeto de Lei 4.168/2021 com a atual redação proposta, ou, pela aplicação de substitutivo proposta pelo senador Magno Malta, nos termos do parecer do IBDR sobre o tema, qual seja: “A arte cristã e os reflexos e influências do cristianismo na cultura nacional são, também, além de seus aspectos religiosos, considerados manifestação cultural nacional”.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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