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Crônicas de um Estado laico

Crônicas de um Estado laico

Leão XIV e Charles III

O “Defensor da Fé” na Cátedra de Pedro, 500 anos depois

Leão XIV Charles III Vaticano
O papa Leão XIV, o rei Charles III, a rainha Camilla e outras autoridades religiosas na Capela Sistina, em momento de oração conjunta. (Foto: Vatican Media handout/EFE/EPA)

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Há títulos que carregam mais história do que coroas. “Defensor da Fé” é um deles. Foi concedido a Henrique VIII pelo papa Leão X em 1521, como reconhecimento pela defesa que o rei fizera do catolicismo contra a Reforma, que se alastrava pela Europa, a partir das ideias de Martinho Lutero. Poucos anos depois, o mesmo monarca rasgaria o vínculo com Roma, fundaria a Igreja da Inglaterra e inauguraria cinco séculos de separação entre a coroa britânica e o papado. Dias atrás, essa história pareceu dar uma volta completa.

Pela primeira vez desde o cisma anglicano, um monarca inglês, Charles III, orou publicamente ao lado de um papa – no caso, Leão XIV. A cena, na icônica Capela Sistina, foi descrita oficialmente como “um momento de unidade cristã e de intercessão pelo cuidado com o meio ambiente”. Mas seu significado vai muito além da piedade. É um gesto político, teológico e civilizacional, que coloca o cristianismo novamente no centro do tabuleiro global.

A aproximação entre Roma e Londres vinha sendo costurada havia anos e estava originalmente planejada para ocorrer durante o pontificado de Francisco. O papa argentino, profundamente comprometido com a agenda ecológica e com o diálogo entre credos, sonhava em selar esse gesto como símbolo de reconciliação entre as duas heranças do cristianismo ocidental. A saúde debilitada e a morte o impediram de ver o sonho realizado, mas Leão XIV herdou e cumpriu o roteiro com a habilidade diplomática típica da Santa Sé, que há séculos entende o poder dos símbolos na política mundial.

O encontro entre Leão XIV e Charles III é um gesto político, teológico e civilizacional, que coloca o cristianismo novamente no centro do tabuleiro global

O pano de fundo foi cuidadosamente escolhido: o meio ambiente. Sob o tema “oração pela criação e pela unidade”, o encontro uniu o rei ambientalista e o papa ecológico. O que para o público pareceu um ato de fé, para os analistas foi também uma afirmação de influência. Num tempo em que as instituições políticas perdem legitimidade, fé e espiritualidade voltam a servir como linguagem moral das grandes causas globais. A “criação” tornou-se o novo nome da Terra; o “pecado” se transformou em degradação ambiental; e a “redenção”, em sustentabilidade.

Charles III sempre foi um “defensor da fé”; embora vocalmente um cristão devoto, parece também ser entusiasta de uma fé ampla, difusa, quase civilizacional. Herdeiro de uma monarquia que há séculos se define como “anglicana”, o rei tem procurado, em seu reinado, projetar uma espiritualidade unificadora e inclusiva (como se vê desde sua coroação, quando recebeu orações não apenas de outras tradições cristãs, mas também de representantes de outras religiões). E o Vaticano, por sua vez, sabe que o mundo precisa de novas referências morais em meio à desordem global. Ao acolher o monarca que um dia rompeu com Roma, o papado envia uma mensagem política e espiritual: a Igreja pode continuar dividida, mas ainda é guardiã do imaginário religioso do Ocidente e mediadora entre fé e poder.

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O gesto tem uma dimensão de continuidade histórica que vai além das aparências diplomáticas. Desde o Império Romano, a aliança entre o trono e o altar foi instrumento de coesão e legitimidade. Constantino compreendeu que nenhuma ordem política se sustenta apenas pela força; é preciso um imaginário comum, um horizonte transcendente que dê sentido às leis e às lutas do tempo. O que Charles III e Leão XIV fizeram foi retomar, sob novos símbolos, essa velha consciência: a de que a fé é um poder suave, mas indispensável, capaz de unir povos em torno de uma moral comum, mesmo num mundo que insiste em chamar-se “pós-religioso”.

Há também um cálculo estratégico. O Vaticano, ao se reposicionar como voz moral do ambientalismo global, volta ao centro das decisões planetárias. Francisco já havia aberto esse caminho com a Laudato Si’ e a Laudate Deum, nas quais a ecologia aparece como expressão da Doutrina Social da Igreja e ponte com os não crentes. Leão XIV dá continuidade a essa diplomacia verde, sabendo que a fé, quando associada a causas universais, ganha força política. O rei inglês, por sua vez, também tem muito a ganhar: a monarquia, cada vez mais questionada por sua utilidade, encontra na espiritualidade e na preservação ambiental uma nova narrativa de propósito e serviço.

Ver o rei e o papa juntos é como contemplar as fundações de uma civilização que, apesar de abalada, ainda resiste

Essa convergência não é apenas religiosa, mas simbólica. Quando instituições milenares como a Igreja e a Coroa se unem, elas oferecem à sociedade algo que nenhuma agenda política consegue reproduzir: a sensação de permanência. Num tempo em que tudo muda com rapidez, em que governos caem e ideologias se desmancham, ver o rei e o papa juntos é como contemplar as fundações de uma civilização que, apesar de abalada, ainda resiste. A oração comum, nesse sentido, não é apenas uma cerimônia – é um gesto de resistência cultural. Ela reafirma que a fé, longe de ser um resquício do passado, continua sendo o cimento invisível das nações.

E há algo de profundamente humano nessa cena. Dois líderes envelhecidos, herdeiros de tradições seculares, dobrando os joelhos diante do mesmo mistério que moldou o Ocidente. Ninguém ali falou de poder, de fronteiras ou de estatísticas climáticas. Falaram de criação, de unidade, de responsabilidade moral. Foi, talvez, um raro momento em que a diplomacia se permitiu ser oração.

E talvez seja isso o que o mundo moderno mais precise recordar: que nenhuma civilização se mantém de pé apenas sobre tratados ou algoritmos. É preciso também ajoelhar-se – não como submissão, mas como reconhecimento de que há algo maior do que nós, algo que dá sentido ao tempo e dignidade à história.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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