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A trending do momento, quando o tema é liberdade religiosa, foi a situação inusitada que está em pleno andamento em Pernambuco, e que já foi assunto de reportagem da Gazeta. Para o leitor que não sabe, algumas crianças e adolescentes têm se reunido voluntariamente, nos intervalos de aula, sem qualquer participação dos professores, servidores públicos ou direção da escola, para orar e ler a Bíblia, entre outros atos religiosos. São os chamados “intervalos bíblicos”. Não há um centavo de dinheiro público, e tal prática não atrapalha o desenvolvimento ordinário das aulas.
Para o Sindicato dos Trabalhadores de Educação de Pernambuco, no entanto, os “intervalos bíblicos” são uma violação e ameaça ao Estado laico, devendo ser interrompida ou regulada, e por isso foi denunciada ao Ministério Público Estadual – que, por sua vez, em vez de arquivar tal denúncia ridícula, reuniu-se com o tal sindicato contra a liberdade e a Secretaria de Estado da Educação para apurar o caso. Mas apurar o quê? Tudo isso é simplesmente absurdo.
Liberdade religiosa: um direito humano fundamental
A liberdade religiosa no Brasil é um direito fundamental, consagrado nos artigos 5.º, VI, VII e VIII, e 19 da Constituição de 1988 – isso para citar apenas alguns dispositivos. Ela garante o direito de qualquer um, em qualquer espaço, de praticar sua crença e expressá-la publicamente. Além da Constituição, o direito de cultuar a divindade professada também está previsto em todos os tratados internacionais sobre direitos humanos que existem no mundo, integrando o caríssimo rol de direitos humanos, do qual o Brasil e a maioria dos países do mundo são signatários!
Proibir os alunos de expressarem sua fé em um ambiente que, por definição, deveria promover o pluralismo e a liberdade é negar a essas crianças o direito de serem quem são
Os “intervalos bíblicos” organizados pelos alunos em Pernambuco são a expressão de sua religiosidade, e têm proteção constitucional. Eles representam uma prática religiosa que é, ao mesmo tempo, pessoal e comunitária, e que, acima de tudo, respeita o princípio de que tais atividades devem ser voluntárias e não impostas. Diz a Constituição no artigo 5.º, VI: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.
Laicidade colaborativa: o modelo brasileiro
O modelo de laicidade adotado no Brasil é o que denominamos de “colaborativo”, porque permite que o Estado e a religião coexistam e colaborem para o bem comum, sem que isso implique uma aliança ou favorecimento indevido. Exemplos disso são o ensino religioso obrigatório em escolas públicas, mas de matrícula facultativa, ou a permissão para assistência religiosa em instituições públicas como hospitais e prisões, isso sem falar da imunidade tributária religiosa.
Esse modelo tem como base o reconhecimento da religião como um elemento central da identidade de muitos cidadãos e importantíssimo para a sociedade. A tentativa de impedir que crianças e adolescentes se reúnam voluntariamente para expressar sua fé no ambiente escolar é uma afronta direta à liberdade religiosa e um reflexo de uma visão equivocada da laicidade, ainda mais da brasileira. Se o próprio Estado reconhece a importância do fenômeno religioso ao incluir o ensino religioso no currículo escolar, por que deveria ser diferente quando se trata de uma prática voluntária organizada por alunos e, ainda, no intervalo das aulas?
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Estado laico não é Estado antirreligioso
Um Estado laico não deve ser confundido com um Estado antirreligioso. A laicidade visa garantir a liberdade de todos, permitindo que as diversas expressões de fé convivam harmoniosamente no espaço público. Quando se utiliza a laicidade como argumento para banir práticas religiosas como os “intervalos bíblicos”, caímos no erro de transformar um princípio de inclusão e liberdade em uma ferramenta de repressão e silenciamento.
Proibir os alunos de expressarem sua fé em um ambiente que, por definição, deveria promover o pluralismo e a liberdade é negar a essas crianças o direito de serem quem são. É também negar a premissa de que a educação deve preparar o cidadão para viver em uma sociedade diversa e plural, onde diferentes ideias, crenças e valores coexistem. Isso é uma distorção grave do conceito de laicidade e uma violação do princípio constitucional da liberdade religiosa.
Dizer que os “intervalos bíblicos” violam a laicidade é, na verdade, subverter o próprio conceito de um Estado laico, transformando-o em um pretexto para marginalizar a fé e as práticas religiosas.
A tentativa de cercear os “intervalos bíblicos”, sob a alegação de preservar a laicidade, é, na verdade, um desrespeito aos princípios constitucionais que defendem a coexistência pacífica, a laicidade colaborativa e a liberdade religiosa
O Supremo e a liberdade religiosa
Existe um ditado em hermenêutica jurídica que diz: “quem pode o mais pode o menos”. Alguns anos atrás o STF, além de reafirmar de que a liberdade religiosa é um direito fundamental e estruturante no Brasil, também confirmou as características da benevolência e da colaboração de nossa laicidade. Naquela ocasião, o STF garantiu que o ensino religioso pudesse até mesmo ser confessional, desde que fosse facultativo, respeitando a diversidade e a voluntariedade dos alunos. O STF deixou claro que a expressão religiosa no espaço público é legítima e que o Estado não deve criar obstáculos para práticas de fé que sejam realizadas de maneira voluntária e respeitosa. Vejamos:
“1. A relação entre o Estado e as religiões, histórica, jurídica e culturalmente, é um dos mais importantes temas estruturais do Estado. A interpretação da Carta Magna brasileira, que, mantendo a nossa tradição republicana de ampla liberdade religiosa, consagrou a inviolabilidade de crença e cultos religiosos, deve ser realizada em sua dupla acepção: (a) proteger o indivíduo e as diversas confissões religiosas de quaisquer intervenções ou mandamentos estatais; (b) assegurar a laicidade do Estado, prevendo total liberdade de atuação estatal em relação aos dogmas e princípios religiosos. (...) 4. A singularidade da previsão constitucional de ensino religioso, de matrícula facultativa, observado o binômio Laicidade do Estado (CF, art. 19, I)/Consagração da Liberdade religiosa (CF, art. 5.º, VI), implica regulamentação integral do cumprimento do preceito constitucional previsto no artigo 210, §1.º, autorizando à rede pública o oferecimento, em igualdade de condições (CF, art. 5.º, caput), de ensino confessional das diversas crenças.”
Nesse contexto, a reação às iniciativas dos alunos em Pernambuco representa uma ameaça aos direitos fundamentais. O Estado deve proteger, e não impedir, que crianças e adolescentes exerçam sua liberdade de culto. A tentativa de cercear os “intervalos bíblicos”, sob a alegação de preservar a laicidade, é, na verdade, um desrespeito aos princípios constitucionais que defendem a coexistência pacífica, a laicidade colaborativa e a liberdade religiosa.
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Conclusão: defender a liberdade é defender a laicidade
Se quisermos realmente proteger a laicidade do Estado, precisamos assegurar que ela continue sendo um princípio que defende a liberdade e o respeito a todas as crenças, e não uma desculpa para sufocar manifestações religiosas. Laicidade significa não interferência, e não o contrário! A verdadeira laicidade permite que as pessoas sejam livres para acreditar, expressar e praticar sua fé, no público e no privado, sem medo de serem silenciadas ou marginalizadas.
O que está acontecendo em Pernambuco deve servir como um alerta para que não percamos de vista o verdadeiro sentido de um Estado laico: um Estado que não interfere na fé de seus cidadãos, que protege sua liberdade religiosa em todas as suas mais diversas facetas, como ensinamos em Liberdade Religiosa: fundamentos teóricos para proteção e exercício da crença, e que garante que, no espaço público, todas as vozes possam ser ouvidas. Defender a liberdade religiosa não é uma ameaça à laicidade; é, na verdade, a sua mais pura expressão.
Se você quiser entender melhor o que está acontecendo em Pernambuco, recomendamos a leitura do parecer do IBDR sobre o tema, bem como nossa entrevista à Oeste, que está em nosso canal do YouTube, devidamente autorizado pela Oeste, bem como a reportagem da Gazeta a que nos referimos no início desta coluna.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos