A liberdade religiosa é um dos pilares fundamentais de qualquer democracia em qualquer lugar do mundo, assegurando que as crenças, não importa quais sejam, possam ser vivenciadas pela pessoa religiosa, no público e no privado, por meio de sua manifestação, proselitismo, ensino, culto e rituais, sem que o Estado e ninguém intervenha ou se intrometa no conteúdo dessas expressões e, principalmente, das crenças que dão origem às expressões religiosas e seus rituais. No entanto, com a decisão da ADO 26, que equiparou a homotransfobia ao crime de racismo, surge uma interseção delicada entre as liberdades de crença/religiosa e a necessidade de proteger minorias contra discursos discriminatórios que promovam a violência.
O caso do padre Antonio Carlos dos Santos, que não tem nada a ver com discriminação e discurso de ódio, denunciado pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) por suposta homotransfobia, levanta um debate vital sobre até onde a liberdade religiosa pode ir sem cruzar a linha do que se tem chamado de “discurso de ódio”. É possível que estejamos errando ao processar líderes religiosos por manterem fielmente suas convicções?
No episódio, ocorrido em Nova Friburgo (RJ) o padre, em uma missa, teria afirmado que “o demônio entrava nas casas das pessoas de diversas formas para destruir as famílias, sendo uma delas a união de pessoas do mesmo sexo”. Para o MPRJ, essas palavras configurariam homotransfobia, e a Promotoria buscou não apenas processá-lo criminalmente, mas também propôs uma ação civil pública contra ele e a Diocese de Nova Friburgo, exigindo indenizações que ultrapassam R$ 50 mil. No entanto, essa interpretação vai contra o espírito de liberdade religiosa e de expressão garantido pela nossa Constituição – no artigo 5.º, incisos VI, VII, VIII; e no artigo 19, I – e, mais especificamente, pela ADO 26, decisão essa que o próprio Ministério Público invocou de forma equivocada.
No caso do padre Antonio, não houve incitação à violência, nem a chamada para que seus seguidores agissem de forma hostil contra a comunidade LGBTQIA+, e muito menos qualquer ato de dominação ou supressão de seus direitos fundamentais
A ADO 26, julgada pelo Supremo Tribunal Federal e que reconheceu a homotransfobia como uma forma de racismo, ressalvou, de forma clara, a liberdade religiosa. Em suas palavras, “a repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa”. Em termos simples, o STF garantiu que líderes religiosos, como o padre Antonio Carlos, têm o direito de pregar e ensinar de acordo com sua fé, contanto que suas palavras não incitem à violência ou à discriminação. Isso significa que a fala de um padre ou pastor, por mais que possa constranger ou desagradar indivíduos de certos grupos, não se enquadra, em razão disso, como discurso de ódio.
Esse equilíbrio é fundamental para que não caiamos em um regime no qual o Estado e grupos de pressão passam a decidir o que pode ou não ser dito dentro dos templos e missas. O próprio julgamento da ADO 26 deixa claro que o discurso religioso está protegido, desde que não incite à violência ou discriminação real e, para efeitos de discurso de ódio, teria de ultrapassar as três fases do discurso odioso como definido pelo STF no caso do padre Jonas Abib (RHC 134682) e explicado, no detalhe, pelo brilhante editorial da Gazeta do Povo.
No caso do padre Antonio, não houve incitação à violência, nem a chamada para que seus seguidores agissem de forma hostil contra a comunidade LGBTQIA+, e muito menos qualquer ato de dominação ou supressão de seus direitos fundamentais. O que ocorreu foi a reafirmação de uma doutrina moral e teológica bimilenar, sobre a qual os próprios ministros do STF concordam que é um direito fundamental e inalienável dos fiéis.
De fato, em decisões anteriores, a própria corte já ressaltou que há uma diferença entre discurso de ódio e pregação religiosa. O pastor David Eldridge, que afirmou em um culto que “todo homossexual tem uma reserva no inferno”, também foi alvo de uma ação similar. No entanto, um juiz do Distrito Federal entendeu que essa fala, ainda que dura, se baseia em doutrinas religiosas sobre o pecado e a salvação, e que cabe à fé cristã julgar esses temas em seus próprios termos. Não houve defesa da violência, exploração ou extermínio de grupos, elementos essenciais para caracterizar o discurso de ódio.
Em casos como o do padre Antonio, o que o Ministério Público falha em entender é que a divergência de visões morais é inerente à nossa sociedade pluralista. Nem todos irão concordar com a ética sexual cristã, assim como nem todos concordam com a moralidade secular moderna. O que o Estado precisa garantir, em um contexto de verdadeira laicidade, é que essas divergências possam coexistir pacificamente, sem interferir na liberdade que cada indivíduo, ou cada grupo, tem de pregar e viver conforme suas crenças.
Se começamos a processar líderes religiosos por defenderem as bases morais de sua fé, abrimos um precedente perigoso para que o Estado defina o conteúdo das pregações religiosas e, principalmente, de suas crenças e dogmas
No fundo, o que está em jogo aqui é a essência do que significa viver em uma democracia laica. Se começamos a processar líderes religiosos por defenderem as bases morais de sua fé, abrimos um precedente perigoso para que o Estado defina o conteúdo das pregações religiosas e, principalmente, de suas crenças e dogmas. Ao fazer isso, o Estado entraria no mais íntimo da pessoa religiosa (maioria no Brasil), que é a sua fé. A ADO 26, ao incluir uma ressalva expressa para proteger a liberdade religiosa, reconheceu que pregações teológicas e morais são parte indissociável da vivência religiosa, e que sentimentos de constrangimento, por mais genuínos que sejam, não são motivo suficiente para silenciar essas pregações.
Se queremos garantir que o Brasil continue a ser um Estado laico colaborativo, precisamos reafirmar o compromisso de proteger tanto as minorias vulneráveis contra a violência e a discriminação, quanto a liberdade daqueles que acreditam em um sistema moral tradicional. O equilíbrio entre essas duas demandas não é fácil, mas é a única maneira de mantermos um espaço de convivência pacífica e respeitosa.
O que fica claro no caso do padre Antonio Carlos é que ele estava, como líder religioso, no pleno exercício de seu direito constitucional de ensinar o que sua fé prescreve sobre a moralidade e ética sexual. Se o Estado, por meio do Ministério Público, continuar a agir como censor desses discursos, caminharemos para um perigoso enfraquecimento das liberdades civis fundamentais, e a primeira a sofrer será, sem dúvida, a liberdade religiosa. Você pode se juntar a nós em uma ação pela defesa da liberdade religiosa em casos como o do padre Antonio Carlos, além de se aprofundar sobre o tema e conhecer o caso de outro líder religioso que está sendo processado por causa da sua fé, o pastor Jackson Jacques, sobre o qual também existe um parecer do IBDR.
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