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O Ministério da Justiça e Segurança Pública, em conjunto com a Secretaria Nacional de Políticas Penais e o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, recentemente divulgou uma resolução com o objetivo de orientar a assistência socioespiritual e a liberdade religiosa dentro do sistema prisional. No entanto, há sérias preocupações de que essa resolução viole direitos fundamentais assegurados pela Constituição brasileira e por tratados internacionais. Apesar de haver defensores da Resolução 34, alegando que ela está em conformidade com a lei, apresentaremos evidências que sugerem o contrário.
A malfadada resolução já começa quebrando tudo. Em seu artigo 1.º, inciso II, veda um dos direitos mais importantes decorrentes da liberdade religiosa: o proselitismo. O proselitismo religioso, além de ser um direito fundamental, é parte integrante do núcleo essencial da liberdade religiosa. Como ensinamos em nossa obra Liberdade Religiosa: fundamentos teóricos para proteção e exercício da crença, o “direito ao proselitismo é um elemento caracterizador essencial das maiores religiões, inclusive fundamenta o direito de ‘mudar de religião’, assegurado em todos os tratados internacionais que falam sobre o tema. A título exemplificativo, observa-se que, para o cristianismo, as Testemunhas de Jeová e a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (mórmons), o proselitismo é imperativo, trata-se de uma ordem, um mandamento decorrente de seus livros sagrados” (p. 126).
Leiam vocês mesmos o que diz a resolução: “Art. 1.º (...) II – será assegurada a atuação de diferentes grupos religiosos em igualdade de condições, majoritárias ou minoritárias, vedado o proselitismo religioso e qualquer forma de discriminação, de estigmatização e de racismo religioso” (grifo nosso). Este dispositivo viola diretamente o direito fundamental à liberdade religiosa ao proibir o proselitismo. Além disso, a redação deficiente do texto pode dar margem ao entendimento equivocado de que o proselitismo é considerado uma forma de discriminação, especialmente ao utilizar a expressão “e qualquer forma” imediatamente após a proibição do proselitismo.
Reiteramos que o proselitismo é essencial para manter a vitalidade religiosa, decorrente dos próprios dogmas e imperativos internos de cada fé. Proibir o direito ao proselitismo é uma interferência direta no cerne da religião; é dizer a um fiel que ele não deve seguir o que é mais sagrado para ele. É pedir a um cristão que ignore o mandamento de Cristo, expresso no “ide” ordenado pelo próprio Deus Filho: “E disse-lhes: Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura” (Marcos 16,15).
Resolução do Ministério da Justiça viola diretamente o direito fundamental à liberdade religiosa ao proibir o proselitismo nas prisões
O próximo descalabro está no artigo 4.º, incisos I, V e IX. Vejamos o primeiro desses incisos: “Art. 4.º É vedada: I – a participação de servidor público empregado privado ou profissional liberal como voluntário religioso nos espaços de privação de liberdade em que tenha atuação profissional direta”. Este inciso viola o direito fundamental de cada indivíduo, independentemente de ser servidor público ou prestador de serviços ao Estado, de possuir e praticar sua crença religiosa. A religiosidade é intrínseca à identidade de quem se identifica como religioso. Portanto, proibir um servidor ou prestador de serviços de exercer seu direito à assistência religiosa constitui uma clara violação à liberdade de crença e ao seu exercício.
É claro que, durante o horário de trabalho e enquanto estiver desempenhando suas funções como agente do Estado, o servidor ou prestador de serviços não pode realizar atividades religiosas, pois é remunerado para executar suas obrigações profissionais. Além disso, a separação entre Estado e religião, preconizada pela nossa laicidade, impede que sua atuação se confunda com a do Estado. No entanto, fora de seu expediente de trabalho, tanto a lei quanto a Constituição brasileira permitem que o servidor ou prestador de serviços exerça sua liberdade religiosa, inclusive em locais como prisões, desde que isso não interfira em suas responsabilidades profissionais.
Sigamos adiante: “Art. 4.º É vedada: (...) V – a suspensão do ingresso de representantes religiosos/as por motivos vinculados à expressão de sua religião ou ao viés humanitário da assistência socioespiritual, estando a discriminação sujeita à responsabilização pela Lei 13.869/2019 e, no que tange às religiões de matrizes africanas, aos crimes previstos na Lei 7.716/1989”. Surpreso? Eu também. Desde quando a Lei 7.716/1989 se tornou exclusiva para as religiões de matriz africana? Desde quando o Brasil se transformou em um Estado confessional de matriz afro? Não estamos em um país laico? Este dispositivo não só viola abertamente o princípio da isonomia, como também contradiz a característica fundamental da laicidade brasileira, que é tratar todas as religiões com igualdade. Nenhuma fé deve receber benefícios em detrimento de outra. No Brasil, todas as religiões merecem o mesmo tratamento benevolente e positivo por parte do Estado, e não apenas algumas selecionadas.
Este comando proíbe a suspensão do acesso de líderes religiosos aos presídios, o que é acertado. No entanto, incorre em erro ao estipular que a responsabilidade por práticas discriminatórias e penas da Lei 7.716/1989 se aplica exclusivamente quando a discriminação é dirigida às religiões de matriz africana. O artigo 20 da mesma lei é claro: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Isso significa que discriminar uma religião é crime, não importa qual seja. Mais um dispositivo da Resolução 34, portanto, que desafia a Constituição brasileira e a própria Lei 7.716/1989.
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Por último, o inciso IX do artigo 4.º proíbe “a comercialização de itens religiosos ou o pagamento de contribuições religiosas das pessoas privadas de liberdade às instituições religiosas nos espaços de privação de liberdade”. Esse dispositivo viola as liberdades religiosas do indivíduo segregado, que tem o direito de adquirir itens religiosos essenciais para sua prática religiosa, desde que não comprometam a segurança na prisão. Aplicar o princípio da “acomodação razoável” é fundamental para garantir que seus direitos sejam preservados, com a colaboração da assistência religiosa e das autoridades prisionais para evitar riscos à segurança.
Além disso, a proibição de contribuições religiosas é outra violação. Além de infringir o direito das organizações religiosas de recebê-las, viola especialmente o direito do fiel de fazê-las. A contribuição muitas vezes é um ato religioso revestido de sacralidade para o fiel; sua proibição é uma afronta ao seu foro interno, que, segundo o artigo 5.º, VI da Constituição Federal, é inviolável.
Continuando o caminho de inconstitucionalidades da Resolução 34, está o artigo 12 e seu parágrafo terceiro:
“Art. 12. As instituições religiosas que desejem prestar assistência socioespiritual e humanitária às pessoas presas deverão ser legalmente constituídas, por pelo menos 1 (um) ano, resguardadas as exceções previstas no § 3.º deste artigo.
(...) § 3.º As religiões de tradição oral, dentre elas as matrizes africanas e as religiões dos povos originários, bem como outros segmentos análogos, quando não possuidores dos documentos a que se refere o inciso b) do § 2.º do presente artigo, poderão comprovar sua constituição e regularidade por meio de declaração prestada pelo representante religioso, mediante formulário próprio, cabendo à administração, caso julgue necessário, a verificação in loco dos dados fornecidos.”
Como pode haver um prazo mínimo de um ano de existência para que uma instituição religiosa possa oferecer assistência religiosa? Essa previsão não só viola os incisos VI, VII e VIII do artigo 5.º da Constituição, como também contradiz o artigo 19, I, da Carta Magna, que proíbe qualquer entidade de criar obstáculos para as igrejas e cultos religiosos. A Constituição é clara ao proibir qualquer tipo de embaraço ao funcionamento das igrejas, e o estabelecimento de um período mínimo para o exercício de seus direitos constitucionais, como a assistência religiosa, constitui, sem dúvida, um tipo de embaraço.
O atual governo está abandonando o Estado laico existente no Brasil para, ao arrepio da Constituição, criar um Estado confessional de matriz afro, pois não é a primeira vez que age desta maneira
Além disso, esse dispositivo também entra em conflito com o artigo 44, §1.º, do Código Civil brasileiro, que assegura o livre funcionamento das organizações religiosas, proibindo qualquer interferência em sua estrutura e atividades: “As organizações religiosas têm liberdade para criar, organizar, estruturar-se internamente e funcionar, sendo vedado ao poder público negar-lhes o reconhecimento ou registro dos atos constitutivos necessários para seu funcionamento”.
Por fim, o artigo 12 da resolução cria uma exceção: todas as organizações religiosas precisam ter o lapso de um ano de existência, menos as de matriz africana. Exceção esta sem motivação jurídica razoável, e que fere a característica da igual consideração da laicidade brasileira e o princípio da isonomia, previsto no artigo 5.º, caput, da Constituição. É algo que seria possível apenas se o Brasil fosse um Estado confessional de matriz africana.
Terminado a estrada da inconstitucionalidade, seguimos para o artigo 14 – ah, o artigo 14... chega a ser surreal: “São requisitos indispensáveis ao credenciamento do agente voluntário: (...) II – não possuir familiares ou parentes de até segundo grau presos na unidade prisional na qual pretenda realizar a atividade religiosa; (...) IV – ser maior de 18 anos e residente no país”.
Este artigo define os requisitos para o credenciamento de agentes voluntários, incluindo aqueles que buscam exercer o direito constitucional à assistência religiosa. Um dos requisitos, conforme o segundo inciso, é que o candidato não tenha familiares até o segundo grau presos na unidade prisional onde deseja atuar. Além disso, o quarto inciso estipula que o candidato deve residir no país. Quer dizer que, se um jovem estiver preso, seu pai não pode participar como voluntário de um ritual religioso? Isso não parece razoável, especialmente considerando o que diz a Constituição brasileira no artigo 227, que afirma ser dever da família, da sociedade e do Estado garantir, com absoluta prioridade, o direito à vida, saúde, educação e convivência familiar dos jovens, além de protegê-los de toda forma de negligência e discriminação.
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Quanto à exigência de residir no país, a Constituição, no artigo 5.º, caput, afirma que todos, brasileiros ou estrangeiros residentes no Brasil, têm direito à vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade. Residir não implica necessariamente ter domicílio. Basta estar no Brasil para receber proteção constitucional. Portanto, a Resolução 34 não pode exigir que um ministro de culto tenha autorização de residência ou domicílio no Brasil para realizar um culto em um presídio, por exemplo.
Parece-nos que o atual governo está abandonando o Estado laico existente no Brasil para, ao arrepio da Constituição, criar um Estado confessional de matriz afro, pois não é a primeira vez que age desta maneira, como bem demonstra o caso da Resolução 715 do CNS, que comentamos aqui. A laicidade é uma conquista de que não vamos abrir mão.
Essa resolução está mesmo “redonda”, como dizem, ou está cheia de violações? Ao restringir direitos como o proselitismo religioso e impor requisitos impraticáveis para o credenciamento de agentes voluntários, ela não apenas viola garantias constitucionais, mas também ignora a complexidade das relações familiares e a própria natureza da liberdade religiosa. Essas violações criam obstáculos à assistência socioespiritual e à liberdade religiosa dos indivíduos encarcerados. E você, o que pensa sobre isso? Compartilhe nos comentários e não deixe de ler aqui um parecer completo sobre a tal resolução, elaborado pelo IBDR.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos