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Deltan Dallagnol

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Justiça, política e fé

Desprezo pela Constituição

Caso Zambelli escancara a servidão humilhante do Congresso ao STF

Moraes informa à Itália que Zambelli ficará presa no Complexo da Papuda
Moraes informou que, em caso de extradição, Zambelli ficará presa na Colmeia, parte do Complexo da Papuda. (Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado)

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Sem entrar no mérito da condenação de Carla Zambelli — se é justa ou injusta, se houve ou não perseguição —, vale olhar com lupa para os desdobramentos desse episódio: quem faz o quê dentro do desenho constitucional brasileiro.

No voto que condenou Zambelli pela invasão ao sistema do Conselho Nacional de Justiça, Moraes decretou a perda do mandato da parlamentar, nos termos do inciso III e do §3º do art. 55 da Constituição Federal, dizendo que a perda do mandato deveria ser “declarada” — e não decidida — pela Mesa da Câmara dos Deputados.

A lógica usada pelo ministro é a seguinte: Zambelli foi condenada a regime fechado por período superior a 120 dias. Presa, ela não poderia, obviamente, comparecer ao exercício do mandato. Sem comparecimento, ultrapassaria o limite constitucional de faltas.

O inciso III do art. 55 da Constituição prevê exatamente isso: a perda do mandato por ausência injustificada às sessões. Como dito anteriormente, o §3º desse mesmo artigo afirma que, nesses casos, a perda deve ser declarada pela Mesa da Casa do parlamentar — no caso, a Câmara.

O STF entende que não se trata de juízo político, mas de um “ato administrativo vinculado”; ou seja, não há espaço para discricionariedade, para escolha. A Câmara não decide se quer ou não: apenas constata o fato (a condenação do STF) e declara a consequência — como quem aplica um carimbo, de forma burocrática.

Só que há um problema nessa interpretação: a perda do mandato só poderia ocorrer após os 120 dias, não antes. Suponha-se que, nesse período, Zambelli conseguisse uma vitória em revisão criminal — improvável, mas possível. Ela retornaria à Câmara e não poderia ser cassada.

Enquanto não decorresse esse tempo, a cassação só poderia vir de outro inciso do art. 55: o inciso VI, que prevê a perda do mandato em razão de condenação criminal com sentença transitada em julgado. Nesse caso, segundo o §2º do artigo, a cassação precisa ser “decidida” — e não declarada — pela maioria absoluta da Câmara.

A discordância institucional surgiu quando a condenação de Zambelli chegou à Câmara. Pressionado por diferentes campos políticos, o presidente da Casa, Hugo Motta, decidiu não seguir o caminho determinado pelo STF.

Em vez de apenas declarar a perda do mandato com base no inciso III, ele reenquadrou o caso: transformou a comunicação do STF em representação e, mais importante, trocou o fundamento jurídico — saiu o inciso III, entrou o inciso VI do art. 55.

Para acalmar o Supremo, Motta prometeu a ministros que a própria Câmara cassaria Zambelli — o que, diga-se, é por si só imoral. Contudo, a Câmara votou e preservou o mandato da deputada. Diante disso, Moraes reagiu e atropelou Motta.

O ministro determinou a anulação da votação e decretou, ele mesmo, a perda do mandato, ordenando inclusive que o presidente da Câmara nomeasse o suplente em 48 horas. A Constituição foi, assim, atropelada por esse caminhão desgovernado que Moraes chama de hermenêutica. Ele substituiu o papel do Congresso. Para surpresa de zero pessoas, a Primeira Turma do STF confirmou sua decisão.

Moraes não inovou em tudo. A Câmara já fez algo parecido no passado. Em 2013, no caso do deputado Natan Donadon, condenado e preso em regime fechado na Papuda, o plenário também tentou “salvar” o mandato por meio de votação. À época, o ministro Barroso suspendeu os efeitos da sessão que manteve Donadon no cargo.

Mas há uma diferença fundamental entre os dois episódios. Na decisão sobre Donadon, Barroso foi explícito ao estabelecer os limites do STF. Ele suspendeu a votação da Câmara, mas fez questão de afirmar que não havia perda automática do mandato.

Ou seja, Barroso entendeu que seria necessário o ato declaratório da Mesa da Câmara para efetivar a perda do mandato. Moraes citou esse precedente de Donadon para justificar sua decisão, mas foi muito além: ele mesmo cassou o mandato.

Moraes também citou a cassação de Paulo Maluf para sustentar sua decisão. Nesse caso, o ministro Fachin determinou a perda do mandato após condenação criminal de Maluf. Mas, novamente, o detalhe importa: Fachin enviou a decisão à Câmara, que posteriormente declarou a perda do mandato.

Em ambos os casos, o STF não executou o ato final sozinho. Assim, ao reagir, o Supremo ultrapassou duas linhas: primeiro, não esperou o requisito de faltas às sessões se preencher para a perda do mandato; segundo, substituiu a Mesa da Câmara e executou diretamente a cassação.

Motta, no fim, ficou duplamente desmoralizado. Primeiro, por não cumprir sua promessa espúria, revelando a falta de controle sobre a Casa — saiu enfraquecido. Segundo, porque seria constrangedor reagir contra o Supremo após ter quebrado sua própria promessa. Foi subjugado.

Além disso, todos sabem que Motta, como Alcolumbre, vive amarrado — acorrentado como um escravo aos pés do Supremo — por grilhões chamados foro privilegiado. Isso mina as bases da separação de poderes, dos freios e contrapesos. Eles jamais vão querer acabar com o foro, porque é ali que “as coisas se resolvem”.

No fim das contas, o caso Zambelli escancara, mais uma vez, um problema fundamental do Brasil de hoje: o Supremo faz o que quer e o que não quer, manda e desmanda, rasga a Constituição — sem qualquer reação do Congresso, mesmo quando é humilhado.

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