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Começou nesta semana, no Supremo Tribunal Federal (STF), o julgamento do chamado “núcleo da desinformação”, o quarto grupo de réus na ação da chamada “trama golpista”. A sessão, nesta terça-feira (14), teve apenas as sustentações orais do procurador-geral da República (PGR), Paulo Gonet, e das defesas. Em seguida, foi suspensa e marcada sua retomada para a próxima terça-feira, mas já foi suficiente para antecipar como o STF vai prender e cassar a direita em 2026.
Gonet defendeu a condenação de todos os sete acusados, sustentando que eles seriam os responsáveis por “campanhas de desinformação” que teriam instigado a população e levado à “ruptura institucional” de 8 de janeiro. Segundo a PGR, os réus criaram “narrativas falsas” sobre o sistema eleitoral e as Forças Armadas, o que teria contribuído para o “desfecho violento” do 8 de janeiro, considerado o ápice da chamada trama golpista.
O problema é que, ao contrário do que a narrativa sugere, não há tanques, armas, derramamento de sangue. Não há decretos ou atos oficiais. Há palavras ao vento: mensagens de WhatsApp, conversas, opiniões, notícias encaminhadas entre os réus. Em um dos casos, o suposto “ato de golpe” consiste em uma mensagem em que um dos réus pergunta ao outro se Bolsonaro havia assinado um decreto. Fazer uma pergunta é crime?
Em outro caso, o engenheiro Carlos Rocha, fundador do Instituto Voto Legal, apenas cumpriu um contrato firmado com o PL para revisar dados das urnas. Seu relatório apontou um problema no registro de eventos em urnas anteriores a 2020, que prejudicaria a vinculação dos registros à urna física correspondente. Outras entidades disseram que, mesmo que isso seja verdadeiro, há outras formas de fazer a vinculação.
Não houve qualquer menção a uma fraude no relatório do Instituto — ao contrário, o próprio Carlos Rocha afirmou no Senado que “não há fraude nenhuma”. Em nenhum dos documentos relacionados a ele há a palavra “fraude”, e o próprio relatório produzido por ele, usado como prova de golpismo pela PGR, concluiu que as urnas não foram fraudadas. Mesmo assim, é acusado de tentativa de golpe.
O problema é que, ao contrário do que a narrativa sugere, não há tanques, armas, derramamento de sangue. Não há decretos ou atos oficiais. Há palavras ao vento
Um dos réus é acusado de ter encaminhado a outro réu uma notícia que mencionava ministros do Supremo, falsamente acusados de terem ligação com a empresa que fornece urnas eletrônicas ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Apenas encaminhado, não criado nem publicado. Pode ser desinformação, mas não é crime — muito menos crime de golpe. E, ainda assim, responde como se tivesse participado de uma conspiração armada.
A defesa de um dos réus explicou que ele recebia ordens de Braga Netto, mas jamais as executou; a de outro sustentou que participou de uma única reunião e sequer sabia do caráter supostamente criminoso de qualquer plano; a de um terceiro demonstrou que suas mensagens eram de dois meses antes dos fatos ocorridos em 8 de janeiro, sem qualquer relação direta; outra reforçou que não há prova alguma de que o réu tenha incitado violência ou conspirado contra as instituições.
Mesmo diante disso, a PGR e o STF insistem em tratar conversas de WhatsApp e postagens em redes sociais como se fossem quartéis-generais de um levante armado. É a transformação da liberdade de expressão em crime contra a democracia. É isso que o Supremo está julgando: não atos violentos, mas opiniões, mensagens privadas, notícias falsas e desinformação — tudo alçado à categoria de golpe.
Do ponto de vista jurídico, o processo é um escândalo. Nenhum dos réus tem foro privilegiado, o que já torna o STF incompetente para julgá-los. As condutas imputadas não se enquadram nos “tipos penais”, ou seja, não correspondem a crimes como são descritos na lei criminal. Tanto o crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito quanto o de tentativa de golpe exigem, como o próprio nome indica, violência ou grave ameaça.
Não existe golpe sem arma, sem coação, sem força ou, pelo menos, uma grave ameaça. Isso quem diz não sou eu, mas a lei. E o que há nesse processo são, na pior das hipóteses, trocas entre réus de mensagens com desinformação e opiniões equivocadas, que, segundo a lei atual, não são criminosas.
Não existe crime de fake news no Código Penal. Opiniões sequer se enquadram no conceito de fake news, porque são avaliações, julgamentos, e não descrições de fatos. O artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição, é claríssimo: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Isso significa que só o Congresso Nacional pode criar crimes e que um comportamento não pode ser punido por meio de sua criminalização posterior.
E, ainda assim, o STF parece disposto a criar, do nada, o “crime de desinformação contra o sistema eleitoral” e a aplicá-lo para comportamentos praticados no passado. Será um salto jurídico mortal, um verdadeiro triplo twist carpado para equiparar a troca de informações falsas e opiniões críticas às urnas a crimes de golpe de Estado. Isso viola todos os cânones do direito e do processo penal democráticos.
O mais alarmante é ver professores de direito penal, com toda naturalidade, defenderem essa monstruosidade publicamente. Um deles chegou a dizer ao jornal O Globo que o STF vai criar jurisprudência dizendo que “quem propagar notícias falsas questionando a lisura do processo eleitoral atenta contra o Estado Democrático de Direito”. Repito: criar um crime via decisão judicial posterior. Dizer isso sem corar e com ares de endosso é ignorar dois séculos de evolução do direito penal.
Felizmente, ainda há vozes sensatas, como a do ministro André Mendonça, que, no julgamento do Marco Civil da Internet, lembrou o óbvio: criticar o processo eleitoral não é crime. É direito constitucional garantido e protegido pela liberdade de expressão. É justamente essa liberdade que diferencia uma democracia de uma ditadura. Em uma ditadura, o Estado é incriticável. Em uma democracia, a crítica e o questionamento mantêm o poder sob controle.
Dar ao Estado o poder de controlar eventual desinformação ou opiniões equivocadas é extremamente perigoso. No dia seguinte, esse poder será usado para silenciar a imprensa, a crítica, os adversários políticos e até a ciência, quando forem inconvenientes ao governo de ocasião.
Esse julgamento do “núcleo da desinformação” é mais do que um teatro jurídico. É um experimento de poder. É a tentativa de criar, pela via judicial, um novo crime: o delito de opinião. E essa nova “ferramenta” poderá ser usada seletivamente em 2026 para perseguir adversários políticos e censurar vozes da direita, levando à prisão e a cassações no campo conservador em 2026, ano eleitoral.
O que está em jogo não é a punição de atos violentos, mas a criação de mecanismos para garantir a hegemonia ou a exclusividade do pensamento, das informações e das opiniões de um partido ou governante que detém o poder. Se o Supremo condenar os réus, estará abrindo um precedente perigoso que, em seguida, poderá condenar a própria democracia.
O julgamento definirá se questionar, duvidar e criticar autoridades pode ser tratado como golpe de Estado. Também definirá se é legítimo que o STF crie novos crimes para punir o que aconteceu no passado. O que está em jogo é realmente um possível golpe. Contido, é um golpe do Supremo e, nesse caso, não é apenas contra a democracia. É contra a liberdade.




