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Se alguém me dissesse que um dia eu veria o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), desmascarando seu colega, o também ministro Gilmar Mendes, eu não acreditaria ou acharia que era alguma fake news. Mas foi exatamente isso o que aconteceu: Flávio Dino, mais conhecido como o homem que destruía livros, atacou, sem dó nem piedade, o voto de Gilmar que mudou a lei de impeachment.
A cena é esta: depois de Gilmar decidir reescrever a lei para determinar que apenas o Procurador-Geral da República (PGR) tenha legitimidade para pedir o impeachment de ministros do Supremo, Dino correu, na maior afobação, para tentar defender a decisão corporativista do coleguinha. Vale lembrar que há hoje 81 pedidos de impeachment pendentes contra ministros do STF, e que esse número mostraria um “exagero” que Gilmar, altruisticamente, estaria tentando reparar.
Sim, é isso mesmo que você leu: 81 pedidos de impeachment contra ministros do STF. E foi isso que, numa declaração pública, Dino enfatizou, dizendo que não existe isso em nenhum lugar do mundo civilizado, querendo argumentar que há um “exagero artificial”. Contudo, Dino acabou confirmando justamente o oposto; afinal, o número sem precedentes de denúncias decorre de um número sem precedentes de abusos cometidos pelo STF.
De fato, nunca houve 81 pedidos porque nunca houve tamanho acúmulo de arbitrariedades. Dino, querendo desqualificar as acusações, na verdade, jogou luz sobre o tamanho do problema. É como um zagueiro que quer defender o seu time, mas se torna campeão em marcar gols contra: ele tenta tirar a bola da área e lança um petardo direto na própria rede. Dino virou, sem querer, o camisa 10 da direita.
E é exatamente aqui que vem a parte mais impressionante. No dia anterior, Gilmar Mendes havia tentado negar que sua liminar tivesse sido criada para blindar ministros do STF. Segundo ele, nada disso: bastaria “interpretar a Constituição”. Usou a velha retórica de que decisões que beneficiam o próprio Supremo são, na verdade, apenas “defesa da institucionalidade e da Constituição”.
Dino acabou confirmando justamente o oposto; afinal, o número sem precedentes de denúncias decorre de um número sem precedentes de abusos cometidos pelo STF
E então Dino, na ânsia de defender Gilmar, simplesmente abandonou o script. Disse, com todas as letras — e está gravado — que a lei do impeachment precisa ser mudada porque há dezenas de pedidos de impeachment contra ministros e que isso gera “instabilidade”. Ou seja: é blindagem, sim. É autoproteção, sim. É o STF legislando em causa própria, sim.
Essa declaração tem o valor de um documento histórico. Ela revela, pela boca de um ministro recém-chegado à Corte, que o Supremo está construindo mecanismos para impedir que seus integrantes sejam responsabilizados. E isso não é interpretação minha — é a frase do próprio Dino, fora dos autos, diante das câmeras. É um raio de sinceridade acidental que desmonta toda a narrativa de Gilmar.
Mas Dino não parou por aí. Em outra parte da declaração, ele sugere que o julgamento serve para “estimular o Congresso” a mudar a lei do impeachment. Ora, se isso não é antecipação de posição, o que seria? Ele não apenas opinou sobre um processo pendente de julgamento — o que é proibido pela Lei Orgânica da Magistratura — como também alinhou seu discurso exatamente ao que o STF pretende fazer: declarar inconstitucional a lei atual, abrindo o caminho para uma blindagem ainda mais ampla de ministros e autoridades.
E aqui está o problema jurídico central: o artigo 36, inciso III, da LOMAN é claro ao proibir que magistrados manifestem opinião pública sobre processos pendentes. A vedação existe justamente para preservar a imparcialidade. Isso, sozinho, já seria motivo para afastamento do ministro do caso, por prejulgamento, por opinar sobre processo alheio e por quebra de imparcialidade.
Ao tentar defender Gilmar, Dino expôs exatamente o que Gilmar tentou esconder. O voto do decano não é uma defesa da Constituição. É uma defesa de si mesmo e de seus iguais. É a tentativa de impedir o Congresso de exercer um dos poucos instrumentos constitucionais de controle sobre a Suprema Corte. É a mensagem de que ministros podem tudo, mas jamais podem ser responsabilizados.
Dino, sem querer, rasgou o véu. Mostrou a lógica interna do Supremo. Confirmou a blindagem. Expos o medo. E ainda violou a lei ao fazê-lo, comprometendo sua própria participação no caso. É difícil dizer se foi ingenuidade, soberba ou aquela velha sensação de impunidade que dá coragem a certos atores de falar o que não deveriam.
Seja como for, o fato está posto: Flávio Dino revelou, diante do país inteiro, que a decisão de Gilmar é, sim, uma fortaleza criada para impedir a responsabilização de ministros. E, mais do que isso: mostrou que o STF não quer ser controlado por ninguém. Nem pela Constituição. Nem pelo Senado. Nem pela sociedade.
Para quem acompanha a erosão institucional dos últimos anos, a pergunta que fica é simples: se até os ministros admitem, ainda que sem querer, que existe blindagem… o que mais falta acontecer para o Congresso reagir?




