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Deltan Dallagnol

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Justiça, política e fé

Golpe?

Os 5 grandes problemas da denúncia da PGR contra Bolsonaro

Bolsonaro
(Foto: Sebastião Moreira/EFE)

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A recente denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, de 272 páginas, descreve uma organização criminosa formada por 34 pessoas e que tinha como objetivo manter Bolsonaro no poder - ou retomar o poder - a qualquer custo desde, pelo menos, 2021. A denúncia diz que desde junho de 2021 a organização criminosa praticava atos dolosos em busca da “abolição do Estado Democrático de Direito” e do “governo legitimamente eleito”, referindo-se ao novo governo Lula. Como isso seria possível se, em 2021, o governo legitimamente eleito era o de Bolsonaro, que ainda era presidente? Esse é apenas um dos muitos problemas da denúncia. Destacarei cinco.

Antes disso, é importante dizer que a democracia se relaciona intimamente com a dignidade da pessoa humana, com seu grande valor imanente. Só ela garante a igualdade de todos - um homem, um voto - e a liberdade para o povo decidir seu destino. Mudanças de governo devem acontecer pelos canais democráticos, como as eleições ou o impeachment. Golpes de Estado, intervenções militares, ditaduras e quaisquer planos de homicídio devem ser repudiados de maneira enfática por todos, mas especialmente por quem se considera de direita, patriota, conservador e cristão. Eventuais crimes devem ser punidos, mas sempre de acordo com o que diz a lei, e não de acordo com o que os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) gostariam que a lei fosse. E a lei penal brasileira nesse caso não pune a cogitação, os pensamentos e planos não executados, como veremos a seguir. 

1. A base da denúncia: a delação premiada de Mauro Cid

O primeiro problema fundamental da denúncia é sua total dependência da delação premiada do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid. Essa delação foi feita após Cid permanecer preso ilegalmente, sem denúncia, por mais de 4 meses, o que coloca em xeque sua voluntariedade, requisito legal de validade da delação. Não bastasse isso, a delação foi inicialmente rejeitada pela PGR por ser considerada frágil e sem provas suficientes - apenas 3 dias depois da PGR rejeitá-la, Moraes a homologou. 

Depois disso, Cid foi pego em áudios afirmando que a Polícia Federal (PF) colocou palavras em sua boca e que ela já tinha a “narrativa pronta”, o que o fez ser preso novamente. Depois de Cid ser ameaçado por Moraes com uma nova prisão, rescisão do acordo e punições a seus familiares, ele mudou a versão de seus depoimentos. Em qual Mauro Cid acreditar: naquele espontâneo, dos áudios, ou naquele que agiu debaixo de ameaças à sua família? Se a lei exige provas que reforcem a palavra do colaborador, neste caso são necessárias provas independentes. Além disso, a lei é clara ao afirmar que a palavra do colaborador não pode ser a única base para uma denúncia. 

A PGR, no entanto, falha em apresentar essas provas adicionais, fazendo interpretações forçadas de conversas e eventos: exemplo maior disso é a imputação de autoria da minuta do golpe a Filipe Martins com base apenas na palavra de Cid. Não há outras provas que corroborem isso. 

Da mesma forma, uma base central da denúncia é a teoria de que o discurso contra as urnas era insincero e tinha por propósito manipular o povo, criando um ambiente favorável a um golpe. A denúncia usa vários discursos, lives e postagens nesse sentido como “prova” da trama golpista. Contudo, as provas indicam justamente o contrário: Bolsonaro critica as urnas desde pelo menos 2018. Além disso, dentre as anotações de Anderson Torres apreendidas, que teriam sido apresentadas por ele a Bolsonaro, constava: “por tudo que tenho pesquisado, mantenho total certeza de que houve fraude nas eleições de 2018, com vitória do Sr. no primeiro turno”. Se o discurso e os questionamentos eram sinceros, ainda que pudessem estar equivocados, cai grande parte da “prova” da trama golpista. 

2. A tentativa de golpe de Estado nunca foi executada

A denúncia afirma que Bolsonaro e seu grupo estavam organizando um golpe de Estado desde 2021 e que o 8 de janeiro de 2023 teria sido o ápice dessa trama. No entanto, o próprio documento da PGR admite em várias passagens que o golpe nunca chegou a ser executado, pois as Forças Armadas não aderiram ao suposto plano. Os crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L do Código Penal) e golpe de Estado (art. 359-M do Código Penal) exigem, para sua configuração, que sejam praticados “por meio de violência ou grave ameaça”. 

Se não há o emprego nem de violência nem de grave ameaça, todas as etapas anteriores apresentadas pela PGR, como reuniões para discutir o plano de ação, minutas de golpe, planos escritos, mensagens no WhatsApp, campanhas para desacreditar o processo eleitoral e bravatas constituem fatos preparatórios impuníveis que não possuem relevância penal. Além disso, há diversas provas de que houve desistência voluntária dos envolvidos em diversos momentos, ao perceberem que Bolsonaro não agiria e que as Forças Armadas não adeririam ao golpe. 

A “desistência voluntária” é uma regra da lei penal que impede a punição de uma pessoa quando ela voluntariamente desiste de executar um plano criminoso. O motivo da desistência aqui é irrelevante: pode ter sido o receio de punição ou a falta de adesão de terceiros ao plano. O que importa ao processo penal é que os denunciados não prosseguiram com o plano golpista para ações de violência ou de grave ameaça.

3. A PGR não conseguiu comprovar o vínculo da trama golpista com o 8 de janeiro

Esse é um dos maiores problemas da denúncia e um dos que mais revela as graves fragilidades da peça. A denúncia é incapaz de demonstrar uma conexão concreta entre Bolsonaro e os atos de vandalismo ocorridos em 8 de janeiro. Não há mensagens, áudios ou qualquer prova de que o ex-presidente tenha orientado manifestantes a invadir a Praça dos Três Poderes. O próprio Diretor-Geral da Polícia Federal admitiu recentemente que não houve um financiamento centralizado dos atos, o que confirma que as ações foram orgânicas e descentralizadas, sem um planejamento central. 

Aliás, Bolsonaro sequer estava no Brasil na época da manifestação. Não é crível que o ator central do golpe de Estado observasse seu próprio golpe do exterior, silente. Em que golpe no mundo algo parecido aconteceu? Além da falta de vinculação entre o grupo de Bolsonaro e o 8 de janeiro, há um segundo problema aqui: os vandalismos do 8 de janeiro não foram, definitivamente, uma tentativa de golpe. Os meios empregados, sem armas de fogo ou poderio militar, eram absolutamente ineficazes para produzir um golpe e a lei penal chama esse tipo de situação de “crime impossível”, que não está sujeito a punição. Na pior das hipóteses, muitos manifestantes agiram para incitar as Forças Armadas para que estas dessem um golpe, o que caracterizaria o delito de incitação ao crime, com penas muito mais baixas.

Como a PGR não conseguiu comprovar que os planos golpistas saíram do papel e envolveram violência e grave ameaça antes do 8 de janeiro, a PGR precisava fazer duas coisas para ter uma denúncia viável: vincular as manifestações violentas com o grupo de Bolsonaro e transformá-las em uma tentativa de golpe de Estado. Assim, era um passo necessário para condenar Bolsonaro o enquadramento dos réus do 8 de janeiro por golpe de Estado, ainda que isso importasse em aplicar penas injustas, que chegaram a 17 anos de prisão. 

4. Contradição sobre os diferentes planos de golpe

A PGR sustenta que Bolsonaro liderava três planos de golpe diferentes: o da minuta do golpe, que previa a decretação do Estado de Defesa e a prisão de Alexandre de Moraes, o “Punhal Verde e Amarelo”, que previa a prisão e assasinato de Alexandre de Moraes e o envenenamento de Lula e Alckmin, e um terceiro, o “Copa 2022”, que buscava gerar caos social para justificar uma intervenção militar. O problema é que esses planos são incompatíveis entre si, têm métodos diferentes e não poderiam ser liderados simultaneamente por Bolsonaro. 

Como Bolsonaro poderia estar liderando e executando três planos diferentes ao mesmo tempo, com objetivos tão distintos? A denúncia não explica isso. Ela também omite o fato relevante de que Bolsonaro, como revelou o próprio ministro da defesa de Lula, José Múcio, ajudou a transmitir o comando das Forças Armadas ao governo de transição de Lula, o que demonstra de forma inegável que não houve execução do plano golpista. Qual presidente que pretende dar um golpe de Estado transfere a seu principal adversário político o comando das Forças Armadas, justamente quem poderia efetuar o golpe?

5. Criminalização da liberdade de expressão e do direito de crítica

Por fim, a denúncia tenta transformar críticas ao sistema eleitoral e ao governo em prova de intenção golpista. Porém, criticar o TSE, as urnas e o sistema eleitoral brasileiro não é crime nem ilegal segundo as leis brasileiras. Também não é crime espalhar fake news ou desinformação, que sequer são conceitos que existem na lei brasileira. As instituições públicas devem estar sujeitas a questionamentos e ninguém é obrigado a acreditar ou desacreditar em uma coisa ou outra. Isso deriva do princípio constitucional da legalidade, que reconhece o espaço de liberdade dos cidadãos fora daquilo que a lei proíbe.

A PGR constroi uma narrativa implausível segundo a qual qualquer dúvida sobre a lisura do processo eleitoral é automaticamente um indício de conspiração criminosa. Além disso, a PGR não exclui a hipótese alternativa: a de que as pessoas envolvidas acreditavam sinceramente em uma possível fraude por mais que existam evidências em contrário. Se o grupo de Bolsonaro duvidava do sistema eleitoral, uma pesquisa do PoderData de dezembro de 2022 apontou que eles não estavam sozinhos: 36% dos brasileiros achavam que a contagem de votos não era segura. 

Se o grupo de Bolsonaro, como 36% dos brasileiros, tinha dúvidas genuínas sobre o sistema eleitoral, ainda que estivessem errados nisso, isso derruba grande parte da denúncia que se baseia na teoria de que a crítica às urnas era feita para sustentar um golpe de Estado. Essa criminalização do pensamento e do discurso político, sem provas da má-fé ou insinceridade do discurso, abre um precedente autoritário, perigoso e inaceitável para a democracia, já que a liberdade de expressão existe justamente para proteger o discurso desagradável ou desaprovado socialmente.

A distopia suprema

Há muitos outros problemas desse caso criminal contra Bolsonaro que já apontei em outro artigo aqui na Gazeta, como o evidente impedimento do juiz-vítima Alexandre de Moraes. Os problemas da denúncia gritam. Vemos uma interpretação “criativa” dos fatos e uma aplicação completamente heterodoxa da lei penal. As fragilidades jurídicas da denúncia contra Bolsonaro expõem uma motivação política, que nem mesmo o STF esconde. 

De fato, ministros da corte se fizeram claros por porta-vozes da imprensa: pretendem condenar Bolsonaro até o fim do ano para “evitar contaminação do ano eleitoral”, isto é, para evitar que Bolsonaro possa concorrer nas eleições de 2026, mesmo superando Lula e todos os demais candidatos em intenção de votos, como revelou um levantamento do Paraná Pesquisas publicado no mesmo dia em que a denúncia foi oferecida. 

O cenário é de um jogo de cartas marcadas e de um julgamento “fake”, em que os ministros do STF já se decidiram pela condenação e até seu prazo. Não importa o que as defesas irão alegar ou que provas vão apresentar ao longo do processo. É algo digno das piores ditaduras já vistas na face da terra, que julgavam seus adversários políticos e dissidentes com base em uma conta de chegada e em conclusões já tomadas de antemão, contra as quais ninguém poderia se defender ou comprovar inocência. 

Nem mesmo Kafka ou Orwell conseguiriam escrever um enredo tão opressor, autoritário e distópico como o que os ministros do Supremo escrevem na história do Brasil atual. E a frase final do roteiro já foi escrita: “derrotamos o bolsonarismo”.

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