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Os últimos dias de vida do prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB), suscitaram nas redes sociais alguns comentários eivados de ódio e intolerância. Tais postagens apareceram em perfis tanto de esquerda quanto de direita, ou seja, de algumas pessoas que não se conformaram em ver seus candidatos sendo derrotados nas eleições municipais do ano passado por um candidato fisicamente debilitado e politicamente moderado. A morte de Bruno Covas neste domingo (16) fez com que as mensagens de solidariedade vindas de todo o espectro político soterrassem aquelas que comemoravam a notícia ou ironizavam e criticavam o fato de o prefeito ter insistido em buscar a reeleição apesar da doença grave.
Covas nunca escondeu a gravidade do câncer contra o qual lutava. Ele demonstrava otimismo com o tratamento, sim, talvez mais do que as evidências permitiam, mas isso não era uma tática para esconder dos eleitores sua real condição. Esse otimismo era real, era a vontade de viver, era fé e era a força que ele precisava transmitir não apenas para si mesmo, mas também para o seu filho, seus familiares e sua equipe na gestão municipal.
Covas não aceitava se entregar. Nos seus últimos dias, já internado no hospital, continuava recebendo aliados — não para falar da sua condição, mas para fazer articulações políticas. Era um dos defensores da filiação do vice-governador de São Paulo, Rodrigo Garcia, ao PSDB, por exemplo.
Dizer que Bruno Covas não deveria ter se candidatado por causa da doença, porque poderia não sobreviver a ela, não é apenas um desrespeito à fé que ele mesmo tinha em sua cura, mas também um atentado à inteligência dos eleitores.
Celso Russomanno (Republicanos), quando já estava em queda nas pesquisas, achou por bem levantar a lebre de que quem poderia vir a governar São Paulo seria Ricardo Nunes (MDB), vice de Covas. E ligou essa possibilidade claramente à questão da saúde: "Não vou fazer considerações, isso quem tem que fazer é o médico dele. Tem que falar com o médico dele", disse Russomanno quando perguntado sobre o que, na sua opinião, levaria Covas a se afastar o cargo. A declaração saiu pela culatra: Russomanno continuou derretendo nas pesquisas.
Bruno Covas não escondeu sua luta contra o câncer, e isso pode até ter ajudado a reforçar a admiração de uma parte do eleitorado que via ali as qualidades de um gestor que não abandonava o trabalho mesmo nos momentos pessoais mais difíceis.
Mas sua campanha tentou, sim, esconder o seu vice, o vereador Ricardo Nunes e, agora, prefeito de São Paulo até 2024. A tentativa não vingou. A imprensa trouxe à tona acusações de envolvimento com a máfia das creches e de violência doméstica contra Nunes. Covas foi questionado ad naseam sobre o vice. Nunca se esquivou de responder sobre isso.
Eu mesmo participei de três longas sabatinas com o então candidato Bruno Covas e em todas perguntei sobre os rolos de Nunes. Em uma delas, em entrevista ao programa Roda Viva, na TV Cultura, perguntei se a escolha de Ricardo Nunes havia sido uma imposição do governador João Doria, em uma estratégia de aproximação com o MDB. Covas garantiu que não.
Se entre os detratores de direita a birra com Covas era pelo fato de ele ter se tornado um crítico ferrenho do presidente Jair Bolsonaro, entre os adversários de esquerda a reclamação contra a reeleição do tucano agora se concentra no fato de que seu sucessor tem um perfil conservador.
Ideologicamente, Nunes está mais próximo do bolsonarismo do que jamais esteve Covas. Como vereador, atuou contra o que chamava de "ideologia de gênero" nas escolas e flertou com o movimento Escola Sem Partido.
Se Nunes tivesse um perfil mais "progressista", será que Covas teria sido alvo de comentários tão desumanos como foi nos últimos dias por esses críticos de esquerda? Provavelmente não, e eis a maior hipocrisia da coisa toda.
Como já escrevi antes, os eleitores paulistanos premiaram nas urnas, no segundo turno, um modo de fazer política baseado no respeito à divergência e na moderação política. A morte de Bruno Covas deve ser lamentada por todos que sonham com um ambiente político em que o debate de ideias ocorra de maneira civilizada, sem apologia da violência e com respeito à vontade da maioria dos eleitores.