Nesta segunda-feira (2), foram anunciados os ganhadores do Prêmio Nobel de Medicina 2023, a bioquímica húngara Katalin Karikó e o imunologista americano Drew Weissman, pelas pesquisas inovadoras com o RNA mensageiro (mRNA) que permitiram o desenvolvimento da última geração de vacinas sintéticas. Aplicada com sucesso nas vacinas da Pfizer e da Moderna contra a Covid-19, a tecnologia não surgiu, porém, do dia pra noite — ou de 2019 para 2020, quando se iniciou a pandemia do novo coronavírus, que matou quase 7 milhões de pessoas em todo o mundo. Os estudos que levaram ao desenvolvimento das vacinas de mRNA ocorrem desde o início dos anos 1990.
Karikó e Weissman, pesquisadores vinculados à Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, encontraram uma nova abordagem promissora para as pesquisas com mRNA e começaram a publicar os primeiros resultados positivos em 2005. Os obstáculos superados por eles encorajaram alguns laboratórios a investir no desenvolvimento das vacinas com a nova técnica. Quando a pandemia de Covid-19 estourou e o mundo ansiava por vacinas eficientes contra a doença, a gigante farmacêutica Pfizer, por exemplo, já havia investido mais de 1 bilhão de reais em uma startup alemã, a BioNTech, que trabalhava com a nova tecnologia.
O investimento em novos produtos da indústria farmacêutica é uma aposta de risco.
O investimento em novos produtos da indústria farmacêutica é uma aposta de risco. Gasta-se muito e o resultado nem sempre traz o resultado esperado, que pode ser oferecido ao mercado. A demanda emergencial — e os lucros que dela poderiam derivar — fez a Pfizer dobrar a aposta, aplicando mais 1 bilhão de dólares no programa de imunização contra covid-19, dos quais metade foi injetado para aumentar a capacidade de produção.
Enquanto isso, uma farmacêutica pouco conhecida, a Moderna, que havia faturado só 60 milhões de dólares em 2019, também se mostrou bem posicionada para entrar no mercado de vacinas com a tecnologia de mRNA. Além de investimento privado, antes mesmo da pandemia as pesquisas para desenvolvimento de vacinas com RNA mensageiro haviam recebido 116 milhões de dólares de agências do governo americano. Quando a pandemia começou, o investimento estatal chegou à casa dos 2 bilhões de dólares.
Os estudos que levaram ao desenvolvimento das vacinas de mRNA ocorrem desde o início dos anos 1990.
A relação entre risco e lucro e a concorrência ferrenha entre as empresas do setor farmacêutico são uma comprovação de que o capitalismo, mais do que qualquer outro sistema econômico já experimentado, é capaz de trazer avanços rápidos para a humanidade, em termos de sobrevivência e qualidade de vida.
Apesar disso, em meio aos esforços de empresas e governos para obter vacinas eficientes em tempo recorde para lucrar e salvar vidas, uma minoria engajou-se em uma campanha contrária aos imunizantes salvadores. Sim, salvadores. Um estudo publicado na revista médica The Lancet apontou que, só no primeiro ano de vacinação em todo o mundo (e mesmo com os atrasos e com a escassez de doses), mais de 14 milhões de mortes por Covid-19 foram evitadas (das quais 1 milhão no Brasil). Em outro estudo publicado em uma seção regional da mesma revista científica, estimou-se em até 63 mil o número de idosos brasileiros salvos da covid-19 por meio da vacinação entre janeiro e agosto de 2021 (portanto, em um período em que a vacina da Pfizer nem era a mais disponível nos postos brasileiros).
Quatro fenômenos explicam o movimento dos céticos da vacina contra Covid-19. Primeiro, o negacionismo científico derivado em parte da dificuldade de entender conceitos complexos (como os preceitos éticos por trás da relação risco-benefício de uma campanha de imunização), em parte do sentimento antiacadêmico presente no grupo político que ocupou o poder no Brasil e nos Estados Unidos no auge da pandemia.
A tendência a se apegar a teorias da conspiração, como a de que o poder das grandes empresas farmacêuticas (a chamada big pharma) leva à ocultação de tratamentos eficazes baratos.
Segundo, a contaminação da política em debates técnicos, a ponto de o fator anterior (o negacionismo científico) se tornar determinante para medir o grau de adesão ao presidente de plantão. Influenciadores e pseudjornalistas, ávidos por conquistar o seu quinhão de seguidores, competiam para ver quem demonstrava o maior grau de pureza bolsonarista por meio da divulgação de informações falsificadas ou meias verdades que contribuíam para a narrativa antivacina. "Eu não sou antivacina!", esbravejavam, antes de engajar-se em discursos que procuravam levantar dúvidas infundadas em relação às vacinas contra Covid-19.
Terceiro, o medo irracional de efeitos colaterais (alguns hipotéticos, alguns leves, outros raríssimos) incutido por grupos e empresas que lucravam com tratamentos ineficazes ou não comprovados (e que perderiam demanda com a adesão à vacina) e pelos comunicadores e políticos cuja popularidade dependia do adesismo político ao governo de plantão.
Quarto, a tendência a se apegar a teorias da conspiração, como a de que o poder das grandes empresas farmacêuticas (a chamada big pharma) leva à ocultação de tratamentos eficazes baratos e a empurrar terapias caras e inseguras goela abaixo do mercado. A teoria da big pharma tem um fundo anticapitalista, pois se aproxima da convicção de que o capital é inerentemente mau e que o interesse de grandes corporações é incompatível com o bem público.
A decisão do comitê sueco de premiar com o Nobel de Medicina uma dupla de cientistas que há décadas desenvolve uma tecnologia que permitiu, no momento da necessidade, desenvolver uma vacina em tempo recorde contra a maior ameaça de saúde pública dos tempos modernos escancara o caráter anticapitalista dos militantes antivacina, inclusive entre os brasileiros.
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