Ouça este conteúdo
Na última quinta-feira, dia 14, o então presidente do Sri Lanka, Gotabaya Rajapaksa, renunciou ao cargo por email, após fugir para Singapura, passando primeiro pelas Maldivas. O ato conclui a fase mais dramática da maior crise econômica e política da História independente do país, Estado fundado em 1948 e uma república desde 1972. Junto com as notícias chocantes e as imagens impressionantes que circularam o mundo, também vieram análises e comentários sobre os motivos de tamanha crise. Uma abordagem que repercutiu bastante foi a de que a imposição da agricultura orgânica teve um grande papel na atual crise, o que é parcialmente verdade. Afinal, o que explica essa crise sem precedentes?
A questão da agricultura orgânica esteve presente também em textos aqui na Gazeta, de autoria da colega Mariana Braga, e a coluna vai buscar um diálogo com esse conteúdo produzido com esmero. Infelizmente, também existe o fenômeno de muitas pessoas procurarem explicações simplistas para fenômenos complexos, que se encaixem em perspectivas ideológicas prévias ou sejam de fácil assimilação. O buraco onde o Sri Lanka está, entretanto, “é mais embaixo”, como diz o ditado, misturando a questão agrícola, balança comercial, combustíveis, pandemia, terrorismo e clientelismo político.
Política local
Primeiro, o ex-presidente Gotabaya Rajapaksa é de uma das famílias mais tradicionais da política cingalesa, os Rajapaksa, com poder e influência desde o período colonial. Até meses atrás o primeiro-ministro era seu irmão Mahinda Rajapaksa, ele um ex-presidente. O ministro de Finanças era um terceiro irmão, Basil Rajapaksa. A família é a maior protagonista da política local nas últimas décadas e, nos últimos anos, integrantes da família apareceram em alguns dos vazamentos de dados de escritórios de advocacia sobre contas em paraísos fiscais.
Esse é um primeiro elemento dos protestos, o fato do país ser governado por um clã considerado corrupto, clientelista e muitas vezes incompetente. Para muitos manifestantes, o país foi mal gerido economicamente, em parte pelo fato do ministro das Finanças ocupar esse cargo apenas por ser da família. Um dos primeiros alvos da multidão nos protestos, no último nove maio, foi a destruição da walauwa da família, uma espécie de “casa de campo” tradicional das grandes famílias locais.
A atual crise, no espectro político, também é a maior da História do país. Foi a primeira vez que o mandatário do Sri Lanka renunciou ao cargo. A crise provavelmente também possui um componente de briga por poder dentro da família. Mahinda, inclusive, continua no país. Junto com essa insatisfação vêm a questão da agricultura orgânica, já que, além dos aspectos técnicos da medida, a maneira como ela foi imposta, sem prazo hábil e de maneira autoritária, enfureceu muitas pessoas. Além de imposta de maneira autoritária, a medida de banimento de importações de fertilizantes inorgânicos foi imposta em abril de 2021.
O leitor deve ter reparado que essa é uma data já do período da pandemia. Além disso, o Sri Lanka já estava em maus lençóis econômicos. Já em dezembro de 2020, a agência de risco S&P alertou para um iminente risco de “calote” do país, causado pelo rápido crescimento de sua dívida externa, acompanhado internamente de cortes de impostos. Ou seja, o governo, ao mesmo tempo que devia mais, diminuiu sua arrecadação. O principal componente da crise do Sri Lanka, entretanto, está nos combustíveis. O país importa a maior parte do que consome de petróleo e derivados. Em 2019, antes da pandemia, o país exportava um total de 12,9 bilhões de dólares de produtos, enquanto importava 19,9 bilhões de dólares.
Combustíveis
Mais da metade desse déficit da balança comercial de sete bilhões de dólares corresponde aos combustíveis importados. Como o Sri Lanka conseguia “compensar” esse déficit, então? Com a entrada de dólares via serviços e remessas de nacionais que moram no estrangeiro. Em 2019, o turismo correspondia a cerca de 5% do PIB do país, trazendo moeda forte para o país. No mesmo ano o turismo sofreu um grande golpe, após os atentados a bomba durante a Páscoa. Com a pandemia, o setor praticamente fechou suas atividades. A emergência sanitária também diminuiu as remessas de cidadãos no estrangeiro e esfriou bastante as atividades do porto de Colombo, o mais movimentado do oceano Índico e importante hub logístico para rotas de carga.
As atividades portuárias também eram outra fonte importante de divisas para a economia do país. Em 2019, antes da pandemia, o porto movimentou quase o dobro de contêineres que o porto de Santos, por exemplo. Como consequência, o país tem menos de um bilhão de dólares em reservas e uma dívida externa na casa dos cinquenta bilhões de dólares. O país anunciou o chamado calote da dívida, sua inflação disparou nos últimos meses, a moeda local perdeu valor e a economia parou pela falta de combustível. Literalmente parou.
No final de maio o governo chegou a anunciar que apenas veículos que prestavam serviços essenciais poderiam ser abastecidos e foi necessário que o governo praticamente implorasse para a Rússia por um carregamento de petróleo com prazos bastante amigáveis de pagamento. O ato de banir a importação de fertilizantes, inclusive, teve um componente oportunista, de tentar diminuir as importações do país em um momento delicado, na lógica de que o país sequer teria os recursos para importar fertilizantes quando da desastrada proibição.
A medida, no entanto, teve um efeito reverso, já que implicou na necessidade de importações de arroz e prejudicou as exportações de chá, o principal produto de exportação do país e responsável por cerca de 2% do PIB. Se o cenário político e econômico já estava ruim, ficou ainda pior. Agora, o Sri Lanka busca apoio econômico na Índia e na China, seus dois maiores credores, com a Rússia como potencial fornecedor de combustíveis. Mais do que apenas uma ou outra explicação, como a imposição da agricultura orgânica, a maior crise política e econômica da História do Sri Lanka é consequência de uma “tempestade perfeita”, unindo questões da política local, uma economia que já vinha balançando, pandemia, combustíveis e decisões desastradas.
VEJA TAMBÉM: