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A semana foi de crise e animosidades entre a China e as Filipinas. No último sábado, o governo filipino acusou a guarda costeira da China de usar um canhão de água para impedir uma missão de abastecimento militar filipina no Mar do Sul da China, condenando as ações como ilegais, “excessivas” e “perigosas”. O local é um dos principais focos de tensão territorial do mundo hoje e também envolve os EUA de maneira indireta. Curiosamente, no centro da atual crise está uma relíquia naval de quase oitenta anos de idade.
A República Popular da China adota uma política, desde 1949, de reivindicar territórios que foram, em algum momento, pertencentes à dinastia Qing. Essa foi, por exemplo, a justificativa para a anexação do Tibete, posse chinesa até 1912. No caso do Mar do Sul da China, o governo de Pequim reivindica a chamada Linha dos Nove Traços. O traçado recentemente esteve no centro de uma polêmica envolvendo o filme da Barbie, que foi banido no Vietnã e nas Filipinas por supostamente mostrar o traçado.
A China projeta sua plataforma continental por um enorme pedaço de mar, sobrepondo suas reivindicações com as demandas territoriais de outros países. No caso, Brunei, Malásia, Indonésia, Filipinas, Vietnã e também a República da China, normalmente chamada apenas de Taiwan. O governo de Pequim considera Taiwan uma província rebelde que precisa ser reintegrada ao país. Ou seja, as duas crises irredentistas chinesas, no Mar do Sul da China e em Taiwan, dialogam entre si.
Além de uma demanda do orgulho nacional chinês, o Mar do Sul da China é um local estratégico e essencial na geopolítica contemporânea. Em números pré-pandemia, por ali transitam anualmente cinco trilhões de dólares em produtos, o mais intenso gargalo de tráfego marítimo do mundo. Outro interesse na região é a óbvia exploração da zona econômica exclusiva a que cada país tem direito. Recursos como pesca, hidrocarbonetos e, futuramente, a mineração no leito marítimo.
Base militar improvisada
Como consequência dessa vasta disputa por território marítimo e recursos, a região do Mar do Sul da China tem sido cada vez mais militarizada. Os países envolvidos nas disputas têm expandido suas forças e bases navais. Os recifes e atóis da região têm sido transformados em guarnições militares. Isso é importante pelo fato de que não abundam ilhas ou locais habitáveis propriamente ditos no Mar do Sul da China, apenas pequenos rochedos e ilhotas que não comportam uma habitação como um vilarejo.
Situação parecida é a dos territórios brasileiros nos arquipélagos de Trindade e Martim Vaz e de São Pedro e São Paulo, no meio do Atlântico, cuja presença é a de militares da Marinha do Brasil e de oceanógrafos. No caso do Mar do Sul da China, o país usa muitos recursos para a construção do que os EUA chamam de Grande Muralha de Areia, com a construção de ilhas artificiais em torno dos recifes naturais existentes. A expansão permite a construção de pistas de pouso e de guarnições permanentes.
O governo das Filipinas, com recursos muito mais escassos, não consegue acompanhar esse ritmo. Por isso, em 1999, intencionalmente encalhou o navio de transporte Sierra Madre no banco de areia que chamam de Ayungin. Um sinal de que um território é contestado é quando ele possui variados nomes. Falklands ou Malvinas, Imia ou Kardak, dentre outros exemplos. O que os filipinos chamam de Ayungin os chineses chamam de Renai e os EUA de bancos de areia de Thomas.
O navio Sierra Madre foi construído em 1944 e foi utilizado pela marinha dos EUA na Segunda Guerra Mundial e na guerra do Vietnã. Em 1970 foi repassado aos aliados do Vietnã do Sul que, pouco antes de sua derrota, repassaram o navio para a marinha filipina em 1976. As Filipinas foram uma posse colonial dos EUA de 1898 a 1946 e, até hoje, os dois países mantêm relações próximas, inclusive uma aliança de cooperação militar. Hoje, os EUA são aliados filipinos na disputa com a China.
Protestos chineses
O motivo do encalhamento intencional do navio é para ele servir como uma base militar improvisada, com uma pequena guarnição nos alojamentos da embarcação e a possibilidade da operação de um helicóptero em seu convés. O navio filipino atacado com canhões d’água pelos chineses estava em missão de abastecimento para essa base militar improvisada. No último dia oito de agosto, o governo chinês exigiu a retirada do Sierra Madre do banco de areia.
Segundo o governo chinês, a presença do navio é ilegal e o banco de areia deve voltar ao seu “estado natural sem ocupação”. Também segundo o governo chinês, os filipinos já teriam prometido a retirada da embarcação, compressa não cumprida. O banco de areia fica a cerca de duzentos quilômetros da costa da ilha filipina de Palawan, enquanto fica a mais de mil quilômetros do território continental chinês. Os governos dos EUA e do Japão condenaram as ações e a exigência chinesa.
O banco de areia está no centro de uma decisão da Corte Internacional de Justiça de 2016, que deu ganho de causa aos filipinos e afirmou que a Linha dos Nove Traços não possui base legal. A decisão não foi aceita pela China, que a condenou como uma “orquestração” pelos EUA. Não é coincidência que, desde então, as ações navais ostensivas na região foram ampliadas por quase todos os atores envolvidos. Recentemente, um porta-aviões nuclear dos EUA visitou o Vietnã, em demonstração de apoio, por exemplo.
Já falamos dos planos navais chineses aqui em nosso espaço. O que faz do Mar do Sul da China um potencial barril de pólvora é justamente o fato de muitas reivindicações de potências regionais também se sobreporem, não apenas a chinesa. Isso aumenta, e muito, o risco de um conflito na região, que comece entre potências regionais e escale envolvendo as potências mundiais. O que pode começar pela disputa por uma relíquia da Segunda Guerra Mundial pode ganhar proporções maiores. Torcemos que não.
Conteúdo editado por: Bruna Frascolla Bloise