O Conselho de Segurança da ONU (CSNU) finalmente aprovou uma resolução que exige um cessar-fogo em Gaza. O voto marca uma mudança de posição dos EUA, cuja atuação incondicional em prol dos interesses de Israel no organismo estava causando críticas. Em ano eleitoral, Joe Biden quer agradar gregos e troianos e, na sua tentativa de circular em todos os ambientes, conseguiu diminuir os eventuais méritos de sua postura.
A resolução 2728 foi aprovada por catorze votos a favor e uma abstenção, a dos EUA, que já havia vetado propostas anteriores, incluindo uma promovida pelo Brasil. Na semana passada, Rússia e China vetaram uma proposta de resolução pelos EUA. Todos esses casos de vetos pelos membros permanentes mostram como, na atual crise, o CSNU não é somente uma ferramenta de diálogo na política externa, mas também de embate.
Além do voto favorável das outras quatro potências permanentes do Conselho, todos os países que ocupam assentos rotativos votaram pela resolução. Isso inclui dois aliados asiáticos dos EUA, Japão e Coreia do Sul e um aliado da OTAN, a Eslovênia. Outros votos notáveis foram o da Suíça, país tradicionalmente mediador, e o da Argélia, o atual representante árabe no Conselho.
Texto da Resolução
No Direito, especialmente internacional, o “diabo mora nos detalhes”, como diz o ditado do idioma inglês. Ao olhar para o texto integral da resolução, em seu preâmbulo, o documento usa o verbo exigir ao dizer que é necessário que “que todas as partes cumpram as suas obrigações ao abrigo do Direito Internacional, incluindo o Direito Internacional Humanitário e o Direito Internacional dos Direitos Humanos”.
Esse trecho citado parece direcionado ao governo de Israel. É seguido, entretanto, de que “a este respeito, deplora todos os ataques contra civis e bens civis, bem como toda a violência e hostilidades contra civis, e todos os atos de terrorismo e recorda que a tomada de reféns é proibida pelo Direito Internacional”. Ou seja, um trecho direcionado ao Hamas e seus integrantes, especialmente sua cúpula sediada no Catar.
O Conselho expressa “profunda preocupação com a catastrófica situação humanitária na Faixa de Gaza”, reconhece “os esforços diplomáticos em curso do Egito, do Catar e dos Estados Unidos, destinados a alcançar o fim das hostilidades, a libertação dos reféns e o aumento do fornecimento e distribuição de ajuda humanitária”. Temos, então, os três itens principais da resolução.
Primeiro, novamente é utilizado o verbo exigir. “Exige um cessar-fogo imediato durante o mês do Ramadã, respeitado por todas as partes, que conduza a um cessar-fogo duradouro e sustentável, e exige também a libertação imediata e incondicional de todos os reféns, bem como a garantia de acesso humanitário para atender às suas necessidades médicas e outras necessidades humanitárias, e exige ainda que as partes cumpram as suas obrigações ao abrigo do direito internacional em relação a todas as pessoas que detêm”.
Em seu segundo item, “salienta a necessidade urgente de expandir o fluxo de ajuda humanitária e de reforçar a proteção dos civis em toda a Faixa de Gaza e reitera o seu pedido de levantamento de todas as barreiras à prestação de assistência humanitária em grande escala, em conformidade com o direito humanitário internacional bem como as resoluções 2712 (2023) e 2720 (2023)”. Finalmente, diz que o Conselho continuará “ativamente envolvido no assunto.”.
Reação israelense
O texto é muito claro em dizer que exige um cessar-fogo imediato e dá um prazo para esse cessar-fogo. A abstenção dos EUA foi o mais claro sinal de desagravo ao governo de Benjamin Netanyahu em Israel. Logo depois, o governo israelense cancelou uma viagem de uma delegação política e militar à Casa Branca, afirmando que se tratou de “um claro recuo da posição consistente dos EUA”. A Casa Branca se disse “decepcionada”.
A delegação discutiria a planejada ofensiva israelense contra Rafah, que promete ser um desastre humanitário. Netanyahu, entretanto, precisa que esse conflito dure mais tempo possível, já que sua sobrevivência política está diretamente atrelada à lógica da guerra. Sem a guerra, na paz, é o fim de seu governo, logo, o fim de sua imunidade e seu retorno aos processos por corrupção e tráfico de influência no Judiciário.
Em troca da sobrevivência política, Netanyahu topa fazer o “serviço sujo” dos extremistas que compõem sua coligação, como o kahanista Itamar Ben-Gvir. Hoje, o premiê de Israel é movido por um “death wish”, um “pulsão de morte”, a ideia de que, se a sua situação já está complicada mesmo, ele fará o que outros não teriam “coragem” de fazer. A guerra se tornou sua saída e sua finalidade.
A relação com a parte laica de seu governo já está em frangalhos. Enquanto Netanyahu cancelou a visita da delegação, o ministro da Defesa, Yoav Gallant, se encontrou nessa segunda com Anthony Blinken e com Jake Sullivan em Washington. O veterano Gideon Saar, que, em 2020, desafiou Netanyahu pela liderança do partido Likud, anunciou que estava pulando do barco no mesmo dia.
Biden está pressionado por parte de seu eleitorado a mudar sua posição em relação a Gaza. Faltando meses para o que promete ser uma eleição apertadíssima, ele decidiu fazer alguma coisa e não vetar a resolução. Ao mesmo tempo, entretanto, nenhum governo dos EUA pode parecer que está abandonando Israel, o que poderia ser bastante prejudicial em diversas esferas.
Esaú e Jacó
Israel vai cumprir o termo da resolução? O tempo dirá. Se depender de Netanyahu, não vai. Por outro lado, violar a resolução pode aumentar ainda mais o isolamento internacional de seu país. Principalmente, serviria de argumento contra Israel perante a CIJ. O “gabinete de guerra” de Netanyahu, que já começou a se esfacelar, ficará dividido. Possível também que tensões em Jerusalém no Ramadã sejam aproveitadas por extremistas.
Começou-se então uma abordagem mambembe do Direito Internacional pelo governo dos EUA. Tanto Linda Thomas-Greenfield, a embaixadora dos EUA na ONU, quanto dois porta-vozes de Washington afirmaram que a resolução seria simbólica e “não-vinculante”. Isso simplesmente não existe, já que as resoluções do CSNU são vinculantes, ou seja, de cumprimento obrigatório, ainda mais uma que usa o verbo exigir.
A “sustentação” dos EUA em sua argumentação delirante é de que a resolução foi baseada no Capítulo VI da Carta da ONU, e não no Capítulo VII, que regula o uso da força. Primeiro, isso quer dizer apenas que o uso da força como mecanismo de coação está fora da jogada. Segundo, a própria Corte Internacional de Justiça, cinquenta anos atrás, já determinou que, mesmo que não baseada no Capítulo VII, resoluções são vinculantes.
O governo Biden quer, então, ser amigo de Esaú e de Jacó ao mesmo tempo. Autoriza uma resolução que exige um cessar-fogo imediato para depois dizer que a resolução não vale tanto assim. Dá um tapa na mão de Israel para depois abrir caminho para alguma interpretação sem fundamento de que não seria necessário cumprir o que diz o texto. É mais do que contraproducente, é amadorístico. Como disse o ex-presidente dos EUA Barack Obama em 2020: “não subestimem a capacidade de Joe de ferrar com tudo”. Só que ele utilizou outra palavra iniciada com F, em inglês.
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