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Filipe Figueiredo

Filipe Figueiredo

Explicações para os principais acontecimentos da política internacional

Corrida presidencial

Chile com um congresso dividido e metade dos eleitores ausentes

Os candidatos que disputam o segundo turno da eleição presidencial no Chile, Gabriel Boric e José Antonio Kast (Foto: EFE/ Alberto Valdés)

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Os chilenos foram às urnas no último dia 21 de novembro. Quer dizer, menos da metade dos eleitores chilenos, mas isso é algo que veremos mais adiante. O fato é que a eleição chilena é, certamente, a eleição mais importante do ano na América Latina, e uma das mais importantes do mundo. E seu primeiro turno terminou com várias perguntas em aberto, e vamos vê-las todas por aqui.

Antes, os resultados, claro, começando pela corrida presidencial. O primeiro lugar ficou com o pinochetista José Antonio Kast, do Partido Republicano, parte da Frente Social Cristã, com 27,9% dos votos. Em segundo lugar ficou o socialista Gabriel Boric, do Convergência Social, parte da coalizão Apruebo Dignidad, com 25,8% dos votos. Ambos vão disputar o segundo turno, no dia 19 de dezembro.

Em terceiro lugar, Franco Parisi, do populista à direita Partido de la Gente, com 12,8%, seguido do candidato de centro-direita Sebastián Sichel, da coalizão Chile Podemos Más, do atual presidente Sebastián Piñera, com 12,7%. Em quinto, a candidata de centro-esquerda Yasna Provoste, com 11,6%, seguida de Marco Enríquez-Ominami, do também de esquerda Partido Progressista, com 7,6%. Eduardo Artés, da esquerda radical União Patriótica, fecha a lista com 1,4% dos votos.

Corrida presidencial

Alguns comentários. O primeiro deles é o óbvio e repetido por aí: será um segundo turno de polos. Kast é um pinochetista de extrema-direita, que fez campanha, em 1988, pela continuidade da ditadura, e, hoje, nega que a ditadura de Pinochet tenha sido uma ditadura. Também repete o mito de que a ditadura seria responsável pelo desenvolvimento chileno, mito já debatido, com números, aqui em nosso espaço.

Do outro lado está um candidato da esquerda radical, muito mais à esquerda do que a antiga Concertação chilena. O Apruebo Dignidad surgiu justamente de dissidências à esquerda dentro da Nueva Mayoría, a sucessora política da Concertação. Alguns comentaristas políticos comparam a eleição chilena ao cenário brasileiro, o que, na visão da coluna, é um erro. A analogia brasileira com Boric não é Lula, seria Guilherme Boulos.

Essa eleição de polos fará com que a campanha do próximo mês seja marcada por um tom dúbio. Ambos os candidatos vão buscar sinalizar ao centro, para atrair novos eleitores, seja de outros candidatos, indecisos ou ausentes. Ao mesmo tempo, ambos os candidatos também vão manter um elemento mais inflamado em seu discurso, para explorar a rejeição do outro e manter o compromisso com suas bases.

Kast, por exemplo, em seu discurso após sua passagem ao segundo turno ser sacramentada, tanto elogiou os derrotados e se afirmou comprometido com questões sociais, quanto se colocou como um bastião de "democracia contra o comunismo". Com uma mão, acenou ao eleitor de Parisi e de Sichel, com a outra, buscou classificar seu opositor como uma ameaça e explorar a rejeição.

Isso não é julgamento de valor, é uma constatação da política. Boric vai acenar rumo ao empresariado, afirmar que não vai interferir no mercado, e que seu opositor é um pinochetista que representa uma falência social. Pesquisas apontam que 52% das pessoas não votariam de jeito nenhum em Kast, 56% não votaria de jeito nenhum em Boric, com uma intersecção de cerca de 25% de eleitores que não votaria em nenhum dos dois.

Essa rejeição não ficou apenas nas pesquisas. No Chile, o voto não é obrigatório. O candidato precisa conquistar a confiança do eleitor para fazê-lo sair de casa. E apenas 47,3% dos eleitores compareceram, número similar ao do pleito de 2017. Naquele mesmo ano, 331 mil pessoas a mais compareceram no segundo turno. A atual diferença de votos entre Kast e Boric em números absolutos? 146.313 mil.

Espaço para crescimento

O ponto é que, em uma eleição em que metade do eleitorado não se expressou, ela se torna, de certo modo, imprevisível. Kast pode vencer por larga margem, Boric pode virar o jogo, é impossível fazer um prognóstico hoje. São milhões de chilenos que podem sair de casa e mudar a balança, em uma eleição possivelmente decidida pela rejeição. Não se vota em alguém, se vota para impedir um outro alguém de vencer.

Isso também dificulta fazer uma mera soma dos candidatos no primeiro turno. Por exemplo, Sebastián Sichel, da centro-direita de Piñera, disse que não quer "a extrema-esquerda no poder" e indicou apoio a Kast no segundo turno. A coalizão de Yasna Provoste disse que todos devem votar em Boric "pela democracia". Qual será o verdadeiro poder da "transferência de votos" dos candidatos derrotados?

Além disso, o terceiro colocado, Franco Parisi, embora seja de direita, teve um voto inflacionado como voto de protesto, ou de "trote". Ele fez toda sua campanha a partir dos EUA, em "defesa da família", um de seus slogans. Não pisou no Chile. O irônico motivo é que ele poderia ser preso por não pagar pensão alimentícia e a pitoresca situação fez muitos votarem nele.

Finalmente, um aspecto que pode influenciar a campanha de segundo turno é o fato de que o Chile passa por uma Constituinte. A relação e as declarações dos candidatos em relação ao processo constituinte pode impactar o voto, assim como os próprios procedimentos da Constituinte. Esse ponto é especialmente sensível para Kast, que fez campanha contra a Constituinte, defendendo a carta que foi outorgada pela ditadura Pinochet.

De certo modo, inclusive, o próprio processo Constituinte ajuda a explicar o fenômeno que foi o voto em Kast nesse pleito. Em 2017 ele teve 7,9% dos votos, menos que um terço da proporção atual. Os protestos no país, os conflitos com comunidades mapuche no sul e o estabelecimento de uma Constituinte foram vistos como vitórias da esquerda, contribuindo para uma maior polarização da direita do país.

Câmara com a esquerda, Senado com a direita

Além do voto presidencial, os chilenos também votaram para as 155 cadeiras da Câmara dos Deputados e para 27 dos 50 assentos do Senado. Na Câmara, teremos uma divisão quase igual. A maior bancada será a da coalizão de centro-direita Chile Podemos Más, de Piñera e de Sichel, com 53 assentos. Depois, a Nuevo Pacto Social, de Provoste, e a Apruebo Dignidad, de Boric, cada uma com 37 assentos.

Outras cinco cadeiras foram para a esquerda, com a Dignidad Ahora levando três e os verdes conquistando duas, e outras 22 cadeiras para a direita. A Frente Social Cristã de Kast elegeu 15 deputados, a quarta maior coalizão da Câmara. No total, a esquerda terá 79 cadeiras, a direita terá 75, mais um candidato independente, Carlos Bianchi Chelech, de Punta Arenas, fecha a conta de 155 deputados.

A conta para o Senado é mais complexa e, modestamente, é algo pouco explicado na mídia internacional brasileira. Até 2015, a câmara alta chilena tinha 38 assentos. Uma reforma expandiu a casa para 50, em duas etapas. Primeiro, expandiu-se para 43 em 2017 e, agora, para 50 senadores. Estavam em jogo 27 cadeiras. Vinte delas já ocupadas, mais sete cadeiras que serão "inauguradas" nesta legislatura.

Das 20 cadeiras ocupadas, 11 estavam com a esquerda, sete com a direita e uma independente. Os resultados do pleito do último final de semana apontam que, das 27 cadeiras em disputa, a direita conquistou 13, a esquerda, 12, e outras duas senadoras independentes, Karim Bianchi, da região de Magallanes, e Fabiola Campillai, da região metropolitana de Santiago.

Dos senadores eleitos, especificamente, quatro são da coalizão de Boric e um é da coalizão de Kast. Ainda assim, em termos gerais, foi uma expressiva guinada à direita no Senado chileno, praticamente dobrando sua bancada anterior e vencendo na maioria das cadeiras da expansão da Casa. O desenho do próximo Senado será de 25 cadeiras da direita, 22 da esquerda e três independentes.

Essas contas significam duas coisas. Primeiro, qualquer vencedor terá que negociar com as outras coalizões de seu espectro ideológico para conseguir governar. Segundo, mesmo assim, nenhum candidato terá, ao menos ideologicamente falando, maioria nas duas casas. Kast terá perante si uma Câmara com uma maioria de esquerda, enquanto Boric terá que lidar com um Senado majoritariamente de direita.

Uma eleição disputada, altas rejeições, um Congresso dividido, uma Constituinte em funcionamento e a possibilidade de conquistar a metade ausente do eleitorado. Por um lado, parece um cenário tenso e acirrado, um pesadelo para um país. Por outro, caso não existam interferências nesse processo, é parte do amadurecimento democrático de um país que continua, e continuará, sendo um exemplo histórico para a região. Não seria justo pedir uma comunidade homogênea. Kast e Boric, de alguma maneira, representam parcelas da sociedade chilena. Resta saber quem será o vencedor.

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