Mais uma guerra assola o mundo. Depois de Síria, Iêmen, Ucrânia, Sudão e Gaza, agora é a vez de Myanmar. No último dia 27, uma coalizão de forças rebeldes no norte do país lançou uma ofensiva contra a junta militar de Myanmar, por vezes chamada de Tatmadaw, termo que representa todas as forças armadas do país. Depois de vinte dias de combates, os rebeldes avançam e ligam o alerta na potência vizinha, a China.
O Estado de Myanmar, a antiga Birmânia, situado no sudeste asiático, é formado por uma miríade de etnias. A mais numerosa delas é a dos Bamar, que compõem cerca de 60% da população nacional. Essa questão étnica se tornou presente no noticiário em 2017, quando do Genocídio Rohingya. Desde a fundação do país, em 1948, as tensões étnicas eram um tema de debate e de atenção.
Governo centralizado de militares
Como em vários casos similares na História, desenvolveram-se basicamente duas linhas de pensamento. Uma defendia um modelo federativo, mais democrático e representativo, com as diferentes etnias tendo certa autonomia. Outro buscava um modelo centralizado, com uma autoridade nacional forte. A segunda linha venceu, personificada nos militares do país, que governaram Myanmar pela maior parte de sua História independente.
Quando do aniversário de sessenta anos de Brasília, escrevemos aqui em nosso espaço sobre como o Positivismo dos militares republicanos brasileiros foi importante para a construção de uma capital federal no centro do país. Naquele texto, mencionamos casos similares, como a escolha de Ancara como capital da Turquia e a construção de Abuja para ser a capital da Nigéria.
Myanmar passou por um caso parecido. Em 2006 foi inaugurada a cidade capital de Naypyidaw, planejada e escolhida pelos militares para ficar no centro do país, substituindo Rangum, a histórica e maior cidade de Myanmar. Outra questão do poder dos militares no país é o fato de controlarem diretamente a maior parte da economia, com grandes fundos de investimento controlando fábricas e bancos.
Na prática, os militares de Myanmar são um “Estado dentro do Estado”, sem controle civil em nenhum período da História do país, mesmo quando de sua frágil transição democrática. A História de Myanmar, embora rica e fascinante, é marcada nas últimas décadas por severas violações de Direitos Humanos, repressão política, corrupção sistêmica e uma profunda e ampla rede de tráfico de drogas.
Golpe de 2021
Em 2021, os militares deram mais um golpe e depuseram a Conselheira Aung San Suu Kyi, na prática líder do governo do país e laureada com o Nobel da Paz em 1991. Desde então, a repressão política foi generalizada, frequentemente com elementos étnicos. Grupos mais vulneráveis, especialmente do norte do país, são alvos de violência, abusos de poder econômico e apagamento de suas identidades.
É nesse contexto que foi formada a Tríplice Aliança da Irmandade, formada por três grupos rebeldes, alguns deles remetendo aos anos 1960 e 1970. Os três grupos possuem contornos étnicos, um representando os raquines, 5% da população, outro os kokang e o terceiro os palaung. Essas duas últimas populações estão divididas entre Myanmar e a China, com presença nos dois lados da fronteira.
A partir do dia 27 de outubro, os rebeldes lançaram ataques simultâneos em várias cidades no norte do país, atingindo instalações das forças armadas e também de milícias locais pró-governo central. O objetivo é derrubar a junta militar e garantir a autonomia dessas regiões. No dia sete de novembro foi a vez dos rebeldes kayah, do leste do país, iniciarem um levante contra a junta militar.
A esses rebeldes que lançaram a ofensiva se juntam os diversos grupos de resistência contra o golpe militar de 2021, unidos no chamado Governo de Unidade Nacional de Myanmar. Além disso, o Tatmadaw depende de uma complexa rede de alianças com milícias regionais, que podem sucumbir ou mudar de lado a qualquer momento, e imagens de deserções são facilmente encontradas em canais de mensagens.
China, Rússia e EUA
Segundo o jornalista Joshua Kurlantzick, a junta militar controla diretamente apenas cerca de 40% do território do país. O restante está na mão ou de rebeldes ou de aliados regionais. Durante esses últimos vinte dias, a China fez repetidos chamados por um cessar-fogo e proibiu seus cidadãos de viajarem ao país. Na prática, há um risco real de desintegração nacional ou de um conflito de longo prazo.
As preocupações chinesas passam pelo óbvio problema de ter um conflito em um país vizinho. Mais que isso, entretanto, está o fato de que a China e a junta militar de Myanmar possuem boas relações, incluindo um gasoduto e um oleoduto que ligam o porto de Kyaukpyu, na Baía de Bengala, até Kunming, na China. Os dutos foram inaugurados em 2013, durante o período da frágil “democracia” tutelada do país.
Inclusive, para conquistar a simpatia chinesa, os rebeldes do norte afirmam que um dos seus objetivos é acabar com o tráfico de pessoas em Myanmar. Desde o golpe de 2021, é especulado que cerca de 120 mil chineses foram traficados para o país, onde são forçados a trabalhar de maneira desumana na indústria de golpes cibernéticos. E nada disso ocorreria sem a participação do Tatmadaw.
Os russos também são aliados da junta militar e, na semana retrasada, a marinha russa realizou seu primeiro exercício militar na Baía de Bengala desde o fim da União Soviética. Do outro lado está o apoio dos EUA, que oficialmente financia as representações civis e administrativas do Governo de Unidade Nacional. Extraoficialmente, não é difícil de imaginar o tipo de apoio que pode existir, vide exemplos da História.
Até o momento pouco se sabe de números do conflito. São, no mínimo e oficialmente, cinquenta mil civis deslocados e algumas centenas de mortos. Os números reais provavelmente são bem maiores. A China precisará fazer uma escolha: colocar suas fichas na estabilidade representada pela junta militar ou na influência de longo prazo, mediando um cessar-fogo. Até o momento, não fez nem um, nem o outro.
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