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Projeções em prédios na Alexanderplatz, na capital alemã, durante celebrações do aniversário de 30 anos da queda do Muro de Berlim. 4 de novembro de 2019
Projeções em prédios na Alexanderplatz, na capital alemã, durante celebrações do aniversário de 30 anos da queda do Muro de Berlim. 4 de novembro de 2019| Foto: John MACDOUGALL / AFP

Ainda existem duas Alemanhas. Nos 30 anos da queda do Muro de Berlim, marcados neste dia 9 de novembro, muito será produzido e comentado sobre o assunto. Algumas abordagens são mais emotivas, lembrando das centenas de mortos ao tentar cruzar a fronteira entre as antigas repúblicas alemãs. Outras tratarão do tema como um sinônimo de fim da Guerra Fria; simbolicamente, claro, embora seja possível discutir esse simbolismo. Sobram outras abordagens menos comuns, que talvez valha a pena serem debatidas aqui.

A primeira é uma lembrança incômoda. O Muro de Berlim tornou-se conhecido como Muro da Vergonha, um símbolo da ocupação alemã pelos aliados ao fim da guerra, da repressão estatal, da morte de pessoas que desejavam transitar livremente por sua nação. O muro também precisa ser lembrado como um símbolo de conveniência. Por trás dos discursos e protestos de autoridades ocidentais contra o muro estavam pessoas que respiraram aliviadas.

Berlim, retalhada e ocupada como troféu de guerra, permitia um rápido canal de inteligência e contato entre os dois blocos da Guerra Fria, seja por meios oficiais ou extraoficiais. A enxurrada de filmes de espionagem da Guerra Fria é uma demonstração cultural disso, e não distante da verdade. E, claro, também permitia o uso político dos atritos entre os dois países. Poucas imagens teriam tanta força na época quanto tanques dos EUA e da União Soviética mirando uns nos outros, em linha reta, na mesma avenida, no famoso Checkpoint Charlie.

A Alemanha, como um todo, era a zona de maior concentração militar do planeta e seria o futuro campo de batalha da maior guerra que o homem supostamente disputaria; que nunca veio. As duas fronteiras, entre as duas Alemanhas e as duas Berlim, permitiam que cada lado testasse os limites do outro. A população alemã, como derrotada e habitante de um tabuleiro geopolítico, não importava tanto assim.

A construção do Muro se deu em 1961, acompanhada da fortificação e enrijecimento de toda a fronteira entre as duas Alemanhas. Na época, alguns políticos da Alemanha ocidental protestaram, pedindo alguma intervenção dos EUA ou do Reino Unido; ao contrário da crença popular, ambas as potências ficaram tranquilizadas com o Muro, pois significava que o bloco oriental não tentaria tomar o controle de toda Berlim pela força. A lembrança da Ponte Aérea de Berlim, do imediato pós-guerra, quando a URSS cercou a cidade, ainda estava na memória.

Na prática, Berlim Ocidental, incrustada no território da Alemanha Oriental, poderia ser cercada e ocupada pelas tropas soviéticas, em muito maior número. Isso resultaria numa crise, até mesmo na Terceira Guerra Mundial, mas era um risco real. Construir o muro significava, também na prática, consolidar a fronteira, reconhecer a existência de Berlim Ocidental. A cidade se tornaria a citada ponte entre os dois mundos da Guerra Fria.

O tráfego na região só seria melhor regulamentado, do ponto de vista da população, em um acordo entre as quatro potências ocupantes, em 1972, 11 anos depois do Muro. O Muro de Berlim foi o Muro da Vergonha, e isso nunca deve ser esquecido. Assim como não deve ser esquecido que a população berlinense era apenas um peão em um tabuleiro muito maior e mais amplo.

Outro aspecto que vale a lembrança é que a unificação alemã significou uma das maiores desmobilizações militares da História. As forças armadas (NVA) da República Democrática Alemã (RDA), a popular Alemanha Oriental, eram das melhores equipadas do mundo. Proporcionalmente à sua população, também era uma das maiores do planeta, fruto desse papel central do país no campo de batalha global.

A unificação foi acordada no Tratado sobre o acordo final em relação à Alemanha, assinado pelas duas repúblicas alemãs e pelas quatro potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial, em Setembro de 1990 como desdobramento direto da Conferência de Potsdam, de 1945. Ali foi determinada a continuidade da República Federal da Alemanha, com a incorporação monetária e militar da RDA. No dia 3 de outubro de 1990 o parlamento da RDA aprova a “ascensão” para a Constituição da RFA e a extinção do país.

Nesse momento, a nova Alemanha recebe mais de 700 aviões, quase três mil carros de combate, os populares "tanques", mais de cem mil veículos, como caminhões e viaturas, mais de um milhão de armas de fogo e mais de trezentas mil toneladas de munições. Para um país de pouco mais de cem mil quilômetros quadrados, trata-se de assombrosa concentração de poder bélico.

Caso fossem apenas somadas as forças armadas das duas Alemanhas, o novo país seria imediatamente uma potência militar, então, foi estabelecido o limite de 370 mil integrantes. Com cerca de 495 mil homens nas forças federais e cerca de 175 mil homens nas forças orientais, drásticos cortes e uma profunda reforma foram feitos, especialmente nos quadros da antiga Alemanha Oriental, sob o slogan Armee der Einheit (Exército da Unidade).

A maioria dos equipamentos foram vendidos ou cedidos gratuitamente para países como a Eslováquia, também usuária de equipamento soviético. Uma boa parte foi descartada. Tudo isso representou custos. Finalmente, vetores de alta tecnologia foram incorporados, como os caças MiG-29, então topo de linha da indústria bélica aeronáutica.

E as pessoas? Oficiais superiores da NVA foram dispensados, a maioria dos conscritos foi dispensada no curto prazo e boa parte do pessoal absorvido na nova Bundeswehr sofreu rebaixamento de patente. Os antigos integrantes da NVA não podem usar suas antigas patentes em documentos, o que é visto como uma “desonra”.

No histórico dos militares absorvidos nas novas forças armadas, o serviço na RDA consta como “em serviço em país estrangeiro”, não como uma nação alemã. Pensões militares são extremamente diminutas para esses homens, pois não foram corrigidas com os mesmos parâmetros da economia. O surgimento, em poucos anos, de uma massa de homens desempregados e com uma pequena previdência é motivo de ressentimento até hoje.

Eles são os pais, avós e tios das novas gerações. Não é à toa que o nacionalismo e a xenofobia possuem como principal reduto alemão o leste do país. É onde partidos como a AfD e o NPD são mais fortes. Desemprego, ressentimento e alcoolismo são a matéria-prima dos discursos que pedem por governos "fortes". Nem tudo são flores nessa reunificação.

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Para os que tiverem interesse em outros aspectos dessa reunificação em um breve papo, participei do podcast 15 Minutos aqui da Gazeta do Povo. Confiram!

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