Na semana passada, publicamos aqui em nosso espaço de política internacional a coluna intitulada “A maior eleição de Portugal no século resulta em impasse”. No texto, assim como em outras ocasiões, a coluna usou o termo extrema-direita para classificar ideologicamente o partido português Chega. Essa classificação causou, em alguns leitores, estranhamento, questionamento e crítica, a maioria delas educadas. Com o apoio de nossa editora, então, a coluna de hoje será um pouco diferente, mais um ensaio, sobre porque o Chega pode ser classificado como um partido de extrema-direita.
Definição
Primeiro, temos que definir o que seria extrema-direita. Aqui, vamos nos basear em três autores. Primeiro, na obra Far-Right Politics in Europe, publicada pela Harvard University Press, do politólogo Jean-Yves Camus e do historiador Nicolas Lebourg, ambos franceses. Publicada em 2017, ou seja, antes da fundação do próprio Chega, a obra é centrada especialmente no caso francês e do partido Reunião Nacional, de Marine Le Pen. Quando o livro aborda questões latino-americanas, inclusive, deixa um pouco a desejar, mas, de resto, é considerada um novo manual sobre o fenômeno europeu corrente.
Outro autor utilizado aqui é o politólogo neerlandês Cas Mudde, autor de The ideology of the extreme right, da Manchester University Press, publicado em 2002. Ele se tornou conhecido em seu país primeiro devido ao fato de ser irmão, e bastante oposto, de Tim Mudde, fundador da banda Brigade M, originalmente skinhead e uma das principais do movimento europeu Rock Against Communism (“Rock contra o comunismo”). Claro que alguns leitores podem não gostar das fontes selecionadas ou levantarem alguma crítica, o debate é sempre válido, o ponto é destacar as fontes e os parâmetros.
Uma questão importante de destacar neste ensaio é que nenhum fenômeno político ou ideológico é monolítico. Existem elementos em comum dentro de uma categoria, sim, mas também as particularidades regionais. Isso fica muito claro ao se estudar os fascismos europeus no período entreguerras, por exemplo. O fascismo clerical espanhol, o fascismo corporativista italiano e o nazismo alemão possuem características comuns, mas também suas particularidades. O mesmo ocorre hoje e isso se aplica aos movimentos de esquerda também, com características diferentes em sociedades diferentes.
Em linhas gerais, então, quais as características da extrema-direita, segundo essas duas fontes citadas? Primeiro, a defesa de uma sociedade nacionalista em bases étnicas. Isso pode se manifestar como racismo, nativismo, nacionalismo, xenofobia ou na rejeição do etnopluralismo e do universalismo. Temos também uma perspectiva tradicionalista de sociedade e de valores, habitualmente colocada como algo que supostamente está sendo perdido. A sociedade, então, precisa ser salva da decadência por esse movimento que consegue enxergar “a verdade” das coisas, em uma missão redentora ou messiânica.
Essa perspectiva tradicionalista de valores normalmente se manifesta em questões como a suposta perda de referências do passado, aspectos religiosos, linguísticos ou modelos tradicionais de família, além de uma cosmovisão centrada em guerra cultural ou de embate civilizacional. Na política, existem os traços individualistas, como culto à personalidade, o discurso que rejeita um suposto establishment político e a mobilização populista do eleitorado e dos temas nacionais. Finalmente, na economia, uma mistura da defesa das forças do mercado com também a defesa do nacional.
A defesa das forças do mercado, inclusive, é expressa como uma forma de “darwinismo social”, a ideia de que o indivíduo bem sucedido economicamente é um indício ou critério de superioridade, enquanto o malsucedido é fracassado como indivíduo. Esse é um breve apanhado dos pontos principais desses autores e esses aspectos não são exclusivos da extrema-direita, nem se trata de uma lista que precisa ser totalmente preenchida. São características em comum dessa categoria ideológica do espectro político contemporâneo cujas origens históricas estão na França revolucionária pós-Iluminismo.
Rejeição do termo e o Salazarismo
Em sua obra, Camus e Lebourg apontam que uma característica particular dos simpatizantes da extrema-direita é a rejeição do termo. Conservadores, liberais, socialistas e comunistas não costumam ter pudores em reivindicar para si esses termos. Mesmo as variantes mais extremas, como stalinistas, assim se chamam. Essa rejeição provavelmente se dá pelo legado, seja prático, seja de imagem, dos regimes passados de extrema-direita, como os fascismos europeus e algumas das ditaduras militares da Guerra Fria.
As saídas são ou a falsificação histórica, com absurdos como a tentativa de categorizar o nazismo como um movimento político à esquerda do espectro ideológico, ou a criação de novos rótulos, como o termo “Alt Right”. Também existe a postura de se classificar apenas como “direita” e que os partidos de direita existentes não seriam “direita de verdade”. Essa é uma jogada de marketing que já deveria estar velha, mas continua cativando alguns incautos. O PSD português, a CDU alemã, o Renovação Nacional chileno, todos eles não seriam “direita de verdade” para a extrema-direita desses países.
O termo “extrema-direita” pode ser tabu, mas tais movimentos e seus simpatizantes continuam existindo, então, é necessária uma nova identificação. E aqui temos, depois de toda essa ambientação, o primeiro argumento para colocar o Chega na extrema-direita. Hoje, trata-se do maior movimento português cujos integrantes se apropriam, no mínimo parcialmente, da herança salazarista lusa, defendendo a reabilitação do regime. O Salazarismo, termo ideológico para o Estado Novo, foi o governo com elementos fascistas que governou entre 1933 e 1974, identificado no ditador António de Oliveira Salazar.
O Salazarismo foi um modelo autoritário, corporativista e colonialista de Estado cujos slogans mais conhecidos foram “Tudo pela Nação, nada contra a Nação” e “Deus, Pátria, Família”. Note o leitor como esses slogans dialogam com parte das definições que fizemos antes, de uma visão nacionalista, tradicionalista e na rejeição do universalismo. O Salazarismo foi derrubado pela Revolução dos Cravos de 1974, que inaugurou um período ininterrupto de democracia e de desenvolvimento social em Portugal, com marcante melhora de todos os índices de prosperidade.
Olhando para a prática do partido Chega, distante das notas para imprensa ou documentos oficiais pasteurizados, seu líder, André Ventura, usa uma variante do slogan salazarista nas eleições, “Deus, pátria, família e trabalho”. Sua justificativa para isso foi religiosa e tradicionalista. Também usou uma retórica nacionalista e de guerra civilizacional, com a idealização do passado. “Vou falar da Pátria, mesmo que isso hoje custe a tantos”, os portugueses seriam “o fruto da espada de D. Afonso Henriques” que “libertou Portugal dos islâmicos que hoje tanta ameaça causam à Europa e à União Europeia”.
Ventura é um caso curioso. Já afirmou que Salazar é causa de atraso em Portugal, mas, depois, defendeu parte do legado do ditador e, repete-se, usa seu slogan. Ventura também se ombreia com defensores abertos da reabilitação do Salazarismo, como os deputados do Chega, Pedro Pinto e Pedro Pessanha, que defendem abertamente o Salazarismo e o período ditatorial do Estado Novo. Outro deputado, Diogo Pacheco de Amorim, é um dos principais ideólogos do partido e foi integrante do MDLP, um movimento condenado como terrorista que operou entre 1974 e 1976, contra a democratização de Portugal.
Etnocentrismo
Defender a reabilitação pública de um regime com elementos fascistas, usar a mesma retórica cruzadística e até mesmo reciclar um velho slogan do Estado Novo não podem ser classificados de outra coisa que não de extrema-direita. Além dessas referências positivas ao passado autoritário português, outra característica do Chega e que coloca o partido no espectro político da extrema-direita é a perspectiva etnocêntrica de Portugal. André Ventura começou a sua carreira política no PSD, o partido conservador português que não seria “direita de verdade”, com muitos membros ligados à Igreja Católica, como o presidente Marcelo Rebelo de Sousa.
Ventura, inclusive, desejou já ter sido seminarista. Seu ostracismo e posterior saída do partido começou em 2017, quando era candidato a prefeito de Loures. Ventura fez diversas declarações contra os roma, chamados popularmente, e por vezes pejorativamente, de ciganos. Foi eleito vereador, mas renunciou no ano seguinte, saiu do partido e fundou o Chega. Na época, Ventura recebeu apoio de neonazistas portugueses e afirmou que “rejeitava o apoio da extrema-direita”.
Talvez o apoio devesse ter soado um alarme, de que não adianta repudiar a extrema-direita, mas ter o mesmo discurso dela. O discurso etnocêntrico de Ventura continuou, especialmente contra os roma, e perdura até a recente eleição. Em maio de 2020, no início da pandemia de covid-19, Ventura declarou que iria propor “um plano específico de abordagem e confinamento para as comunidades ciganas”. Defesa explícita do confinamento de uma população baseada em sua etnia. Não adianta um discurso ou um documento falando de liberdade quando essa liberdade é só para os seus.
É perfeitamente razoável categorizar esse pensamento como de extrema-direita. E não se trata de uma política pública universal de distanciamento social ou de confinamento doméstico, Ventura foi bem explícito em discriminar uma etnia. Em outro momento, Ventura afirmou que a deputada Joacine Katar Moreira, cidadã portuguesa nascida na Guiné-Bissau, deveria ser “devolvida ao país de origem”. Por mais de uma vez, Ventura foi condenado juridicamente por discriminação racial.
Ventura e seus correligionários, como Luís Filipe Graça e Tiago Monteiro, ambos ex-integrantes de movimentos neonazistas como o Nova Ordem Social, também já falaram repetidas vezes da teoria da conspiração racista da “Grande Substituição”, que significaria o “fim da população branca”, substituída por “inferiores”. Claro que Ventura ou o Chega não inventaram o racismo nem o inocularam nos portugueses, mas usam e manipulam muito bem esses sentimentos nas massas, no que já abordaremos.
Algum leitor pode querer negar todos esses comportamentos com o fato do Chega ter eleito um deputado brasileiro e negro, Marcus Santos. Em uma postagem numa rede social em que celebra sua eleição, Marcus, infelizmente, recebeu diversas respostas racistas e xenófobas, como “por que é que estás num partido português, agora deputado, não sendo português?”. A eleição de Marcus Santos é um ótimo exemplo de tokenismo, expressão originada no inglês que se refere ao ato simbólico de recrutar pessoas de um grupo sub-representado para dar aparência de igualdade a um grupo bastante pouco diverso.
É o mesmo comportamento de quando um artista progressista é pego em flagrante em alguma hipocrisia e se defende com “não sou racista, até tenho amigos negros”. E nada desse exposto busca criticar toda e qualquer política migratória. É perfeitamente possível e razoável um país ter políticas migratórias com critérios legais. Portugal é um país territorialmente pequeno, cuja economia é vulnerável aos fluxos migratórios. O Chega, entretanto, defende que os critérios de imigração sejam baseados em fatores étnicos ou culturais, como a religião, no que é uma característica clara de extrema-direita, e não em critérios de capacitação profissional, por exemplo.
Populismo
Finalmente, em um já longo ensaio, temos a questão do populismo e da manipulação das massas. A crise em Portugal seria culpa de quem? Da pandemia, da política de atrair nômades digitais, da política liberal do golden visa? Não, é culpa do inimigo fácil, do imigrante, do “brazuca”, do cigano, do Outro. O próprio nome do partido é uma façanha populista. “Chega!”. Chega do quê, de quem? Não se trata sequer de um nome propositivo, mas de uma negação, uma defensiva. O comportamento de “salvar” a “sociedade decadente” de seus supostos inimigos.
Uma decadência que não é mensurável nem demonstrável por números ou métricas, apenas um sentimento manipulável. “Chega”. Puro e simples populismo. Ele dá um nome ao sentimento ao eleitor, o sentimento de “chega”, com exclamação. E todo indivíduo tem seus problemas na vida e quer dar um “chega” nesses problemas, independente de quais forem. Claro, nem todo partido ou político populista é de extrema-direita, existe o populismo de esquerda, mas não existe extrema-direita sem populismo.
No início de fevereiro, quando do infeliz acidente que vitimou o ex-presidente do Chile Sebastián Piñera, escrevemos uma coluna sobre ele aqui em nosso espaço que acho interessante resgatar nessa discussão. Piñera era um conservador, um católico contra o aborto de gestação e um empresário bilionário de sucesso. Ao mesmo tempo, Piñera não era populista, não adotava discursos fáceis e, principalmente, era contra toda e qualquer tentativa de reabilitação pública de Pinochet e de sua ditadura. Piñera é um ótimo parâmetro para distinguir o que é uma direita conservadora da extrema-direita.
Em suma, é razoável, e assim continuará a ser aqui nesse espaço, classificar o Chega como um partido de extrema-direita por sua defensa de um nacionalismo em bases étnicas e nativistas, por sua rejeição do universalismo, por sua perspectiva redentora do tradicionalismo e de que existiria em curso um suposto embate civilizacional, com uma mobilização popualista do eleitorado em torno da negação sentimental manipuladora, do “chega”, elementos verificáveis em textos manifestos e, principalmente, nos componentes do partido e em suas declarações e ações.
Como complemento, recomenda-se o podcast Entre Deus e o Diabo. Em nome do contraditório, recomenda-se também, e cita-se, Riccardo Marchi, historiador italiano radicado em Portugal, para quem o Chega não é um partido de extrema-direita, mas de direita radical. Para ele, o critério de distinção seria o fato de que o Chega não defende uma luta armada ou uma tomada violenta do poder, e mais de seus comentários podem ser facilmente consultados pelo leitor que desejar. Concluímos essa coluna agradecendo a leitura de tão extenso texto e no desejo de que ele cause reflexões e debates, independente de sua premissa ser ou não aceita.
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