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presidente dos EUA, Donald Trump, chega à Base da Força Aérea de Andrews em 21 de maio de 2020, em Maryland| Foto: Brendan Smialowski/AFP

O Donald Trump anunciou que seu governo vai sair de mais um acordo de cooperação com a Rússia. A bola da vez é Tratado de Céus Abertos, numa tradução de Open Skies. O primeiro foi o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF, na sigla em inglês), assinado em 1987 e denunciado pelos EUA no ano passado. Assim como naquele caso, a interpretação mais simples é ver nisso um gesto hostil por parte de Washington contra Moscou, mas a situação é mais complexa que isso.

O bom

A primeira proposta de algo como o Tratado de Céus Abertos foi feita em 1955, pelo então presidente dos EUA Dwight Eisenhower. Embora também do partido Republicano, Eisenhower está muito mais para um conservador clássico do que Trump, cuja inspiração, em sustância e estilo, é Ronald Reagan. Essa observação é importante para dissipar qualquer interpretação partidária das ações de Trump, são contextos históricos e políticos bastante distintos.

Um aspecto indispensável do contexto atual é a ascensão chinesa. E, assim como no caso do INF, Trump ataca a Rússia mas com a China em mente. Primeiro, o que o Tratado de Céus Abertos estabelece? Negociado por toda a década de 1990 e vigorando desde 2002, o tratado, basicamente, autoriza que os 35 países signatários podem entrar no espaço aéreo um dos outros, em missões de monitoramento. Os integrantes são os membros da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e a parte europeia dos antigos membros do Pacto de Varsóvia.

Existem parâmetros que devem ser seguidos. Os trajetos dos vôos são anunciados com 72 horas de antecedência, o país que será sobrevoado monitora a inteligência adquirida, existem especificações sobre os tipos de equipamentos que podem ser usados e também existe uma cota proporcional do número total de vôos em relação ao tamanho de cada país. Por exemplo, a Polônia pode realizar menos vôos do que os EUA, e também ser menos sobrevoada.

A intenção do acordo é fornecer inteligência de forma rápida e mais simples, especialmente em relação às fronteiras imediatas dos países europeus. O acordo possibilita que a pequena Estônia, por exemplo, sobrevoe o território russo perto da fronteira. Principalmente, o acordo é uma maneira de construção de confiança, fornecer garantias mútuas de que os países envolvidos não estão realizando preparativos para um conflito. A ideia de que “a Guerra Fria passou, não temos nada mais a esconder”.

Em 2020, entretanto, a preocupação dos EUA está na China, que não estava atrelada ao INF e não está atrelada ao Tratado de Céus Abertos. Vôos provocativos e de vigilância em áreas de fronteiras são comuns, e a ocorrência desses vôos na região de Taiwan e do Mar do Sul da China está cada vez maior, tanto pelos chineses quanto pelos EUA. Com a diferença que a China, novamente, não está inserida no tratado. Ou seja, um contato sem tantas regras, o que é perigoso.

Trata-se de mais uma ação no modus operandi de Trump. No lugar de tentar trazer a China para um mecanismo existente, ele prefere sair e tentar um novo acordo. Se der certo, ótimo, mais segurança mundial. Se não der, Washington não vê tanto prejuízo, até por se queixar de que, como russos e chineses atualmente são aliados, a Rússia pode compartilhar a inteligência que coleta com seus vôos, enquanto os EUA não possuem a mesma oportunidade em relação aos chineses.

O mau

A intenção é impor aos chineses as mesmas regras que se aplicam aos EUA, mas, ainda assim, o acordo é, principalmente, com a Rússia. Então, para denunciar o acordo, temos mais uma distensão nas relações entre Washington e Moscou. O governo Trump alega que a saída é motivada por eventuais descumprimentos russos do acordo, como a proibição de vôos em regiões consideradas sensíveis pelo Kremlin, como o enclave de Kaliningrado e algumas regiões do Cáucaso, como a Ossétia do Sul e a Chechênia.

Claro que Mike Pompeo não vai dizer que os EUA também impuseram algumas restrições similares, como em relação ao Alasca e ao novo sistema de radar instalado no Havaí. No fim das contas, não importa, os eventuais descumprimentos russos são só uma desculpa. É possível que a “trollagem” russa de realizar um voo diretamente sobre um dos campos de golf de Trump, enquanto ele estava presente e teria ficado furioso, tenha tido mais influência do que o comportamento russo. O alvo é a China.

Mais do que distensão entre Washington e Moscou, é mais um afastamento dos EUA em relação aos seus aliados europeus. O próprio Mike Pompeo afirmou que “se não fossem nossos aliados da OTAN, já teríamos saído antes”. Enquanto os EUA consegue suprir, e ir além, a falta de vôos de inteligência com imagens de satélites, os países europeus não possuem as mesmas ferramentas. Com uma saída dos EUA, algo manterá a Rússia no tratado? Ela certamente terá menos motivos do que tem hoje.

Existe também uma questão burocrática, segundo o coronel reformado Dana Struckman, da Força Aérea dos EUA, hoje professor de geopolítica. A inteligência obtida por aviões é, legalmente, mais fácil de ser partilhada entre Washington e seus aliados do que a inteligência obtida por satélites. Ou seja, além de diminuir a confiança mútua entre potências nucleares, a saída dos EUA pode de fato comprometer sua articulação militar com seus aliados europeus, uma relação que já não anda bem.

O feio

A saída dos EUA do tratado é mais um amassado na reputação dos acordos internacionais e da ideia de que eles deveriam ser perenes, estar acima dos governos da ocasião. Acordos são entre Estados, não entre governos. A dúvida mais imediata é em relação ao Novo START (Strategic Arms Reduction Treaty, Tratado de Redução de Armas Estratégicas). Assinado em 2010 entre EUA e Rússia, o acordo limita os arsenais nucleares das duas potências, submetidas à inspeção mútua.

O acordo vence em fevereiro de 2021, daqui menos de um ano. Existe opção para renovação automática até 2026. Washington e Moscou vão exercer essa opção? E trata-se de um caso em que a situação chinesa é muito díspar para uma eventual obrigação trilateral. Pelo acordo, EUA e Rússia estão limitados ao número de 1.550 ogivas nucleares ativas, e suas reservas chegam aos totais de seis mil. Já a China possui entre 300 e 400 ogivas no total, menos de 7% dos arsenais de cada uma das duas potências.

O arsenal chinês é potencialmente menor do que o arsenal francês, por exemplo. A China não teria como negociar um acordo de limitação nuclear no mesmo patamar que EUA ou Rússia. Não renovar o Novo START seria muito mais perigoso e pouco traria para a mesa de negociações. Ao contrário, a China vai exigir que o tamanho do arsenal dos EUA se aproxime do seu para aceitar inspeções mútuas. Washington vai limar mais uma fatia de seu arsenal nuclear para isso?

Finalmente, a saída determinada pelo governo Trump alimenta as desconfianças contra o governo dos EUA. Assim como no caso do acordo com o Irã, é bastante possível que um governo como, por exemplo, da Coreia do Norte, diga que não vai assinar um acordo pois nada impede que um futuro presidente dos EUA decida sair dele subitamente. No fundo, o Tratado de Céus Abertos tem poucas implicações práticas, era uma ferramenta de construir confiança. Seu fim pode justamente escassear ainda mais esse sentimento.

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