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De saída da presidência do STF, Luís Roberto Barroso anuncia um período sabático, que deverá ser concretizado em retiro espiritual junto à seita indiana Brahma Kumaris. Diante da notícia, lembrei-me do que escreveu Max Scheler: “O homem acredita quer num deus, quer num ídolo; não há terceira opção”. Já G. K. Chesterton, mais bem-humorado que o filósofo alemão, proclamou que “quando um homem deixa de acreditar em Deus, não é que ele já não acredite em nada – é que ele acredita em qualquer coisa”.
O pensamento iluminista e a revolução a que deu origem provaram-no definitivamente, com a substituição do catolicismo na França pelas mais excêntricas religiões seculares, cujos objetos de culto iam desde a “deusa razão” até a “lei” e a “pátria” (daí esse ar solene e quase místico que até hoje se respira diante de um francês pronunciando “loi” ou “patrie”). Na condição de iluminista assumido e orgulhoso, não surpreende, pois, que Barroso, o “Voltaire de Vassouras”, se entregue tão afobadamente a qualquer ersatz de transcendência, como já o fez, no passado, com João de Deus, e o faz agora com a seita indiana (que, aliás, também já esteve às voltas com acusações de fraude, corrupção e exploração sexual).
Para o lugar de Barroso, entra um sujeito com uma personalidade bem distinta, quando não mesmo oposta, o que sugere uma significativa variação de estilo, ou de forma, sobre a mesma substância juristocrata. Para bem descrever essa mudança de perfil no comando do partido-corte, ocorre-me retomar metaforicamente a oposição, criada pelo romancista Arthur Koestler nos anos de 1940, entre dois tipos de persona utópico-revolucionária – o iogue e o comissário.
A juristocracia brasileira, longe de ser mero excesso ocasional, tornou-se sistema permanente: uma dialética contínua de alucinação e coerção, de promessa transcendente e de ameaça terrena
No ensaio homônimo, publicado originalmente na revista londrina Horizon, em 1942, Koestler explica o contraste tipológico nos seguintes termos:
“Gosto de imaginar um instrumento que nos torne capazes de penetrar os padrões do procedimento social como o físico penetra um feixe de raios. Olhando através desse espectroscópio sociológico, veríamos espalhado pela difração o espectro multicor de todas as possíveis atitudes humanas da vida. Toda a deplorável confusão tornar-se-ia limpa, clara e compreensível.
“Em uma das extremidades do espectro, evidentemente do lado infravermelho, veríamos o comissário. O comissário acredita na evolução pelo lado de fora. Acredita que todas as pestes da humanidade, incluindo a prisão de ventre e o complexo de Édipo, podem ser e serão curadas pela revolução, isto é, por uma radical reorganização do sistema de produção e distribuição dos bens; que este fim justifica o uso de todos os meios, incluindo a violência, a fraude, a traição e o veneno; que o raciocínio lógico é uma bússola infalível e o universo, uma espécie de vasto mecanismo de relógio, no qual um imenso número de elétrons, uma vez postos em movimento, girarão para sempre nas suas possíveis órbitas; e qualquer indivíduo que acredite em qualquer outra coisa é um trânsfuga da realidade. Esta extremidade tem a mais baixa frequência de vibrações e é, de certa maneira, o mais rude componente do feixe; porém veicula a maior quantidade de calor.
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“Na outra extremidade do espectro, onde as ondas se tornam tão curtas e de tão alta frequência que a vista não mais as percebe, incolor, frio, mas todo-penetrante, arrasta-se o iogue, confundindo-se com o ultravioleta. Ele não se opõe a que o universo seja mecanismo de relógio, porém acha que poderia chamar-se, com maior propriedade, caixa musical ou tanque de peixe. Ele acredita que o fim é imprevisível e que somente importam os meios. Rejeita a violência em quaisquer circunstâncias. Acredita que o raciocínio lógico perde gradualmente seu valor de bússola, na medida em que a mente se aproxima do polo magnético da verdade ou do absoluto, os únicos que têm valor. Ele crê que nada pode ser melhorado pela organização exterior, mas tudo pelo esforço individual, íntimo; e quem quer que acredite em qualquer outra coisa é um trânsfuga da realidade (...) Acredita que cada indivíduo é solitário, porém ligado ao todo por um cordão umbilical invisível, que suas forças criadoras, sua bondade, sinceridade e utilidade, podem somente ser alimentadas pela seiva que o alcança através deste cordão; e que a única tarefa que lhe cabe no decorrer de sua vida terrena é evitar qualquer ação, emoção ou pensamento que possam provocar o rompimento do cordão. E isso só pode ser realizado mediante uma técnica difícil e complicada, a única que ele aceita (...) As energias emotivas do Comissário estão concentradas na relação entre o indivíduo e a sociedade; as do Iogue, na relação entre o indivíduo e o universo.”
Eis aí, nessa descrição, a imagem da distância que separa Edson Fachin, o Comissário, de Barroso, o Iogue. Note-se que, se Barroso é um representante prototípico do Iluminismo dentro do partido-corte, Fachin não o é de somenos. Mas ele representa o Iluminismo do racionalismo mecanicista, que vê o mundo como um mecanismo de relógio, enquanto Barroso advém da deriva romântica do Iluminismo, que converteu a ciência – de cuja ideia pura ele não é menos devoto que o colega – em mística.
O Iogue prepara o terreno, anestesia consciências, cria um clima místico de inevitabilidade histórica. O Comissário, em seguida, impõe a disciplina, aplica a punição e torna efetivo o delírio anterior
Mas seria um erro pensar que o contraste entre personalidades traduz uma eventual mudança nos rumos do STF. Porque, mais que uma simples troca de pele na presidência, o que testemunhamos é a alternância dialética dos dois polos de Koestler. Com Barroso, a usurpação da soberania popular vinha sempre embrulhada no celofane espiritualista, que falava em “deuses da democracia”, e no individualismo romântico, que soltava a voz nos sambas e bailes da vida. Por vezes, era como se o tribunal constitucional fora transformado ora em mandala, ora em show de calouros. Já com Fachin, o quadro pragmático e fiel à linha partidária, o discurso adquire a austeridade do Comissário. A partir daqui, ouviremos muito falar nos deveres constitucionais do Judiciário, na defesa da integridade institucional, da supremacia da Constituição, da separação e harmonia entre os poderes – tudo isso no singular rigor de sentenças político-morais que ninguém votou, mas a que todos devemos obedecer.
É um jogo perfeito de complementaridade. O Iogue prepara o terreno, anestesia consciências, cria um clima místico de inevitabilidade histórica. O Comissário, em seguida, impõe a disciplina, aplica a punição e torna efetivo o delírio anterior. Transforma a visão mística em protocolo. A combinação explica por que a juristocracia brasileira, longe de ser mero excesso ocasional, tornou-se sistema permanente: uma dialética contínua de alucinação e coerção, de promessa transcendente e de ameaça terrena.
Sim, Barroso é o Iogue, que, tendo atingido um estado individual de elevação do espírito, pretendeu salvar o mundo pela reforma da consciência, pela meditação e pela gnose neoconstitucionalista. Já Fachin é o Comissário, o camarada rigidamente disciplinado, discreto, que tudo faz para assumir o controle do mecanismo e fazê-lo funcionar em prol do Partido. Trata-se de uma relevante mudança de estilo. Trata-se, a fortiori, de uma mais relevante ainda manutenção de agenda. Quer pela via infravermelha, quer pela ultravioleta, o partido-corte seguirá impondo o seu espectro político-ideológico sobre o país. Barroso é o Voltaire de Vassouras. Fachin, o Robespierre de Passo Fundo.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




