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Flávio Gordon

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Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

Humanidade

Bolsonaro na UTI

Facada Bolsonaro
No dia 13 de abril Jair Bolsonaro passou pela sexta cirurgia, com 12 horas de duração, em decorrência da facada (Foto: Reprodução redes sociais/Jair Bolsonaro)

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Como escrevi na coluna da semana passada, meu pai ficou internado 45 dias no hospital antes de falecer. Desse total, cerca de 80% foram passados dentro de uma unidade de tratamento intensivo - UTI. Como, junto com meus irmãos, acompanhei-o diariamente nesse período, estou com a memória bem fresca sobre o delicado ambiente de uma UTI, no qual qualquer pequena alteração nos parâmetros clínicos pode ser fatal para pacientes que lutam pela vida. Eis por que, dos técnicos aos médicos, dos enfermeiros aos acompanhantes e visitantes, todos procuram cercar o paciente de cuidados, evitando-lhe causar danos físicos e emocionais para além dos já implicados por sua condição.

Todo ser humano normal respeita o ambiente de uma UTI. O respeito que se deve a uma pessoa nessa condição é tal que, em seu artigo 244, o Código de Processo Civil brasileiro diz que “não se fará a citação, salvo para evitar o perecimento do direito, de doente, enquanto grave o seu estado”. Esse direito vale até para criminosos da mais alta periculosidade, cujo estado de vulnerabilidade, quando eles se encontram gravemente enfermos, é também reconhecido. É isso o que prescreve a decência. É isso o que assegura o tão propalado estado de direito.

Com a cena abjeta, na qual uma burocrata insípida apresenta ao doente grave um papel contaminado de banalidade do mal, o país chafurda de vez no rol de regimes políticos que, ao longo da história, nos levaram a duvidar da condição humana

A aviltante intimação de Jair Bolsonaro no leito de uma UTI – já repercutida internacionalmente – prova definitivamente que o Brasil hoje não é governado por pessoas normais, mas por psicopatas. E prova também que “estado de direito” virou uma fórmula de quebranto, propagandeada justamente por aqueles que destruíram todo resquício de justiça e de império das leis. O Brasil não apenas virou um regime de exceção, como virou um regime de exceção comandado por elementos particularmente sádicos e doentios. Com a cena abjeta, na qual uma burocrata insípida apresenta ao doente grave um papel contaminado de banalidade do mal, o país chafurda de vez no rol de regimes políticos que, ao longo da história, nos levaram a duvidar da condição humana.

Mas convém jamais esquecer que esse tratamento indigno reservado ao ex-presidente – um tratamento que nem assassinos e estupradores experimentam no país da bandidolatria e do legalismo de ocasião –, só foi possível graças a uma vasta campanha de desumanização encampada pela velha imprensa. A recorrente estigmatização midiática do bolsonarismo guarda semelhanças com casos históricos mais extremos, nos quais uma retórica desumanizante cada vez mais naturalizada resultou em genocídios.

No livro A Linguagem do Terceiro Reich, por exemplo, o filólogo judeu Victor Klemperer registrou a corrupção da língua alemã promovida pelo regime nazista, uma condição necessária para a aceitação social do extermínio dos judeus, invariavelmente tratados por “ratos” e “vermes”: “O nazismo se embrenhou na carne e no sangue das massas por meio de palavras, expressões ou frases, impostas pela repetição, milhares de vezes, e aceitas mecanicamente”. Na Alemanha nazista, a dessensibilização moral provocada pela linguagem estigmatizadora preparou o Holocausto.

Poderíamos citar também o caso mais recente do genocídio de Ruanda, no qual veículos de imprensa como a Radio Télévision Libre des Mille Collines (RTLM) tiveram um papel decisivo no fomento à carnificina. Por meio da estigmatização reiterada dos tutsis, sistematicamente desumanizados e apelidados de “baratas” (inyenzi), o governo hutu conseguiu consolidar a ideia de que contra eles tudo era permitido.

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No livro Uma Temporada de Facões: relatos do genocídio em Ruanda, de 2005, o jornalista e correspondente de guerra Jean Hatzfeld entrevistou genocidas hutus, e os depoimentos atestam o sucesso da campanha midiática de desumanização dos tutsis. Sobre sua primeira vítima, observa um dos assassinos entrevistados: “Ele já não era propriamente uma pessoa comum, quer dizer, como essas que a gente encontra todo dia. Suas feições eram bem parecidas com as da pessoa que eu conhecia, mas nada me lembrava com nitidez que eu vivia a seu lado desde muito tempo. Não sei se o senhor consegue me entender bem. Era um reconhecimento, sem o conhecimento”. De maneira similar, um outro assassino confessa: “Quando descobríamos uns tutsis nos charcos, deixávamos de vê-los como humanos. Quer dizer, com gente parecida conosco, dividindo um pensamento e sentimentos semelhantes”.

No Brasil, desumanizar verbalmente Jair Bolsonaro e seus seguidores virou esporte nacional na velha imprensa. Um certo comediante definiu o ex-presidente como “um cara abjeto, que não tem humanidade... Isso não é gente, é rato, é verme”. Uma atriz manifestou livremente – sem que a Polícia Federal fosse bater em sua porta – o seu desejo de esfregar a cara de Bolsonaro no asfalto.

Na grande imprensa, o estigma bolsonarista – estampado em pessoas como o cantor Sérgio Reis, a médica Nise Yamaguchi, o empresário Luciano Hang, o jornalista Allan dos Santos e de tantos outros – serviu nos últimos anos para apontar os alvos da perseguição estatal e, em seguida, legitimar essa perseguição. Gradativamente, a adesão ao bolsonarismo e a existência mesma de Bolsonaro foram sendo retoricamente construídas como um crime. Não é exagero. Um conhecido blogueiro petista chegou a descrever uma participante do BBB como “suspeita de bolsonarismo”.

Foi assim que os mandatários do regime, sempre auxiliados por seus vassalos de redação, puderam construir o vasto sistema de lawfare movido contra o bolsonarismo e a direita brasileira em geral. O vergonhoso episódio na UTI é apenas um dos corolários mais visíveis desse projeto político de desumanização do oponente.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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