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Flávio Gordon

Flávio Gordon

Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

“Discurso de ódia”

A gloriosa ascensão dos imortais de toga

cármen lúcia discurso de ódia
A ministra Cármen Lúcia, do STF. (Foto: Antonio Augusto/STF)

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No excêntrico palco da República das Togas Esvoaçantes, onde a pompa rivaliza com a semântica e a seriedade é apenas um gênero performático, testemunhamos ontem mais um espetáculo digno do teatro do absurdo: a ministra Cármen Lúcia, sacerdotisa do culto progressista, bradou – com o ar compungido de quem recita um salmo – que as redes sociais se converteram em palcos de “discurso de ódia” contra as mulheres.

Sim, leitor incrédulo: “ódia”. Não ódio. Ódia! Uma construção linguística que faria corar de inveja os entusiastas do esperanto e empalidecer os gramáticos da Academia Brasileira de Letras, se é que ainda há gramáticos por lá. Mas não nos precipitemos. A surpresa dura pouco. Afinal, estamos no Brasil, terra em que ministros supremos se imaginam poetas, alguns sem serem capazes nem sequer de conjugar um verbo corretamente.

A pirraça vocabular da ministra – mais um daqueles “atos falhos” que, diria Freud, denunciam a alma – parece ter brotado da mais legítima indignação militante. Em mais uma das sessões que determinarão a responsabilidade das plataformas digitais pela remoção de conteúdos publicados por usuários, Cármen Lúcia vociferou, com aquele timbre algo trêmulo de mártir tardia: “É muito triste ver como as redes sociais se transformaram em lugar de ‘discurso de ódia’ contra as mulheres”. Pronto. Estava dito. E dito com a autoridade de quem interpreta a Constituição como se fora um texto esotérico, infenso à lógica e à língua.

Não bastasse o neologismo ridículo, a fala de Cármen Lúcia sobre “discurso de ódia” é exemplar do tipo de retórica panfletária que tomou de assalto as instituições judiciárias brasileiras

Não deixa de ser irônico (e poeticamente justo) que o solecismo feminil da ministra venha à tona na mesma semana em que seu colega de corte, o venerando Gilmar Mendes, foi ungido “imortal” pela Academia Brasiliense de Letras, uma agremiação cujo critério de admissão parece ter sido inspirado por Oswald de Andrade: “Só a antropofagia nos une”. Com efeito, os membros da academia literária de Brasília não parecem propriamente escolhidos por sua produção literária, mas por sua aptidão para devorar o idioma, as instituições e – por que não? – o bom senso.

Temos, pois, que Gilmar, o eterno, é o novo literato. E Cármen, a lírica, é a nova gramática. E assim vamos compondo, passo a passo, verso a verso, a epopeia do Brasil pós-bolsonarista... E pós-gramatical. A língua é assassinada em nome da virtude; a lógica, substituída pela “vivência”; o ridículo, consagrado como método. E a imprensa amestrada garante os aplausos.

Mas, não bastasse o neologismo ridículo, a fala de Cármen é exemplar do tipo de retórica panfletária que tomou de assalto as instituições judiciárias brasileiras. Em vez de se ocupar com os rigores da jurisprudência e os fundamentos constitucionais, nossos magistrados têm preferido militar em prol de causas “progressistas” da moda, brandindo discursos genéricos sobre “violência estrutural”, “machismo sistêmico” e outras abstrações sociológicas com a mesma desenvoltura com que decidem sobre habeas corpus de réus amigos e condenam a 14 anos de cadeia mães de família pertencentes ao campo político inimigo.

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Mas “ódia” – oh, “ódia”! – não é apenas uma cretinice gramatical: é um sintoma civilizacional. O termo, involuntário ou não, revela o estágio terminal da degradação linguística promovida por essa curiosa interseção entre ativismo de toga e feminismo de auditório. Pois não se trata apenas de nomear o mundo, mas de recriá-lo à imagem e semelhança de uma ideologia para mentes pueris. No universo da novilíngua togada, “ódia” talvez seja apenas o primeiro passo. Logo virá o “machisma”, a “misoginia estrutural” e a defesa do “Estada democrática de direita”. A propósito, é estranho que Cármen tenha feminilizado a palavra “ódio”, mas não a palavra “discurso”. Por coerência, deveria ter falado em discursa de ódia. Terá sido um lapso de machismo internalizado?

Num país onde a elite jurídica é formada por juízes que não julgam, mas pregam; e que não interpretam a lei, mas a reescrevem conforme a cartilha “progressista” do momento, não espanta que a língua portuguesa seja estuprada com tamanha leviandade. O fenômeno, aliás, não é isolado. Reflete uma tendência global, essa sim violenta, de substituição do argumento pela lacração, da gramática pela ideologia, da lógica pelo sentimentalismo.

O abuso da linguagem é coerente com o abuso de autoridade: ambos refletem a mesma pretensão totalitária de impor uma única narrativa, um único vocabulário, uma única moral

Na retórica feminista da ministra, o “ódia” é útil. Serve para vitimizar as mulheres como categoria metafísica, para demonizar a liberdade de expressão como instrumento do patriarcado e, sobretudo, para justificar a crescente tutela estatal sobre o debate público. Afinal, onde há “ódia” – mesmo que fictício ou mal declinado – há de se intervir. O passo seguinte, já ensaiado, é a censura oficial: travestida de “regulação”, claro, com o beneplácito dos tribunais superiores e o aplauso de ONGs progressistas internacionais.

E assim se encerra o círculo. A ministra que denuncia o “ódia” é a mesma que, em outras ocasiões, defende com entusiasmo o controle das redes sociais, a punição a influenciadores antissistêmicos e outras medidas típicas de um regime de opinião tutelada. O abuso da linguagem, portanto, é coerente com o abuso de autoridade: ambos refletem a mesma pretensão totalitária de impor uma única narrativa, um único vocabulário, uma única moral. Trata-se não mais de editar o país inteiro apenas, mas de editar a própria morfologia da língua pátria.

No fim, resta-nos apenas o consolo do riso. Riso trágico, é verdade, como o de quem contempla a derrocada da civilização a partir da plateia de uma corte circense. Riso amargo, como o de quem assiste a uma sessão plenária convertida em sarau de neologismos grotescos. Riso melancólico, como o de quem reconhece que veste toga o carrasco da última flor do lácio...

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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