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Ariane Sherine e Richard Dawkins no lançamento da campanha do "ônibus ateísta", em Londres, em 2009.
Ariane Sherine e Richard Dawkins no lançamento da campanha do “ônibus ateísta”, em Londres, em 2009.| Foto: Zoe Margolis/Atheist Bus Campaign

No artigo anterior, vimos que, em sua encíclica Humani Generis (1950), o papa Pio XII reconhecia, sim, a legitimidade do estudo da teoria de Darwin sobre a origem das espécies. “O magistério da Igreja não proíbe o estudo da doutrina do evolucionismo, que busca a origem do corpo humano em matéria viva preexistente” – dizia o pontífice, alertando, contudo, para o perigo da inflação metafísica e extrapolação ideológica da teoria.

Nos anos seguintes à publicação daquela encíclica, deu-se um intenso e prolífico debate sobre a relação entre o catolicismo e a Teoria da Evolução. Como resultado direto dele, em outubro de 1996 houve na Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano um grande encontro sobre o tema, ocasião em que o papa João Paulo II afirmou que a Teoria da Evolução já merecia ser considerada mais do que uma simples “hipótese”. Em suas palavras: “Na encíclica Humani Generis (1950), o meu predecessor Pio XII já havia negado qualquer oposição entre a evolução e a doutrina da fé sobre o homem e a sua vocação, com a condição de não perdermos de vistas alguns aspectos inegociáveis”.

Por “aspectos inegociáveis”, João Paulo II referia-se à verdade revelada de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, um dogma que descreveu como “central para o pensamento cristão”. A exemplo de seu predecessor, João Paulo II fez questão de traçar uma linha divisória entre a teoria científica da evolução, por um lado, e as suas interpretações filosóficas, por outro. E, também como aquele, ressaltou que interpretações materialistas que negassem a dimensão espiritual do homem não eram, por óbvio, compatíveis com a doutrina católica.

Questões de ordem metafísica que muitos adeptos do darwinismo acreditam terem sido solucionadas adequadamente – Deus existe? Qual a origem do universo? E o sentido da vida? – não podem ser respondidas cientificamente

Depois de Pio XII e João Paulo II, também Bento XVI debruçou-se sobre o tema em diversas ocasiões. Com o seu reconhecido gênio teológico, no texto “A fé na criação e a teoria evolucionista”, o atual papa emérito equacionou a questão da compatibilidade entre os pretensos anátemas com o argumento de que, por ocuparem níveis distintos de realidade, a criação e a evolução não se opõem, mas, ao contrário, se complementam. Enquanto a primeira diz respeito à “pergunta fundamental” (Grundfrage) da filosofia – por que existe o ser e não, antes, o nada?, como Leibniz a formulou –, a segunda responde pela diferença entre seres particulares: por que esse ser e não outro?

Escreve Bento XVI: “A fé na criação se pergunta pelo fato do ser como tal; o seu problema é por que existe alguma coisa e não temos o nada absoluto. O pensamento evolucionista, pelo contrário, [se pergunta] por que existem precisamente essas coisas e não outras, donde receberam sua determinação e como coexistem com outras formas. Portanto, filosoficamente se diria que o pensamento evolucionista se acha no nível dos fenômenos, ocupa-se com os seres do mundo que ocorrem realmente, enquanto a fé na criação se move no nível ontológico, questiona num plano anterior às coisas individuais, admira o milagre do ser mesmo, procurando dar-se conta do ‘é’ enigmático que predicamos universalmente de todas as realidades que ocorrem”. E continua: “Também se poderia dizer que o conceito da criação se refere à diferença entre o nada e o algo; a ideia da evolução, pelo contrário, àquela entre o um e o outro. A criação caracteriza o ser na sua totalidade como vindo de outro; a evolução, pelo contrário, descreve a construção interna do ser, procurando o donde específico das diversas realidades existentes”.

Assim como seus antecessores no trono de Pedro, Bento XVI combateu o uso da teoria de Darwin para fundamentar o positivismo científico, doutrina segundo a qual apenas as ciências naturais e empíricas podem gerar certezas sobre a realidade, restando à religião conformar-se ao papel de resíduo subjetivo e compensatório diante da fria indiferença do universo.

Eis o ponto em que, para Bento XVI, a doutrina católica deve impor limites. Segundo ele, o cristianismo repousa sobre verdades mais profundas do que as estabelecidas via observação empírica, sendo a primeira delas o fato de que a vida tem um sentido. Portanto, o papa emérito crê em alguma medida no “design inteligente” – não no sentido do criacionismo americano, ou seja, como pretenso produto de observação científica; mas como princípio metafísico.

Em suma, Bento XVI também condenou a transformação da Teoria da Evolução numa cosmovisão total, em nome da qual o argumento científico se rebaixa à condição de mero argumento de autoridade. Questões de ordem metafísica que muitos adeptos do darwinismo acreditam terem sido solucionadas adequadamente – Deus existe? Qual a origem do universo? E o sentido da vida? – não podem ser respondidas cientificamente. A teoria de Darwin não é capaz de sustentar a verdade de uma ontologia materialista porque, ao contrário, ela própria pressupõe a existência da matéria.

A força cultural do darwinismo não pode, pois, ser compreendida nessa clave. Ela consiste, sobretudo, na capacidade de cerrar fileiras contra um inimigo filosófico comum. Por esse motivo, e por nenhum outro, o darwinismo tornou-se tão paradigmático e influente.

Apesar de seus méritos científicos inegáveis, a Teoria da Evolução ficou consagrada menos por esse motivo que por sua metafísica implícita

E o inimigo comum dos darwinistas são os adeptos da visão de mundo segundo a qual é absurda a hipótese de que forças materiais aleatórias geraram o mundo tal como o observamos e, menos ainda, a vida humana. Para esses, o cosmos tem um sentido, e há uma verdade última para além da realidade material imediatamente apreensível pelos sentidos. Em suma, aquilo em que o darwinismo enquanto ideologia mirou foi a própria noção de transcendência. Para além de seu aspecto científico, esse movimento intelectual de massa serviu de poderoso catalisador das concepções materialistas da existência. São raros os cientistas que, mesmo lhe questionando um ou outro ponto, deixaram de ser atraídos pela sua metafísica sedutora, para muitos – como mostra a filósofa britânica Mary Midgley – verdadeiramente soteriológica.

Um exemplo de inflação metafísica, ideológica e moral do darwinismo pode ser encontrada na obra do paleontólogo neoateísta Richard Dawkins. Por exemplo, em seu ensaio Darwin Triumphant: Darwinism as Universal Truth – cujo título fala por si –, Dawkins sugere expressamente que o darwinismo é mais que mera teoria científica, algo situado no mesmo nível epistemológico de outras teorias equivalentes. Não, para ele o darwinismo deve ser compreendido como uma visão de mundo, um discurso totalizante sobre a realidade, um princípio “universal e atemporal” capaz de ser aplicado ilimitadamente, inclusive a domínios que lhe são aparentemente alheios, tais como a moral e a estética.

O sentido dessa “religião evolucionista”, por assim dizer, está expresso de maneira exemplar no livro de uma colega de Dawkins, a geneticista Ursula Goodenough. Em The Sacred Depths of Nature, a autora procura descrever o componente sagrado da interpretação científica da Natureza, interpretação que chama de “Epopeia da Evolução”. “Toda tradição global deve começar por uma visão de mundo compartilhada” – escreve Goodenough. “É, pois, o objetivo deste livro apresentar um relato acessível da nossa compreensão científica da natureza, e então sugerir meios para que esse relato possa suscitar respostas religiosas – uma abordagem que proponho chamar de naturalismo religioso... A história da natureza tem o potencial de servir de cosmos para o ethos global de que precisamos”.

Apesar de seus méritos científicos inegáveis, portanto, a Teoria da Evolução ficou consagrada menos por esse motivo que por sua metafísica implícita, que, negando toda transcendência à existência humana, apresenta-se como alternativa à metafísica judaico-cristã. Por sua vez, essa metafísica imanentista (ou, se preferirem, panteísta) mostrou ser bem sedutora em termos psicológicos.

Fala-se muito, na imprensa e na academia, sobre as razões psicológicas da crença religiosa. Desde a explicação marxista da religião como “ópio do povo”, passando pela concepção freudiana da religião como “ilusão reconfortante”, uma série de interpretações análogas foram propostas, cuja tônica geral pode ser resumida no pensamento do ateu militante Michel Onfray, para quem todo fiel religioso é alguém que “prefere os confortáveis contos de fada da infância do que a dura e cruel realidade dos adultos”.

Pouca coisa tem sido dita, por outro lado, sobre as motivações psicológicas da descrença. Como nota David Berlinski, crítico mordaz do ateísmo de inspiração darwinista, o prognóstico dostoievskiano – “se Deus não existe, tudo é permitido” – traduziu-se num silogismo muito presente na cosmovisão evolucionista: se Deus não existe, tudo é permitido; se a ciência (darwinista) é verdadeira, logo, Deus não existe; se a ciência é verdadeira, logo, tudo é permitido.

A consagração universal do evolucionismo como visão de mundo, uma espécie de mito fundador da laicidade moderna, não se deu por seu componente científico, mas por sua potência cultural revolucionária

Com efeito, o apelo que o darwinismo representou para muitos foi ter, supostamente, eliminado a ideia de uma natureza humana “superior”, estabelecendo um contínuo entre os homens e os animais. Como se sabe, Sigmund Freud sugeriu que, depois da revolução copernicana, a teoria de Darwin fora o segundo grande abalo na autoimagem narcísica da espécie humana. Nesse sentido, era como se a teoria viesse ao encontro de um sentimento generalizado na intelectualidade iluminista-secularista do Ocidente, um desejo de dessacralização da vida humana e emancipação em relação à autoridade divina.

Julien Huxley – neto do fiel darwinista Thomas Huxley e primeiro diretor-geral da Unesco – confessou: “O senso de alívio espiritual advindo da rejeição da ideia de Deus é imensa”. Seu irmão Aldous, célebre autor de Admirável Mundo Novo, adotou uma versão mais hedonista desse mesmo espírito: “Eu tinha motivos para querer que o mundo não tivesse um sentido. Consequentemente, assumi que não tinha, e não foi difícil encontrar razões que o sustentassem... Para mim, e sem dúvida para muitos dos meus contemporâneos, a filosofia do não sentido era essencialmente um instrumento de libertação. Libertação de um certo sistema moral. Objetávamos contra a moralidade porque ela interferia em nossa liberdade sexual”. O psicólogo cognitivista Steven Pinker seguiu a mesma linha de raciocínio ao dizer que “o problema com o Homo Sapiens talvez não seja o de possuirmos pouca moralidade, mas o de possuirmos muita”.

Fica evidente que há muito mais em jogo no darwinismo – um dos grandes expoentes da “filosofia do não sentido” – do que apenas ciência. A consagração universal do evolucionismo como visão de mundo, uma espécie de mito fundador da laicidade moderna, não se deu por seu componente científico, mas por sua potência cultural revolucionária e capacidade de sustentar uma metafísica alternativa à cosmologia mosaica, com todas as consequências conhecidas no terreno da moral e da política.

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