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“Estou prestes a eleger o primeiro presidente negro dos Estados Unidos.” (Hugo Chávez, em conversa com o seu segurança no ano de 2008, citado em Stolen Elections, de Ralph Pezzullo)
A carta enviada por Hugo “El Pollo” Carvajal ao ex-presidente Donald Trump, oferecendo-se para apresentar informações sobre os vínculos do regime venezuelano com o narcotráfico, é obviamente um gesto de autopreservação de um criminoso em apuros. Mas é também, et pour cause, a confirmação documental de uma velha suspeita: a consolidação, na Venezuela chavista, de um sistema no qual crime organizado, política e Forças Armadas tornaram-se partes intercambiáveis de um mesmo arranjo de poder.
É claro que “El Pollo” – ex-agente de inteligência da ditadura chavista – não foi tomado por um súbito senso de responsabilidade moral. Sua iniciativa, vinda só depois de anos de participação direta nos mecanismos que agora pretende denunciar, é um movimento estratégico, não um ato de contrição. Mas por isso mesmo, como costumam ser as delações de ex-integrantes de regimes políticos criminosos, tem um valor histórico.
De maneira quase burocrática, Carvajal descreve os vínculos do regime com o narcotráfico, as relações com grupos terroristas estrangeiros, a cooperação criminosa com facções e guerrilhas e a atuação dos altos comandos militares como garantidores de rotas, acordos e pagamentos. Em outras palavras, a carta confirma que o chavismo não se tornou um narcoestado por acidente ou degeneração progressiva. A simbiose entre política e crime faz parte de sua estrutura original.
O software criado para garantir a eternização do poder bolivariano tornou-se um produto de exportação estratégico da Venezuela
Esse quadro ajuda a compreender por que a Venezuela não se contentou em destruir suas próprias instituições. A partir de certo momento, passou a exportar seu modelo. A infiltração de agentes, a difusão de estratégias, a cooperação clandestina, tudo isso tornou-se elemento essencial de uma política externa orientada à preservação de um regime delinquente.
Um dos pontos denunciados por Carvajal na carta chamou-me especial atenção, a saber: o esquema de manipulação global de processos eleitorais por meio da Smartmatic, uma empresa fornecedora de tecnologia eleitoral para diversos países, que tem vínculos profundos com a cúpula do chavismo. Ocorre que, na véspera de tomar conhecimento da carta de “El Pollo” a Trump, eu acabara de escrever uma resenha do recém-publicado Stolen Elections: The Takedown of Democracies Worldwide, resenha que será publicada em breve na seção de Cultura da Gazeta do Povo.
O livro, baseado em quatro anos de investigação conduzida por dois veteranos da inteligência, Martin Rodil (de origem venezuelana) e Gary Berntsen, finalmente dá forma documental àquilo que desertores do chavismo e ex-operadores do sistema já vinham alertando em privado: a Venezuela não se limitou a corromper seu próprio processo eleitoral. Ela desenvolveu, refinou e exportou um mecanismo completo de manipulação de resultados, com capacidade de operar silenciosamente em dezenas de países.
É precisamente aqui que a carta de Carvajal encontra seu verdadeiro peso. Se o ex-chefe de inteligência admite que o Estado venezuelano institucionalizou o crime como método de governo, por que seria difícil aceitar que o mesmo Estado, com as mesmas pessoas, tenha se empenhado em projetar esse método para além das fronteiras? O tráfico de drogas, afinal, é apenas uma das frentes de atuação. A manipulação do voto é outra – e, para o projeto chavista, mais estratégica ainda.
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Os relatos compilados por Pezzullo não vêm de curiosos, nem de analistas externos. São depoimentos técnicos de quem participou diretamente da construção do software eleitoral utilizado pelo regime. Engenheiros, operadores, empreiteiros e membros do aparato de inteligência venezuelano descreveram, em detalhes, como o sistema foi concebido, aprimorado e distribuído internacionalmente. São eles que afirmam, com detalhamento técnico, que o código-fonte que permitiu ao chavismo controlar suas próprias eleições foi o mesmo disseminado para dezenas de outras jurisdições.
Esses delatores não especulam: eles descrevem as etapas, os comandos, as rotinas, as funções e as portas de acesso que possibilitam a manipulação remota e silenciosa dos resultados. Portanto, não estamos falando de “dúvidas sobre segurança” ou “preocupações tecnológicas” – expressões eufemísticas usadas por quem não quer enfrentar o problema. Estamos lidando com um sistema deliberadamente projetado para fraudar eleições, o tipo de assunto que se tornou tabu no Brasil pelas mãos dos nossos juristocratas e demais agentes de censura estatal.
O livro deixa claro que o chavismo compreendeu muito cedo que controlar eleições é mais eficiente que controlar território. Onde ditaduras antiquadas precisavam de tanques, o regime de Chávez precisou apenas de software. E esse software, criado para garantir a eternização do poder bolivariano, tornou-se um produto de exportação estratégico da Venezuela – mais valioso que petróleo, mais lucrativo que cocaína, mais útil que qualquer aliança diplomática.
Ao reconhecer o elo estrutural entre o regime e o narcotráfico, a carta de Carvajal reforça esse diagnóstico. Porque, ao nivelar Estado e crime, o ex-general admite involuntariamente que não há limite moral, legal ou operacional para a ação do chavismo. Se a cúpula militar venezuelana homologou o tráfico como política de Estado, por que hesitaria diante da manipulação eleitoral?
Não estamos diante de um simples problema moral ou administrativo, mas de um modelo sofisticado de guerra híbrida que combina inteligência, tecnologia e crime para subverter democracias
Pelo contrário: tudo indica que essa manipulação é a peça mais sofisticada do sistema.
Com base nos depoimentos técnicos, Pezzullo expõe um arcabouço digital capaz de alterar resultados em tempo real, simular aleatoriedade, produzir vitórias táticas da oposição para gerar aparência de normalidade e ajustar números conforme necessidade do comando central. Um mecanismo que opera como vírus mutante: invisível, adaptável, reprodutível – e, de fato, segundo as fontes, reproduzido não em dois ou três países, mas em mais de 70.
É isso que torna o livro de Pezzullo tão perturbador se lido em conjunto com a confissão de Carvajal. Não se trata de um estudo sobre falhas de segurança ou sobre vulnerabilidades abstratas. Trata-se da reconstrução de um sistema deliberado, nascido no seio de um regime cujo funcionamento interno agora é confirmado pelo próprio ex-chefe de inteligência.
Enquanto Carvajal fala de cocaína, guerrilhas e rotas clandestinas, Pezzullo fala da outra metade do crime: a manipulação da vontade popular. São dimensões distintas de um mesmo projeto. A Venezuela chavista não deseja apenas financiar-se pelo ilícito; deseja garantir que nenhuma mudança política, interna ou externa, ameace esse financiamento. O controle eleitoral tornou-se um produto exportável, uma arma assimétrica, um componente do arsenal geopolítico da revolução bolivariana.
Frente a isso, democracias precisam abandonar a ingenuidade técnica que marcou as últimas décadas. O perigo não está apenas nos traficantes, nas milícias ou nos grupos paramilitares que o chavismo utilizou como instrumentos de poder. O perigo está, sobretudo, na capacidade que o regime adquiriu de interferir no coração da legitimidade política de outras nações.
Se a confissão de Carvajal desmonta a ficção de que a Venezuela é apenas um país governado por fanáticos ideológicos, o livro de Pezzullo desmonta a ficção complementar: a de que suas ambições criminosas se limitam ao território nacional. A combinação dessas duas peças deveria acender todos os alarmes.
Se a carta de Carvajal é um pedido de socorro pessoal, o livro de Pezzullo é um pedido de socorro institucional. Ambos mostram que não estamos diante de um simples problema moral ou administrativo, mas de um modelo sofisticado de guerra híbrida que combina inteligência, tecnologia e crime para subverter democracias.
O chavismo, enfim, confessou. Falta agora saber se o que restou das democracias no mundo ainda tem disposição – e tempo – para reagir.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




