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“Finda a luta, quando, sedento, esfomeado, exausto, por causa do furor com que lutara, apoiado me achava em minha espada, chegou-se-me um senhor mui bem vestido, tão guapo quanto um noivo, a barba feita como campo de sega após a festa (...) Louco me deixava vê-lo assim tão casquilho e perfumado, a falar, tal qual uma camareira, de tiros de canhão, tambor e golpes” (Shakespeare, Henrique IV, Parte I, Ato I, Cena III)
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Mesmo após o início do novo regime no país, continua azeitado o mecanismo de “cancelamento” de artistas de algum modo associados ao candidato derrotado Jair Bolsonaro. Não passa um dia sem que, por exemplo, algum representante do “consórcio” de propaganda, difamação e guerra psicológica – daquilo que, enfim, costumava se chamar imprensa – não dedique manchetes maledicentes contra Regina Duarte ou Cássia Kiss, permanentemente acusadas do “crime” de bolsonarismo. Sim, no país em que o beautiful people dos estúdios e redações estendem o tapete vermelho para entusiastas de genocidas em sentido literal – como fez a Globo News com o stalinista Jones Manoel –, eleitores e simpatizantes de um “genocida” em sentido figurado (e ademais já politicamente neutralizado) continuam sendo escorraçados como párias.
A nova onda de wilsonsimonalização teve início em 2018 com o cantor sertanejo Gusttavo Lima. Naquele ano – que, por sua excepcionalidade, parece pertencer a um outro século –, o cantor “bolsonarista”, fazendo jus ao famoso verso de Milton Nascimento segundo o qual “todo artista tem de ir aonde o povo está”, declarou-se contrariamente ao Estatuto do Desarmamento e em favor da posição do então pré-candidato Jair Bolsonaro, que cobrava maior rigor no enfrentamento aos criminosos, atualmente beneficiados por uma lei penal frouxa e leniente. Desde o Referendo de 2005, e em sucessivas pesquisas de opinião promovidas por uma imprensa em perpétua negação ante os resultados, a esmagadora maioria da população posiciona-se invariavelmente ao lado de Gusttavo. E, no entanto, a fala do cantor foi então maliciosamente descrita como “polêmica” ou “controversa” pelos órgãos de mídia, o que revela o estado agudo de alienação de nossos jornalistas, cegos para o fato de que polêmicos e controversos são eles.
Ao expor sua opinião em vídeo divulgado nas redes sociais, no qual, ainda por cima, aparecia num estande de tiro disparando com um fuzil, Gusttavo Lima não podia imaginar que a nova tendência do establishment cultural fosse precisamente outra: em vez de seguir o povo, tomar a direção oposta, e, de preferência, afetando ares de superioridade olímpica. Com efeito, para alguns artistas brasileiros, as opiniões reais do povo, especialmente no que diz respeito à segurança pública, são tidas por “simplistas”, quando não nefastas. “A realidade é mais complexa”, dizem, imaginando-se muito sofisticados e moralmente evoluídos. “É preciso evitar maniqueísmos”, pontificam arrogantes, respaldados por um forte esquema de auto-bajulação e elogios em boca própria, que traduz um eficaz mecanismo de homogeneização das consciências, mecanismo que Gusttavo ousou desafiar ao cometer o pecado da sinceridade e ecoar a voz do povo brasileiro de carne-e-osso, não o povo inventado pelos autoproclamados artistas “progressistas”.
Menos ainda podia imaginar o cantor que, por seu posicionamento (midiaticamente incorreto; popularmente consagrado), fosse ser alvo, tão imediatamente, de uma campanha de assassinato de reputação que nos remete aos métodos de Stalin e Mao Tsé-tung, apenas que não conduzida pelo Estado, mas por aquele mesmo establishment cultural que, não obstante jurando representá-lo, foge do povo como o diabo da cruz.
Gusttavo Lima não podia imaginar que a nova tendência do establishment cultural fosse precisamente outra: em vez de seguir o povo, tomar a direção oposta, e, de preferência, afetando ares de superioridade olímpica
A coisa começou em fevereiro de 2018, quando Gusttavo aparece no programa Fantástico, da Rede Globo, para lançar nova música, em participação gravada antes da opinião “polêmica”. Ao fim da matéria, que incluía um bate-papo entre o cantor e uma apresentadora toda risos e dentes, a direção do programa decidiu fazer uma inserção, gravada após o ocorrido. Agora já com fisionomia fechada, a mesma apresentadora comentava sobre a postagem do cantor, encerrando o texto com uma técnica quase eisensteiniana de associação de imagens, de uma sutileza paquidérmica:
“O vídeo no estande de tiro foi gravado no estado da Flórida (…), o mesmo estado onde, há onze dias, um aluno entrou numa escola armado com um fuzil AR-15 e matou dezessete pessoas. A manifestação de Gusttavo Lima aconteceu também num momento em que o Brasil passa por uma grave crise de segurança público, a ponto de o Rio de Janeiro ter sofrido uma intervenção federal comandada pelo Exército, daí ter provocado tanta polêmica”.
Horas antes da tentativa grosseira de contaminar a imagem do rapaz com o horror do massacre na Flórida e a criminalidade no Rio de Janeiro, manipulação que apela ao sentimento de medo do público, um outro veículo já havia ligado a máquina de moer reputações, desta feita apelando ao sentimento de inveja: “Saiba quanto custou o novo jato de Gusttavo Lima” – era o título da matéria. Dias depois, nova ofensiva: “Polícia indicia Gusttavo Lima e mais 3 por aumentar represa da fazenda sem possuir licença”.
Em coisa de três dias, portanto, Gusttavo começou a aparecer reiteradamente associado a fatos negativos, passando de queridinho dos órgãos de mídia a persona non grata, num processo muito similar ao que vitimou Wilson Simonal na década de 1970. Como escrevi em A Corrupção da Inteligência: “O caso Simonal foi um laboratório. O mecanismo à época mobilizado contra o cantor – banido de casas de show, de teatros, dos estúdios da Globo e da Tupi, e de todos os espaços reservados àquela ‘gente de doçura e luz’ de que fala Matthew Arnold – continua em pleno vigor”.
Diferente de Gusttavo Lima, punido pelo Grande Irmão por entreter os pensamentos errados e ir aonde o povo está, um grupo de artistas prafrentex (sempre os mesmos!) achou por bem ostentar virtude, fazer proselitismo político-partidário com coisa séria (são quase todos cabos eleitorais do Psol) e dar as costas ao povo. Em vez de punidos, todavia, são e continuarão sendo dignos dos mais altos salamaleques, mimos e honrarias do establishment cultural.
Intitulado Movimento 342, o distinto grupo de artistas com farta consciência social criou a hashtag “Intervenção é Farsa”, numa tentativa de deslegitimar a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, apoiada, segundo pesquisa Ibope da época, por nada menos que 84% dos cariocas e fluminenses, e especialmente pelos moradores das áreas dominadas pelo tráfico de drogas. Evidentemente, nenhum vídeo havia sido gravado por esses artistas quando, no ano anterior, traficantes instituíram um sistema de revista de moradores da Rocinha, a fim de encontrar delatores. Nenhum quando uma senhora foi torturada por traficantes na favela Kelson’s, na Penha. E nenhum quando a pequena Emily Sofia, de apenas três anos de idade, foi morta a tiros por assaltantes em Anchieta. O sofrimento dessas e de outras tantas pessoas não lhes diz absolutamente nada. Porque esses artistas trocaram os velhos bailes da vida – tediosos, caretas e sem glamour – pelas exclusivas e concorridas baladas da vida, onde, entre mil e uma distrações lisérgicas, dedicam-se a pensar mui corretamente sobre todas as coisas. Empanturrados de verba pública, por óbvio...
Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima