Em coluna publicada há algumas semanas, comentei sobre o incômodo experimentado ao reler o livro Stasilândia: como funcionava a polícia secreta alemã, da jornalista Anna Funder. Escrevi então:
“Eu havia lido Stasilândia uns cinco anos atrás. Mas a releitura de agora suscitou uma impressão totalmente diferente, e deveras angustiante. Apesar de se tratar de um romance-reportagem, na primeira leitura todos os personagens descritos, fossem vítimas ou perpetradores, me eram muito distantes, quase tanto quanto personagens de ficção. Ali, então, a noção de um regime de exceção me era puramente abstrata, de sabor histórico, e a realidade totalitária da Alemanha Oriental parecia pertencer a um outro planeta, um planeta extinto com o qual – pensava inocentemente – eu jamais teria contato. Já não sinto o mesmo relendo a obra da perspectiva do Brasil de 2024. Hoje, os personagens do livro parecem-me muito mais próximos do que eu gostaria, e o ambiente político e social não me soa mais tão alheio.”
Eis que a identificação com os personagens aumentou na noite de ontem, quando me peguei lembrando das pessoas que, após a queda do Muro de Berlim e da abertura dos arquivos da Stasi, se puseram a vasculhar os documentos em busca do seu nome na lista dos espionados, perseguidos, censurados ou prejudicados de algum modo pelo regime. Como se sabe, o Comitê Judiciário da Câmara dos Representantes dos EUA publicou ontem, com o título “O ataque à liberdade de expressão no exterior e o silêncio da administração Biden: o caso do Brasil”, um relatório de 540 páginas contendo as ordens sigilosas de remoção de postagens e perfis por parte do STF e do TSE, material que Elon Musk havia prometido divulgar desde o início de seu embate com Alexandre de Moraes. E o meu nome consta no documento, ali entre as páginas 396 e 405, permitindo-me afinal, quase dois anos depois de aplicação da penalidade, conhecer o teor dos “crimes” de opinião de que fui acusado, e pelos quais, na época, tive o meu perfil no Twitter (hoje X) sumariamente excluído.
Não fosse a circunstância excepcional da divulgação das ordens sigilosas por parte de um órgão estatal estrangeiro, eu continuaria ignorante sobre a razão da minha censura, bem como indefeso ante as pechas injuriosas a mim atribuídas por agentes do Estado brasileiro
Segundo consta no relatório, foram 12 postagens minhas consideradas subversivas, justificativa pela qual, sempre de forma excepcionalíssima, eu deveria ser excluído do debate público concernente ao processo eleitoral de 2022. Dessas 12, apenas 4 são de minha autoria, consistindo as demais apenas em retuítes de postagens de terceiros, sem acréscimo de comentários. São do seguinte teor as quatro postagens: uma delas reproduzia um vídeo-institucional do TSE, na qual uma atriz e porta-voz da corte assegurava a transparência e a confiabilidade do sistema eleitoral. O vídeo fora uma resposta aos questionamentos feitos à época pelo PL, por meio de uma auditoria comandada por engenheiros e técnicos do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), donde o meu comentário: “Porta-voz do TSE garantindo que os técnicos do ITA não sabem o que estão dizendo. Ufa! Agora ficou tudo esclarecido”. A auditoria alegava ter havido irregularidades em 5 dos 6 modelos de urna utilizados no segundo turno das eleições, o que corresponderia a mais da metade dos votos registrados. Recorde-se que, na condição de presidente do TSE, Alexandre de Moraes não apenas se negou a considerar as alegações como ainda multou a coligação PL-PP-Republicanos em R$ 22,9 milhões, por suposta litigância de má fé.
Em outra postagem considerada criminosa, eu me limitava a reproduzir entre aspas, sem comentar, trecho de um editorial de 2009 do jornal New York Times, que dizia: “Urnas eletrônicas que não produzem um registro em papel de cada voto computado não são confiáveis”. Numa outra, eu também reproduzia, sem comentar, a fala da advogada americana Penny M. Venetis, que, em 2004, representou eleitores e candidatos de New Jersey em uma ação judicial contra o processo de votação inteiramente eletrônico. A fala da advogada, também reproduzida à época noutra matéria do NYT, é a seguinte: “É até irônico que essas máquinas, supostamente designadas para resolver os problemas causados por sistemas de votação antiquados, estejam simplesmente tornando invisíveis esses problemas”.
O quarto tuíte motivador da censura consistiu numa crítica à inusitada ida de Luís Roberto Barroso ao Congresso, para pressionar pela não aprovação da PEC do voto auditável, um assunto eminentemente legislativo, no qual um magistrado não deveria se intrometer. Eis o que escrevi: “Muito se fala e se critica (com razão) a ida do Barroso ao Congresso para fazer lobby contra o voto auditável. Mas mais perturbador que o fato em si é pensar na causa. O que poderia ter levado um membro do TSE a se empenhar tanto para que a urna continuasse uma caixa-preta?”
Foram esses, em suma, os tuítes de minha autoria citados como amostra do cometimento de “crime” contra a higidez do processo eleitoral, e que motivaram à época o meu banimento sumário, sem que me fosse dado qualquer direito de contestar. Policiado por um órgão de repressão político-ideológica intitulado Assessoria Especial de Enfrentamento a Desinformação, fui acusado de possuir um perfil “de cunho golpista em rede social, mormente dedicado a postagens que, no contexto de falsas acusações de fraude, incentivam a recusa dos resultados do pleito presidencial e tentam forçar uma intervenção militar”.
Quanto à acusação de “golpista”, trata-se de mera opinião subjetiva do acusador, manifesta em termos que remetem não ao direito, mas à retórica política, tanto assim que o mesmo termo foi recorrentemente usado, por exemplo, pelo campo lulopetista contra os articuladores do impeachment de Dilma Rousseff, contra o presidente Michel Temer e todos a ele associados. Que esse tipo de ofensa política parcial esteja presente numa peça jurídica destinada a retirar direitos fundamentais de um cidadão revela o caráter político e persecutório dos procedimentos ora expostos. Reitero que, ao contrário do que diz a petição de censura, nunca fiz “acusação de fraude”. O que fiz foi apontar, como tantos outros antes de mim, incluindo técnicos e figuras públicas das mais variadas orientações políticas, que o sistema é hostil a auditorias independentes (esse, aliás, foi o argumento do PSDB em 2014), tornando praticamente impossível a identificação de eventuais fraudes. Eis, aliás, o sentido da citação da opinião de uma advogada americana que atuou num processo de questionamento de um sistema integralmente eletrônico, similar ao nosso.
Quanto à acusação de que tentei “forçar uma intervenção militar”, trata-se pura e simplesmente de mentira. Não há nada nas postagens arroladas que sequer sugiram algo do tipo, e o público que me acompanha conhece minha posição a respeito, que é tudo menos militarista. A alegação parece advir de pura especulação imaginativa da autoridade acusadora, baseado na inclusão arbitrária deste escriba num estereótipo coletivo que, mais uma vez, não provém do universo do direito mas o da luta política, onde estigmas depreciativos generalizantes substituem a individualização de condutas.
Ao fim e ao cabo, foi-me vedado o direito e o exercício de cidadania de argumentar em favor do voto impresso auditável e de criticar a condução do processo eleitoral por parte dos servidores públicos responsáveis, os quais, ao contrário do que parecem imaginar, não são donos do processo eleitoral, nem tampouco editores da sociedade. E, não fosse a circunstância excepcional da divulgação das ordens sigilosas por parte de um órgão estatal estrangeiro, eu continuaria ignorante sobre a razão da minha censura, bem como indefeso ante as pechas injuriosas a mim atribuídas, com o auxílio de uma imprensa submissa, por agentes do Estado brasileiro. De resto, deixo ao leitor a conclusão sobre o tipo de regime no qual estamos submersos...
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