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Parodiando Karl Kraus sobre Hitler, digo que nada me ocorre sobre o Brasil. E nada me ocorre não apenas por desgosto diante dos males profundos que hoje consomem o país qual um câncer terminal, deixando tudo o que não sejam as células cancerígenas num estado de mórbida catatonia, à espera resignada do fim. Mas também porque a literatura brasileira, que poderia servir – como diz Northrop Frye de toda literatura – como nosso apocalipse humano, no sentido de autorrevelação cultural, morreu nos anos 1950, talvez se antecipando à morte mesma da nação.
Sem, portanto, poder recorrer à literatura brasileira, e sem ter como vislumbrar o drama nacional contemporâneo representado nas nossas letras, resta-me fazer o que uma pessoa razoavelmente sensata faria nesses momentos: assumir um bovarismo cultural e recorrer à literatura russa – em especial, a Dostoievski, obviamente. No texto do Mestre de Petersburgo, encontramos em abundância o que nos é escasso: as respostas às questões morais, filosóficas e religiosas levantadas pela evolução da ideologia radical durante a vida do escritor, respostas inicialmente positivas (nas obras da década de 1840), e em seguida negativas, sob a forma da mais devastadora crítica antirrevolucionária (nas obras da década de 1860). Como é relativamente consensual na crítica literária, Dostoievski foi, de fato, o cronista insuperável dos dilemas moral-psicológicos da intelligentsia urbana alienada e refratária da Rússia do século 19, com a qual a nossa muito se parece, exceto pelo fato de não termos mais quem a romanceie e – afora o Paulo Briguet – cronique.
Na segunda metade do século 19, muitos leitores europeus já haviam notado uma característica distintiva do romance russo, que a nós tanto faz falta, mesmo entre os nossos escritores de primeira grandeza. Em 1866, por exemplo, o diplomata e crítico francês Visconde Eugène Melchior de Vogüé publicou O Romance Russo, no qual chamou a atenção para a recusa russa em aceitar o niilismo moral como última palavra, uma recusa que contrastava com o determinismo pessimista de um Flaubert ou de um Zola.
Vogüé observava que os mais importantes escritores russos da corrente naturalista, a começar por Gogol, conquanto não evitassem adentrar no sórdido e no degradante, mantinham ainda uma imagem muito mais ampla, e menos cínica, da humanidade. Talvez graças àquele traço ambivalente da alma russa que Nikolai Berdiaev identificou como uma mistura entre o ascetismo de origem cristã ortodoxa e o dionisíaco pagão, o romance russo negava submeter-se a um mundo em que as últimas descobertas (ou teorias) da ciência predominassem sobre as injunções ancestrais da moralidade cristã. Mesmo na literatura inglesa da época, em que a sensibilidade cristã protestante se fazia muito presente nas obras de um Dickens, de uma Jane Austen ou de um George Eliot (pseudônimo de Mary Ann Evans), a religião aparecia aí mais como pano de fundo social. Não se vê nas letras inglesas do período nada comparável à dramatização da Imitatio Christi em personagens como o príncipe Míchkin, de O Idiota, ou Aliócha, de Os Irmãos Karamázov.
Uma das razões para essa peculiaridade literária pode ser o fato de que, antes do século 18, o romance russo praticamente não existia de forma autônoma, sendo as letras no país representadas quase que exclusivamente por hagiografias, traduções de clássicos da antiguidade e, mais tarde, pela imitação de modelos ocidentais. Séculos antes do que se passou na Rússia, por exemplo, na Europa do Renascimento houve todo um esforço artístico para reconciliar o ethos cristão com as demandas da vida secular. Como observou o grande filólogo e crítico literário Erich Auerbach, o realismo literário russo começou tarde, somente na segunda metade do século 19, baseando-se num conceito cristão tradicional da dignidade de cada ser humano, independentemente de sua posição social, e, portanto, “fundamentalmente relacionado mais ao antigo cristianismo do que ao realismo ocidental moderno”. Portanto, a literatura russa deslanchou tardiamente, tendo demorado a, em vez de se manter meramente imitativa, ser capaz de adaptar as formas importadas às realidades russas.
O pioneirismo de Pushkin nesse processo de conquista da autonomia literária é inquestionável. Não por acaso, o seu grande poema narrativo Eugene Onegin é considerado por muitos como o primeiro grande romance russo. Embora fosse um dos autores mais familiarizados com a literatura europeia, Pushkin jamais deixou que essa influência se sobrepusesse ao elemento ortodoxo em sua arte, manifesto, por exemplo, no caráter da heroína Tatiana Larina, que dá origem a uma série inteira de figuras femininas semelhantes (influenciando, por exemplo, na criação da personagem Sônia de Crime e Castigo), e cujo ato final consiste no autossacrifício em prol de um voto matrimonial. Muito embora não haja nada de especificamente religioso na recusa de Tatiana às investidas de seu antigo enamorado, Pushkin relaciona-a ao efeito, sobre a sensibilidade da jovem, do contato com a babá camponesa, cujos valores eram os de uma tradição religiosa russa impregnada de reverência pelo autossacrifício de Cristo.
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Compreende-se o tamanho da admiração que o jovem Fiódor Dostoievski sentia por Pushkin, tão intensa que, diz-se, ao saber da morte do poeta em um duelo, no ano de 1837, Fiódor disse à família que, se já não estivesse de luto por sua mãe, o teria feito em memória do poeta. Afinal, o autossacrifício cristão é um tema dostoievskiano típico. Mas não só dele. O impacto existencial da religiosidade camponesa sobre a personalidade dos representantes das classes altas educadas (motivo que, de algum modo, remete ao Bildungsroman alemão) também é tematizado por Tolstoi, em figuras como o Platão Karataev de Guerra e Paz – cuja resignação em face das vicissitudes da vida persuade o herói Pierre Bezukhov a aceitar com tranquilidade, quando não mesmo alegria, todos os golpes do destino – e o Konstantin Levin de Anna Karenina, cuja vida é transformada e levada à conversão depois de ouvir os camponeses falarem de Deus, enquanto ceifa o feno junto com eles.
Esses são apenas alguns exemplos de como os efeitos desintegradores da cultura ocidental imposta desde fora, e assimilada pela classe alta educada na Rússia, entram em conflito com a – e acabam por ceder à – sensibilidade religiosa absorvida do onipresente mundo camponês. Como nenhum outro, Dostoievski expressou esse conflito em seus grandes romances, dramatizando-os de modo inigualável. Seu gênio consiste especialmente na habilidade de retratar as consequências morais e psicológicas dessas ideias em seus personagens principais. As circunstâncias angustiantes de sua vida, incluindo seus quatro anos em um campo de prisioneiros, também lhe permitiram retratar esses conflitos abrangendo tanto as alturas quanto as profundezas da ordem social russa. E são essas circunstâncias angustiantes que, também no Brasil, onde o abismo entre uma intelligentsia ultrassecularista e um povo majoritariamente cristão nunca foi tão grande, talvez possam um dia, quem sabe, fazer renascer a nossa literatura. Por enquanto, só contamos com Deus... E com as crônicas de Paulo Briguet.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos