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Como vimos no artigo anterior, o jornalista Pedro Dória valeu-se de uma encíclica do papa Pio XII (ou, em sua versão, XVII) como argumento de autoridade para afirmar uma compatibilidade inequívoca e pacificada entre o darwinismo e a fé católica. Fazendo uma leitura seletiva da Humani Generis (supondo que chegou a consultá-la), o jornalista esqueceu de mencionar, por exemplo, trechos como esse: “Uns admitem sem discrição nem prudência o sistema evolucionista, que até no próprio campo das ciências naturais não foi ainda indiscutivelmente provado, pretendendo que se deve estendê-lo à origem de todas as coisas”.
Ou esse: “Dessa hipótese se valem os comunistas para defender e propagar seu materialismo dialético e arrancar das almas toda noção de Deus. As falsas afirmações de semelhante evolucionismo pelas quais se rechaça tudo o que é absoluto, firme e imutável, vieram abrir o caminho a uma moderna pseudofilosofia que, em concorrência contra o idealismo, o imanentismo e o pragmatismo, foi denominada existencialismo, porque nega as essências imutáveis das coisas e não se preocupa mais senão com a ‘existência’ de cada uma delas”.
Ou esse outro: “O magistério da Igreja não proíbe que, nas investigações e disputas entre homens doutos de ambos os campos, se trate da doutrina do evolucionismo, que busca a origem do corpo humano em matéria viva preexistente (pois a fé nos obriga a reter que as almas são diretamente criadas por Deus)… Porém, certas pessoas ultrapassam com temerária audácia essa liberdade de discussão, agindo como se a própria origem do corpo humano a partir de matéria viva preexistente fosse já certa e absolutamente demonstrada pelos indícios até agora achados e pelos raciocínios neles baseados, e como se nada houvesse nas fontes da revelação que exigisse a máxima moderação e cautela nessa matéria”.
A partir do século 19, os bem-pensantes fizeram com Darwin aquilo que, no século 18, os iluministas haviam feito com Newton
Resumindo, ali onde Pedro Dória viu endosso puro e simples, há, na verdade, uma complexa abertura do espírito que, por óbvio, não dispensa o ceticismo e a prudência.
Pio XII alertava particularmente para a tendência intelectual de inflacionar metafisicamente a teoria da evolução das espécies, convertendo-a numa cosmovisão total, e extraindo-lhe implicações filosóficas, religiosas e políticas que, em si mesma, ela jamais poderia suscitar. Pois, a partir do século 19, os bem-pensantes fizeram com Darwin aquilo que, no século 18, os iluministas haviam feito com Newton: mobilizar e popularizar suas ideias, conferindo-lhes um sentido ampliado, e usando-a como martelo contra a tradição religiosa de seu tempo.
Embora tendo como base a biologia evolucionista de Darwin, o darwinismo rompeu-lhe os limites, transformando-se numa das mais poderosas ideologias da era contemporânea, ideologia que, diferente de uma teoria científica, não pode ser questionada ou profanada com dúvidas impertinentes. Toda análise sobre o darwinismo deve, portanto, começar por separar o que há nele de ciência e o que há de metafísica e pseudorreligiosidade. O artigo de hoje será dedicado ao primeiro aspecto, ele próprio já demasiado complexo e controverso.
Para começar, o próprio termo “darwinismo” designa um vasto conglomerado de ideias e sentimentos que, apesar de haver surgido com Darwin, ultrapassa em muito a sua pessoa e a simples noção de evolução biológica. Trata-se de expressão de sentido eminentemente histórico, pois a biologia evolucionista transformou-se tanto desde a publicação de A Origem das Espécies, tomando inclusive direções opostas às da teoria original, que o recurso à palavra “darwinismo” para caracterizá-la equivale ao emprego de “copernicanismo” para se referir à cosmologia contemporânea.
Pio XII havia intuído corretamente. Quando o assunto é apenas a ciência da evolução, e como é natural em toda teoria científica, a hipótese original de Darwin deixou buracos, expôs-se a questionamentos importantes e sofreu reveses imprevistos (como, por exemplo, o retorno do lamarckismo, que parecia ter sido enterrado definitivamente por Darwin, mas que, hoje, a epigenética ressuscita).
Stricto sensu, o livro A Origem das Espécies não versa sobre a origem das espécies, mas sobre processos adaptativos que atuam sobre espécies já originadas. Como escreve o biólogo e matemático Brian Goodwin no livro How the Leopard Changed Its Spots: “A origem das espécies – o problema de Darwin – permanece sem solução”.
Toda análise sobre o darwinismo deve, portanto, começar por separar o que há nele de ciência e o que há de metafísica e pseudorreligiosidade
No que tem de propriamente científica – ou seja, sujeita à experimentação empírica –, a teoria da evolução das espécies consiste na análise da seleção natural operando ao nível intraespecífico, como no famoso caso das variações observadas na forma dos bicos dos tentilhões das ilhas Galápagos – o melhor registro empírico da seleção natural, mas que, todavia, não parece dar conta da variação interespecífica.
Em si mesma, a observação de variações adaptativas no interior de uma espécie (ou mesmo dentro de um gênero) não fornece evidências empíricas para a hipótese mais geral da teoria da evolução, a saber: a de que, por exemplo, um protozoário ou uma ameba possa, com o passar do tempo, ter originado um ser humano por meio da seleção natural. Ao contrário do que ocorre com a lei da gravidade ou a teoria da relatividade, não é possível observar o princípio da seleção natural operando nesse nível, a partir do qual, portanto, a teoria da evolução depende de “uma certeza sobre coisas que se esperam, uma convicção naquilo que não se vê” – que, como se sabe, é a definição bíblica de fé (Hebreus 11,1).
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Naturalmente restrito ao “laboratório” de Galápagos, o que Darwin fez foi supor logicamente que, dada a ordem de grandeza temporal com que trabalha a natureza, microvariações tal como as observadas nos tentilhões teriam redundado, mui gradativa e lentamente, em macrovariações como as que separam um protozoário de um ser humano. É o que, em A Origem das Espécies, recebe o nome de “princípio de divergência”.
Trata-se, indubitavelmente, de uma bela hipótese científica. Para que pudesse gozar de plena verificação empírica, contudo, seria preciso ilustrá-la com registros fósseis das formas intermediárias entre as espécies (que, em tese, deveriam ocorrer em número ilimitado). Só que, ao tempo de Darwin, o registro fóssil era bastante precário.
A certa altura de A Origem das Espécies, o naturalista inglês admite que a ausência de formas intermediárias nos estratos geológicos é a “mais óbvia e grave objeção” à sua teoria. Acreditava, contudo, que o problema resultasse da “extrema imperfeição” dos registros fósseis de então, e esperava que o avanço da pesquisa científica fosse resolvê-lo. Ocorre que o incremento posterior do registro fóssil não melhorou a situação. O que se tem, ainda hoje, são fósseis que fazem súbitas aparições no estrato geológico e que persistem inalterados por muito tempo.
O registro da evolução continua surpreendentemente errático e, ironicamente, dispomos inclusive de menos exemplos de transição evolutiva do que na época de Darwin
Em 1930, o paleontólogo David M. Raup, curador do Field Museum of Natural History e professor da Universidade de Chicago, já afirmava em texto publicado no boletim do museu: “Já se passaram mais de 120 anos desde Darwin, e o conhecimento do registro fóssil expandiu-se consideravelmente. Contamos agora com 250 mil espécies fossilizadas, mas a situação não mudou muito. O registro da evolução continua surpreendentemente errático e, ironicamente, dispomos inclusive de menos exemplos de transição evolutiva do que na época de Darwin. E isso porque alguns dos exemplos darwinistas clássicos de mudança, como o da evolução do cavalo na América do Norte, tiveram de ser descartados graças a informações mais detalhadas. Aquilo que, na ausência relativa de dados, aparentava ser uma simples progressão hoje revela-se muito mais complexo e menos gradualista. Portanto, o problema de Darwin não parece ter melhorado nesses 120 anos, e temos ainda um registro fóssil que, sim, sugere mudança, mas de um tipo dificilmente descrito como consequência razoável da seleção natural”.
Nos anos 1990, essa também continuava sendo opinião de muitos biólogos, a exemplo dos americanos Scott F. Gilbert, John M. Opitz e Rudolf A. Raff. Em artigo que recapitula o legado da assim chamada “moderna síntese” ou “síntese neodarwiniana” (a combinação entre a teoria de Darwin e os desenvolvimentos da genética mendeliana e da genética de populações), os autores afirmam: “A síntese moderna é uma conquista notável. No entanto, já a partir dos anos 1970, vários biólogos começaram a questionar a sua pertinência em explicar a evolução. A genética pode ser adequada para explicar a microevolução, mas mudanças microevolutivas na frequência genética não parecem capazes de transformar um réptil num mamífero ou um peixe num anfíbio. A microevolução responde apenas por adaptações concernentes à sobrevivência dos mais aptos, não ao surgimento dos mais aptos”.
Muitos darwinistas acreditaram ter encontrado formas evolutivas intermediárias em criaturas como o Archaeopteryx (“asa ancestral”), o suposto elo perdido entre os répteis e as aves, mas foram, mais tarde, desencantados pela paleontologia. Descobriu-se posteriormente que o animal não tinha nada de intermediário, não passando de uma espécie já extinta de pássaro. Por essas e outras, paleontólogos como Stephen Jay Gould e Niles Eldredge questionaram o pressuposto darwinista do gradualismo morfológico, propondo como alternativa a hipótese do “equilíbrio pontuado”.
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Contrariando a célebre máxima que Darwin incorporou de Leibniz – Natura non facit saltus (“a natureza não dá saltos”) –, os autores insistiram que as espécies dão, sim, saltos evolutivos. Inspirados nas formulações do geneticista alemão Richard B. Goldschmidt – para quem “o primeiro pássaro eclodiu de um ovo de réptil” –, Gould e Eldredge propuseram que as espécies não surgem gradualmente via transformação constante de seus ancestrais, mas de uma vez por todas, já plenamente formadas. Sobre a questão das formas intermediárias, afirmam: “Ao nível superior da transição evolutiva entre tipos morfológicos, o gradualismo sempre esteve encrencado, embora permaneça sendo a posição ‘oficial’ da maioria dos evolucionistas. Transições suaves no plano corporal são quase impossíveis de encontrar, mesmo em experimentos mentais. E, certamente, deles não há evidência no registro fóssil (mosaicos curiosos como o Archaeopteryx não contam)”.
Na ausência de registros fósseis que pudessem dar testemunho da seleção natural, Darwin recorreu a uma analogia com métodos de seleção artificial utilizados por criadores de animais e plantas a fim de aperfeiçoar as variedades domesticadas. Escreveu ele em sua Magnum opus: “Por mais lento possa ser o processo de seleção, se o homem consegue fazer muito com as suas capacidades limitadas de seleção artificial, não vejo limite para o grau de mudança, nem para a beleza e a infinita complexidade das co-adaptações entre os seres orgânicos, que o poder de seleção da natureza pode efetuar num longo período de tempo”.
A analogia de Darwin é problemática porque, justamente, criadores de plantas e animais domésticos empregam a inteligência e o conhecimento técnico para selecionar os espécimes destinados à reprodução e protegê-los dos perigos naturais. Se o objetivo da teoria era mostrar que processos naturais espontâneos, destituídos de todo propósito aparente, forneciam explicação mais verdadeira que a noção de criação ex nihilo por parte de algum tipo de inteligência superior, o exemplo da seleção artificial não poderia ser mais inadequado.
Para Darwin as causas das mutações sempre foram menos importantes que o fato de haver mutações
Ademais, como nota o biofísico Cornelius Hunter: “Quem tenha alguma familiaridade com a criação de animais sabe dos limites das técnicas reprodutivas. Pode-se reproduzir alguns traços, mas apenas até certo ponto”. Ou seja, o material genético limita a extensão das variações. Um criador de cães pode ser capaz de obter várias novas raças de cães, mas nunca um camelo ou um elefante. Imaginar que isso se dá apenas por uma questão de escala temporal parece ser puro wishful thinking.
O reconhecido geneticista Israel Michael Lerner, especialista na reprodução de aves de capoeira da Universidade de Berkeley (Califórnia), questionou o neodarwinismo justo nesse aspecto, ou seja, na sugestão de que as espécies não resistem à mudança genética. Se assim fosse, o desenvolvimento posterior da ciência deveria ter comprovado que mudanças genéticas intraespecíficas podem levar ao surgimento de uma nova espécie. Mas as descobertas da genética moderna demonstraram precisamente o contrário: em lugar de caracterizadas por uma inequívoca fluidez, as espécies parecem resistir consideravelmente à mudança, exibindo o que Lerner chamou de homeostase genética – uma notável estabilidade que, aliás, parece corroborar o registro fóssil.
Outro aspecto que a teoria da evolução original deixou em aberto foram as causas das variações. Darwin nunca se preocupou em explicar as razões das inovações morfológicas sobre as quais – e tão somente após as quais – a ação de uma pretensa “lei” da seleção natural pode fazer sentido. O processo que ele chamou de “descendência por modificação” – ideia inspirada na obra do geólogo belga Jean Baptiste Julien d’Omalius d’Halloy (1783-1875) – configura mais um pressuposto que uma evidência da teoria.
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Com efeito, para Darwin as causas das mutações sempre foram menos importantes que o fato de haver mutações. Com a síntese neodarwiniana, surgiu a esse respeito a noção de “mutações aleatórias”, com o que já nos afastamos do paradigma inicial da seleção natural, pois os conceitos de aleatoriedade ou acaso são o exato oposto de uma “lei natural”, que depende, ao contrário, de alguma regularidade e previsibilidade.
Se as variações ocorrem espontaneamente, significa que são livres ou indeterminadas. Mas a genética contemporânea sugere que o mecanismo da variação não tem nada de indeterminado. As variações biológicas decorrem de uma complexa maquinaria molecular no interior da célula. Ali onde Darwin e os primeiros evolucionistas visualizaram simplesmente uma espécie de força aleatória, constata-se hoje uma intricada máquina mendeliana por trás das variações. Portanto, a pergunta resiste: como surgem as variações?
Alguns neodarwinistas sustentam que a própria evolução criou o mecanismo que as governa. Ou seja, a evolução teria produzido uma máquina perfeitamente desenhada, que, por sua vez, funciona como o seu próprio motor. É tautológico: sem variação, a seleção natural não faria sentido. Mas foi a seleção natural quem criou justo aquilo de que precisava para agir: uma fonte de variação.
O princípio de divergência não pode ser observado empiricamente, apenas deduzido por analogia
Tautologias similares não são incomuns na teoria evolucionista. Alguns eminentes neodarwinistas são os primeiros a admitir que o conceito de seleção natural é um modo de dizer a mesma coisa duas vezes: a teoria prevê que os organismos mais aptos gerarão mais descendentes, e define os organismos mais aptos como... aqueles que produzem mais descendentes! J.B.S. Haldane disse: “A expressão ‘sobrevivência do mais apto’ tem algo de tautológico. Mas não há mal em dizer a mesma verdade de formas diferentes”. E Ernst Mayr: “os indivíduos que têm mais descendentes são, por definição, os mais aptos”.
Dizer a mesma coisa duas vezes, todavia, não resolve o problema da origem das espécies (ou seja, da macroevolução). Como dissemos, o princípio de divergência não pode ser observado empiricamente, apenas deduzido por analogia. Portanto, em termos propriamente científicos, a teoria evolucionista – como é próprio das teorias científicas – não é infalível. O fato de, apesar das tantas metamorfoses por que passou ao longo do tempo, o darwinismo continuar sendo tratado como um símbolo unificado da razão científica pura não se explica por razões de ordem científica, mas por razões de ordem ideológica.
E se, como veremos no próximo artigo, a biologia evolutiva pode, sim, ser compatibilizada com a doutrina católica (como, aliás, já afirmaram Pio XII, João Paulo II e Bento XVI), o mesmo não se diga do darwinismo enquanto movimento intelectual de massa. Mas esse é um assunto para a semana que vem.