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Apesar das súplicas dos pais, justiça francesa decidiu que Vincent Lambert deve morrer.
Apesar das súplicas dos pais, justiça francesa decidiu que Vincent Lambert deve morrer.| Foto: Reprodução/ Facebook

“Vós sois amados por Deus, sois os seus santos eleitos. Por isso, revesti-vos de sincera misericórdia, bondade, humildade, mansidão e paciência.” (Colossenses 3,12)

“Os ímpios galileus cuidam não apenas dos seus pobres, mas também dos nossos. E é vergonhoso que estes sejam privados da nossa assistência.” (Imperador Juliano, “o Apóstata”, 360 d. C.)

“A nossa civilização ocidental bebeu nas fontes da compaixão cristã, de onde extraiu o seu senso de dever, para alimentar os famintos, dar de beber aos que têm sede, abrigar os sem teto, vestir os desnudos, cuidar dos doentes e visitar os prisioneiros.” (Carlton J. H. Hayes, Christianity and Western Civilization)

No último dia 11, morreu Vincent Lambert. Tetraplégico após um grave acidente de carro, mas não de todo inconsciente apesar das lesões cerebrais sofridas, padecia havia mais de uma década num leito hospitalar, até que, por fim, o Estado francês julgasse descartável a sua vida. Ao fim de uma longa batalha nos tribunais – que opôs a mulher (favorável à interrupção dos cuidados vitais) e os pais do paciente (contrários) –, a Justiça permitiu que o hospital retirasse as sondas de hidratação e alimentação que o mantinham vivo. Uma vez que a eutanásia ativa é legalmente proibida na França, a solução foi sedá-lo e matá-lo lentamente, por desnutrição e desidratação.

A morte (ou, se preferirem, o assassinato) de Lambert coroa o profundo processo de descristianização por que passou a Europa, em geral, e a França, em particular. Ela marca a recusa formal de um princípio moral introduzido na história pelo cristianismo: a ideia de que, por ser um dom divino, toda vida humana é sagrada, não obstante as diferenças entre os homens. Hoje tido por autoevidente, esse princípio moral era inconcebível, quando não escandaloso, no mundo antigo. E, pelo que se vê de casos como o de Lambert (poderíamos lembrar também os de Charlie Gard e Alfie Evans), continua insustentável fora de uma matriz cultural cristã.

É preciso lembrar que, no universo moral pagão, incluindo aí o mundo greco-romano, era perfeitamente comum e esperado que os mais pobres, fracos ou doentes (em especial crianças, mulheres e idosos) fossem tratados com um desprezo que hoje nos pareceria absurdo. Basta consultar a literatura clássica para notar que práticas como o infanticídio e o abandono de velhos, doentes e malformados eram moralmente sancionadas até mesmo pelos mais justos dentre os pensadores gregos e romanos. Em A República, por exemplo, Platão afirma que “a medicina e a jurisprudência cuidarão apenas dos cidadãos bem formados de corpo e alma, deixando morrer os que forem corporalmente defeituosos”, e que isso seria melhor “tanto para esses desgraçados como para a cidade em que vivem”. Em Das Leis, Cícero recorre às Doze Tábuas do direito romano para justificar o infanticídio de crianças deformadas. E, em Sobre a Ira, Sêneca admite: “Nós sufocamos os pequenos monstros; nós afogamos até mesmo as crianças quando nascem defeituosas e anormais: não é a cólera e sim a razão que nos convida a separar os elementos sãos dos indivíduos nocivos”.

Práticas como o infanticídio e o abandono de velhos, doentes e malformados eram moralmente sancionadas até mesmo pelos mais justos dentre os pensadores gregos e romanos

Por seu combate intransigente à tradição sacrificial pagã de descarte de vidas humanas tidas por inferiores (Cristo morrera na cruz para pôr um fim definitivo aos sacrifícios), o cristianismo provocou escândalo em Roma. Depois do saque da cidade pelos visigodos, em 410, muitos pensadores romanos passaram a culpar a adoção oficial da religião cristã pela decadência do império (o que, aliás, motivou Santo Agostinho a escrever A Cidade de Deus, a primeira grande resposta apologética a essa acusação). Desde então, teve início uma longa tradição intelectual de crítica ao cristianismo por sua pretensa tibieza e aversão às glórias e conquistas mundanas, notadamente as militares. Essa tradição crítica, que começa na Antiguidade Clássica, prolonga-se por toda a Idade Moderna, manifestando-se como uma espécie de nostalgia do paganismo, e tendo sempre como alvo principal a noção cristã de sacralidade da vida humana.

Já no início do século 16, por exemplo, Maquiavel escrevia em Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio: “Quando se considera que os povos da antiguidade amavam a liberdade mais que os da nossa época, parece-me que a razão é a mesma que explica por que hoje os homens são menos robustos – o que se relaciona, a meu juízo, com a diferença entre a nossa educação e a dos antigos, e a diferença, igualmente grande, entre a nossa religião e a dos antigos”.

Elogiando os espetaculosos sacrifícios religiosos pagãos, cuja força estética o comovia, o pensador florentino acrescentava: “Com efeito, nossa religião, mostrando a verdade e o caminho único para a salvação, diminuiu o valor das honras deste mundo. Os pagãos, pelo contrário, que perseguiam a glória (considerada o bem supremo), empenhavam-se com dedicação em tudo o que lhes permitisse alcançá-la. Vê-se indícios disto em muitas das antigas instituições, a começar pelos sacrifícios, esplendorosos em comparação com os nossos, bastante modestos, e cujo rito, mais piedoso que brilhante, nada oferece de cruel capaz de excitar a coragem”.

E prosseguia: “A pompa das cerimônias antigas era igual à sua magnificência. Havia sacrifícios bárbaros e sangrentos, nos quais muitos animais eram degolados; e a visão reiterada de um espetáculo tão cruel endurecia os homens. As religiões antigas, por outro lado, só atribuíam honras divinas aos mortais tocados pela glória mundana, como os capitães famosos, ou chefes de Estado. Nossa religião, ao contrário, só santifica os humildes, os homens inclinados à contemplação, e não à vida ativa. Para ela, o bem supremo é a humildade, o desprezo pelas coisas do mundo. Já os pagãos davam a máxima importância à grandeza d’alma, ao vigor do corpo, a tudo, enfim, que contribuísse para tornar os homens robustos e corajosos… Parece que esta moral nova tornou os homens mais fracos, entregando o mundo à audácia dos celerados”.

Nossas convicções: A dignidade da pessoa humana

Nossas convicções: Defesa da vida desde a concepção

Temos aí, antecipado, o tema da “moralidade de escravos”, pelo qual Nietzsche descreveu o cristianismo, um tema que, antes dele, e depois de Maquiavel, já havia sido formulado por Rousseau. Em O Contrato Social, por exemplo, lemos que “o cristianismo prega somente servidão e dependência. Seu espírito é bastante favorável à tirania para que esta não se sirva com frequência dele. Os verdadeiros cristãos são feitos para serem escravos”. Já em Emílio, temos a valorização explícita da espécie humana em detrimento do indivíduo, uma ideia frontalmente contrária à moralidade cristã: “Para impedir que a compaixão se degenere em fraqueza, é preciso generalizá-la, estendê-la a todo o gênero humano. Deve-se, portanto, e por amor a nós mesmos, ter compaixão para com a nossa espécie mais do que para com o nosso próximo”.

Com Nietzsche (que, ao lado de Dostoievski, foi quem melhor percebeu as consequências de um mundo descristianizado), o cristianismo é rejeitado de maneira ainda mais dramática, e justo naquilo que tem de mais distintivo: o seu código moral. Em A Vontade de Poder, o filósofo retoma a valorização rousseuaniana da espécie sobre o indivíduo, fazendo uma defesa apaixonada da lógica sacrificial pagã, agora expressa num vocabulário darwinista: “Pelo fato de que o cristianismo empurra para o primeiro plano a doutrina do desinteresse e do amor, ele ainda não postulou, de modo algum, o interesse da espécie como um valor mais alto que o interesse individual... O indivíduo isolado foi tomado, com o cristianismo, de modo tão importante, posto de modo tão absoluto, que não se podia mais sacrificá-lo: mas a espécie só existe por meio do sacrifício humano… Todas as ‘almas’ seriam iguais perante Deus: mas esta é justamente a mais perigosa de todas as possíveis valorações! Equiparam-se os indivíduos, e assim põe-se em dúvida a espécie, favorece-se uma práxis que chega a ser a ruína da espécie: o cristianismo é o contraprincípio oposto à seleção. Se o degenerado e doente (‘o cristão’) deve ter tanto valor quanto o saudável (‘o pagão’), ou mesmo ainda mais, segundo o parecer de Pascal sobre saúde e doença, então o curso natural de desenvolvimento acha-se invertido, e a não natureza tornou-se lei… Esse amor universal aos homens é, na prática, a prerrogativa de todos os sofredores, malsucedidos e degenerados: ela, de fato, arruinou e amorteceu a força, a responsabilidade, o alto dever de sacrificar homens... A espécie tem necessidade do ocaso dos falhados, fracos e degenerados: mas o cristianismo recorre justamente a eles como potência conservadora, e esta faz aumentar ainda mais aquele instinto dos fracos, em si mesmo já tão potente, de se pouparem, se conservarem e de se manterem reciprocamente. O que é a ‘virtude’ e o ‘amor humano’ no cristianismo senão precisamente essa reciprocidade da conservação, essa solidariedade dos fracos, esse impedimento à seleção? O que é o altruísmo cristão senão o egoísmo das massas de fracos, o qual adivinha que, se todos cuidarem uns dos outros, cada um se conservará o máximo possível?… Se não se sente uma tal mentalidade como uma extrema imoralidade, como um crime contra a vida, é porque se pertence à parte doente e se possuem os seus instintos... O autêntico amor humano exige o sacrifício para o máximo bem da espécie – ele é duro, ele é uma plena autossuperação, pois precisa do sacrifício humano. E essa pseudo-humanidade, que se chama cristianismo, quer justamente conseguir que ninguém seja sacrificado”.

Sabemos bem as terríveis consequências que, dali a algumas décadas, esse elogio do sacrifício e da “vitalidade” pagã teriam na terra natal de Nietzsche. E, se talvez seja injusto atribuir ao filósofo a responsabilidade direta pelo surgimento do nazismo, é inegável que esse tipo de texto nos ajuda a compreender suas raízes culturais e intelectuais. Como sugere René Girard em Eu via Satanás cair como um relâmpago: “Se existe uma essência espiritual do movimento nazista, ela é expressa por Nietzsche”.

Com efeito, o próprio Adolf Hitler manifestava em relação ao cristianismo desprezo similar. Albert Speer, ex-ministro do Armamento do Reich, registrou no seu livro de memórias as opiniões do Führer sobre o tema: “Veja você que o nosso azar foi ter a religião errada” – dizia Hitler. “Por que não tivemos a religião dos japoneses, que consideram o sacrifício pela pátria como o bem supremo? Também a religião maometana nos seria muito mais compatível. Por que tinha de ser o cristianismo, com a sua humildade e frouxidão?”.

Com Nietzsche, o cristianismo é rejeitado de maneira ainda mais dramática, e justo naquilo que tem de mais distintivo: o seu código moral

Traudl Junge, a última secretária de Hitler, também apontou esse seu pendor sacrificial, nietzschiano e anticristão: “Às vezes tínhamos interessantes discussões sobre a Igreja e o desenvolvimento da raça humana. Na verdade, chamá-las de discussões é um exagero, porque ele começava a explicar suas ideias quando um de nós fazia alguma pergunta ou comentário, e apenas ouvíamos. Ele não era membro de nenhuma igreja, e achava que as religiões cristãs eram instituições ultrapassadas e hipócritas, que atraíam as pessoas como uma isca. Sua religião eram as leis da natureza. O seu dogma de violência combinava mais com a natureza do que com a doutrina cristã do amor ao próximo e ao inimigo. ‘A ciência ainda não é clara sobre as origens da humanidade’, disse certa vez. ‘Estamos provavelmente no estágio mais avançado de algum mamífero que, evoluindo a partir dos répteis, prosseguiu até os seres humanos, talvez via os macacos. Somos parte da criação e filhos da natureza, e as mesmas leis se aplicam a nós bem como a todas as criaturas vivas. Na natureza, a lei da luta pela sobrevivência se impôs desde o início. Tudo o que é mal adaptado à vida, tudo o que é fraco, é eliminado. Apenas a humanidade, e sobretudo as igrejas, se dedicaram a manter vivos os fracos, os mal adaptados, as pessoas de uma espécie inferior’”.

Mas não é preciso remontar a situações extremas como a do nazismo para encontrarmos manifestações de recusa ao princípio cristão da sacralidade universal da vida humana. A lógica sacrificial pagã – pela qual a lei do mais forte é consagrada, e pela qual se admite, tácita ou abertamente, a eliminação de indivíduos humanos tidos por mais fracos, incapazes ou desajustados – ressurge de tempos em tempos no debate público ocidental, especialmente por parte da intelligentsia dita progressista.

Vejamos o caso do escritor britânico Bernard Shaw, um dos pais fundadores da social-democracia. No prefácio à sua peça On the Rocks – escrita em 1933, justo o ano em que os nazistas chegaram ao poder na Alemanha –, ele escarnece da sacralidade da vida humana, fazendo um apelo ao “extermínio científico” de indivíduos socialmente indesejados.

Noutra ocasião, discursando ao público, Shaw teceu comentários sobre o que chamava de “parasitas sociais”, membros da burguesia europeia: “Todos devem conhecer no mínimo um punhado de pessoas sem utilidade neste mundo, que trazem mais problemas do que benefícios. Convém reuni-las e dizer-lhes: ‘Meu senhor, ou minha senhora, você é capaz de justificar sua existência? Se não for capaz, se não estiver se esforçando, se não produz tanto quanto consome (ou talvez mais), então não podemos usar a vasta organização de nossa sociedade para mantê-lo vivo, porque a sua vida não nos beneficia, e não deve mesmo ser de grande valia nem para você”.

Se, na antiguidade pagã, os mais fracos eram sacrificados no altar de deuses como Moloch, hoje o são no altar do Estado iluminista moderno

Em 1934, em entrevista ao jornal The Listener, e como que antecipando o uso do Zyklon B nas câmaras de gás nazistas, ele suplicou aos químicos que descobrissem, para fins seletivos, “um gás humano – mortal, decerto, mas humano, não cruel”. Segundo ele, o Estado deveria ser firme na política referente aos elementos criminosos e geneticamente degenerados da sociedade. “Com muitos pedidos de desculpas e expressões de simpatia, assim como alguma generosidade na satisfação de seus últimos desejos, deveríamos colocá-los nas câmaras letais e livrarmo-nos deles”.

Mais recentemente, o mesmo discurso eugênico e sacrificial foi adotado pelo biólogo e militante ateísta Richard Dawkins, ao sugerir, em resposta a uma leitora que lhe trazia um dilema moral, o aborto de bebês com síndrome de Down. “Aborte-o e tente de novo. Seria imoral trazê-lo ao mundo se você tem uma escolha”, recomendou o catedrático de Oxford com extrema naturalidade, como se falasse do descarte de uma mercadoria indesejada.

Pode-se objetar haver uma grande diferença entre a posição de Shaw e a de Dawkins, uma vez que a primeira diz respeito a pessoas adultas, enquanto a segunda tem por objeto fetos no útero materno. Mas, do ponto de vista da lógica sacrificial subjacente, para a qual a condição humana torna-se mera questão de arbítrio dos mais fortes (os já nascidos, os saudáveis, os bem adaptados etc.), a distinção é insignificante. Prova disso é a facilidade com que alguns "bem pensantes" contemporâneos passaram da apologia ao aborto à aceitação do infanticídio (renomeado eufemisticamente de “aborto pós-nascimento”), com base num argumento de inegável coerência, a saber: o estatuto moral de um bebê seria equivalente ao de um feto, carecendo ambos de propriedades que lhes garantam a condição de pessoa, e que, portanto, justifiquem o seu direito absoluto à vida. Bebês e fetos não seriam pessoas atuais, mas apenas potenciais, dizem os juízes da humanidade alheia, a exemplo dos filósofos Alberto Giublini e Francesca Minerva, especialistas em bioética e autores de um artigo intitulado “Aborto pós-nascimento: por que o bebê deveria viver?”, publicado em março de 2012 no Journal of Medical Ethics.

A morte de Vincent Lambert é, em suma, o triunfo de toda essa mentalidade sacrificial pré- (ou anti-) cristã, o triunfo da visão de mundo de homens como Maquiavel, Rousseau, Nietzsche, Hitler, Shaw e Dawkins, para os quais a vida humana não é um direito natural e inalienável, mas uma concessão estatal a ser distribuída seletivamente pelos donos do poder. Se, na antiguidade pagã, os mais fracos eram sacrificados no altar de deuses como Moloch, hoje o são no altar do Estado iluminista moderno, essa divindade ciumenta e sempre ávida pela fumaça dos holocaustos. Entre o monstro e a sua vítima sacrificial, o cristianismo continua sendo, como o foi no passado, o único e último obstáculo.

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