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“Numa patocracia, indivíduos com transtornos de personalidade ocupam as posições mais elevadas na hierarquia do poder.” (Andrew Lobaczewski, Ponerologia: Psicopatas no Poder)
Nas modernas ciências da alma, é bastante consolidada a ideia de que existe uma região psíquica evitada pelos homens, um local recôndito e misterioso que permanece adormecido qual um vulcão inativo. É o que, classicamente, Freud chamou de “inconsciente” e que Carl Gustav Jung, referindo-se particularmente à autoimagem do indivíduo, denominou de “sombra”. Trata-se do depósito subterrâneo de tudo aquilo que preferimos não admitir sobre nós mesmos – desejos, impulsos destrutivos, ressentimentos, inseguranças, vaidades feridas etc. Quando não enfrentados, esses conteúdos não se dissipam; apenas aguardam, decantados, a ocasião de emergir sob formas distorcidas.
Se admitirmos como verdadeiro o princípio antropológico estabelecido por Platão há 2,5 mil anos – segundo o qual “a pólis é o homem escrito em letras maiúsculas” (A República, 368c-d) –, essa dimensão da psique individual também se aplica, mutatis mutandis, à política. Instituições, embora adornadas por linguagem jurídica e símbolos de autoridade, não escapam dessa dinâmica. Também elas constroem uma persona – o rosto virtuoso, público e higienizado – que só se sustenta pela expulsão compulsória de tudo o que ameaça contradizê-la.
Nenhuma persona resiste por muito tempo à contemplação da própria sombra no espelho. E, para Alexandre de Moraes, esse espelho atende pelo nome de Jair Bolsonaro
É justamente aqui que, inspirado no princípio platônico (e recusando a cisão maquiavélica entre alma individual e alma estatal), o psiquiatra polonês Andrew Lobaczewski fornece uma chave de leitura relevante para a compreensão da política moderna. Como ele mostra em Ponerologia: Psicopatas no Poder, sistemas políticos inteiros podem ser progressivamente capturados por indivíduos cuja estrutura psicológica é empobrecida, incapaz de empatia genuína e inclinada à manipulação e ao controle. Uma vez instalada, essa elite “ponerogênica” (do grego poneros, “mal”, e genesis, “origem”) passa a usar o aparato estatal para projetar sua própria sombra no exterior, sempre sobre inimigos cuidadosamente escolhidos, que acabam vítimas de perseguição permanente.
A história oferece um exemplo quase didático: a perseguição movida por Stalin contra Trotski. Muito além de disputas doutrinárias, havia ali um conflito entre persona e sombra. Trotski encarnava precisamente aquilo que Stalin temia não possuir: talento intelectual, prestígio internacional, magnetismo político e ousadia estratégica. Como mostram biógrafos de Trotski como Isaac Deutscher, Robert Service e Leonardo Padura, o processo stalinista que começou com isolamento, passou pela difamação e culminou no exílio e no assassinato não tinha por objetivo apenas eliminar um rival. Para Stalin, tratava-se de um ritual de expiação – uma tentativa desesperada de calar a voz íntima que, projetada no adversário, denunciava sua própria fraqueza.
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Nos últimos anos, o Brasil testemunha uma versão juridicamente ornada da mesma lógica. Em torno de Alexandre de Moraes ergueu-se uma persona luminosíssima: o guardião infalível da democracia, celebrado por colunistas, reverenciado por corporações, protegido por uma aura de impecabilidade e higidez institucional. Mas nenhuma persona resiste por muito tempo à contemplação da própria sombra no espelho. E, para o sancionado de toga, esse espelho atende pelo nome de Jair Bolsonaro.
Apesar de seus defeitos demasiado humanos – ou justamente por causa deles –, Bolsonaro carrega uma força política que desestabiliza a narrativa alexandrina. Simetricamente inverso ao sancionado, é popular, carismático e imprevisível, recordando ao sistema que a legitimidade do poder reside na representatividade orgânica, não na imposição artificial das vontades de uma casta burocrática pretensamente iluminada. A percepção desse contraste basta para que a sombra institucional, reprimida e acumulada, busque um hospedeiro externo. De repente, tudo aquilo que a persona togada não admite em si – autoritarismo, ódio, inadequação e desejo de vingança – é projetado sobre o ex-presidente, convertido em “inimigo da democracia” por uma necessidade psicopolítica.
A leitura de Lobaczewski ajuda a compreender o fenômeno. Regimes constituídos por elites mentalmente corrompidas precisam de adversários permanentes para manter coesão interna. A repressão teatral – intimações hospitalares, buscas cinematográficas, vigilância clandestina, prisões desproporcionais, tortura e exibicionismo penal – não exprime autoridade, mas medo. Quando um sistema inteiro precisa reencenar diariamente a própria força, é porque teme que sua legitimidade exista apenas enquanto houver um bode expiatório disponível.
Tudo aquilo que a persona togada não admite em si – autoritarismo, ódio, inadequação e desejo de vingança – é projetado sobre o ex-presidente, convertido em “inimigo da democracia” por uma necessidade psicopolítica
O trágico é que toda a sociedade paga o preço desse processo. Quando magistrados começam a acreditar que são encarnações vivas da Constituição; quando o Estado assume o papel de tutor moral; quando o direito deixa de limitar o poder e passa a funcionar como instrumento de purificação política – então a sombra coletiva cresce a ponto de tudo devorar. Já não há instituição que escape ao destino de se tornar um mero petisco para saciar a fome metafísica do Leviatã no divã.
Stalin não se libertou de sua sombra ao assassinar Trotski; apenas eternizou sua miséria interior na história, deixando um rastro conhecido de destruição e infâmia. Da mesma forma, transformar Bolsonaro em inimigo metafísico diz menos sobre ele do que sobre o regime que necessita fabricá-lo para manter sua ilusão de pureza.
Nenhuma sombra desaparece com a destruição do objeto sobre o qual se projeta. Quando o perseguidor confunde sua psicopatologia com a razão de Estado, a tragédia social deixa de ser possibilidade e se torna fato consumado.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




