Como muitos leitores tenham se interessado pelo tema do último artigo, o da análise de Eric Voegelin sobre as “religiões políticas”, e como o tema me pareça candente no mundo e no Brasil contemporâneos, penso ser interessante escrever um pouco mais sobre o contexto político e intelectual no qual se deu a reflexão do filósofo alemão. As interpretações de Voegelin, embora bastante originais e fruto de uma abrangência incomum, não surgiram do nada, e mantiveram diálogo com outros intelectuais atentos ao mesmo fenômeno.
De fato, quando, no século 20, os movimentos totalitários chegaram ao poder na Europa, a singularidade de suas instituições-chave – a célula do partido, a unidade paramilitar e a organização “de fachada” – logo chamou a atenção dos estudiosos mais perspicazes. Mas isso não foi tudo o que os críticos notaram. As formações totalitárias eram caracterizadas por doutrinas peculiares que pareciam transcender a política de poder tradicional ou os anseios nacionalistas familiares.
Comunistas e nacional-socialistas prometiam uma sociedade radicalmente transformada, resgatada da contaminação estrangeira ou da exploração de classe. Prometendo, ademais, o expurgo do mal e da injustiça no mundo, acabaram criando um Novo Homem (ou “anti-homem”, diria Nelson Rodrigues) talhado para uma nova era. Consagrando seus projetos com símbolos carregados de emoção, festivais, cerimônias e rituais, líderes como Stalin e Hitler projetaram-se como invencíveis, envolvendo seus feitos numa aura de onisciência dogmática. Seus seguidores respondiam com devoção fanática, justificando atos de violência e terror mediante o apelo aos poderes superiores do destino ou da história. Não por acaso, Carl Schmitt, o filósofo nazista, afirmou celebremente que “todos os conceitos relevantes da teoria moderna do Estado são conceitos teológicos secularizados”.
Assim é que, nos anos 1930, vendo nos recém-surgidos movimentos totalitários de massa o corolário do processo de redivinização do Estado iniciado na Renascença (ainda em trajes cristãos) e levado ao estado da arte pela Revolução Francesa (já com roupagem secularista e anticristã), vários intelectuais europeus começaram a abordar os fenômenos políticos seus contemporâneos a partir de noções como as de “religião política” (ligada especialmente ao nome de Voegelin) e “religião secular” (conceito usualmente associado a Raymond Aron).
O Estado totalitário é possessivo, exigindo uma devoção completa e exclusiva. Daí sua necessidade de penetrar no domínio religioso, a única área da vida social usualmente mantida fora do alcance da política
O escritor expressionista Franz Werfel – que, na bacia das almas, conseguiria escapar com a mulher Alma Mahler do regime nazista – foi um dos primeiros a chamar atenção para o aspecto religioso dos movimentos políticos de massa do século 20. Numa série de palestras proferidas na Alemanha em 1932, o romancista, poeta e dramaturgo descreveu o comunismo e o nazismo como “substitutos da religião” e, mais precisamente, como “formas de crenças que, mais que meros ideias políticos, funcionam como substitutos antirreligiosos para a religião”. Atraído pelo catolicismo romano, Werfel logo percebeu o elemento radicalmente anticristão das religiões políticas emergentes.
Na esteira de Werfel, surgiram interpretações equivalentes do jornalista anglo-alemão Frederick Voigt, da historiadora austríaca Lucie Varga, do jornalista católico alemão Fritz Gerlich, do roteirista húngaro Rene Fulop-Miller, do teólogo protestante Reinhold Niebuhr, do cientista político e exilado russo-judeu Waldemar Gurian, do historiador britânico Christopher Dawson, do padre e político católico italiano Luigi Sturzo, do historiador judeu Jacob L. Talmon, do historiador britânico Norman Cohn, do filósofo judeu-alemão Ernst Cassirer e, obviamente, entre outros mais, de Voegelin e Aron. Cada um a seu modo, e de maneira mais ou menos sistemática, todos formularam críticas contundentes ao culto contemporâneo da classe, do Estado, da raça e da nação.
Em 1935, por exemplo, o grande historiador britânico publicou A Religião e o Estado Moderno, livro no qual observou a política contemporânea como replicadora das pretensões absolutistas da religião, invadindo áreas cada vez mais amplas e profundas da vida no âmbito político, ao mesmo tempo em que lhe restringia a dimensão privada. Assim como uma igreja, o comunismo e o nacional-socialismo despertaram o entusiasmo histérico e o sentimentalismo em massa, enquanto ditavam moralidade, gosto e valores, definindo os significados últimos da vida. Diferentemente de uma igreja, tentaram suprimir a própria religião, empurrando o cristianismo para o papel de defensor da democracia e do pluralismo. Nas palavras de Dawson:
“Essa determinação de fundar Jerusalém aqui e agora é a própria força responsável pela intolerância e violência da nova ordem política. [...] Se acreditamos que o Reino dos Céus pode ser estabelecido por medidas políticas ou econômicas – ou seja, que ele pode ser um Estado terreno –, dificilmente poderemos objetar às pretensões de um tal Estado de abarcar toda a vida e exigir total submissão da vontade e consciência individuais. [...] Da perspectiva católica, há um erro fundamental em tudo isso. Esse erro é ignorar o Pecado Original e suas consequências ou, antes, identificar a Queda com algum arranjo político ou econômico defeituoso. Como se, uma vez destruídos o sistema capitalista, o poder dos banqueiros ou dos judeus, tudo no jardim seria maravilhoso.”
Aproximadamente na mesma época da publicação do livro de Dawson, após ser transferido para Paris pouco antes da ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, o correspondente internacional Frederick Voigt – que se havia tornado um conservador burkeano, e que se destacara ao denunciar o envolvimento de Trotsky no complô soviético para rearmar sigilosamente a Alemanha no período pós-Versalhes – começou a trabalhar num livro notável, que viria a ser publicado em 1938 com o título Unto Caesar, e do qual pinço a seguinte passagem:
“Referimo-nos ao marxismo e ao nacional-socialismo como religiões seculares. Eles não são opostos, mas fundamentalmente semelhantes, tanto em sentido religioso quanto secular. Ambos são messiânicos e socialistas. Ambos rejeitam o conhecimento cristão de que todos estão sob o pecado e ambos extraem princípios de classe e raça da oposição entre bem e mal. Ambos são despóticos em seus métodos e mentalidade. Ambos entronizaram o César moderno, o homem coletivo, o inimigo implacável da alma individual. Ambos renderiam a este César as coisas que são de Deus. Ambos fariam do homem mestre de seu próprio destino, estabeleceriam o Reino dos Céus neste mundo. Nenhum ouvirá falar de qualquer Reino que não seja deste mundo.”
Também em 1938, um ferrenho opositor do fascismo de Mussolini, o padre e político católico Luigi Sturzo, fundador do Partido Popular Italiano e um dos primeiros teóricos do totalitarismo, publicou o livro Política e Moral, sua obra mais bem-acabada, na qual apresenta de maneira estruturada a sua visão sobre o Estado totalitário moderno. Sturzo sugere aí que, mais do que o consentimento temporário de certas parcelas da população, o Estado totalitário é possessivo, exigindo uma devoção completa e exclusiva. Daí sua necessidade de penetrar no domínio religioso, a única área da vida social usualmente mantida fora do alcance da política, mas que, no entanto, proporciona a estabilidade e a permanência almejadas pelo regime. Nas palavras de Sturzo:
“O Estado totalitário, por sua própria natureza, tende a superar os limites observados até então. Todos devem ter fé no novo Estado e aprender a amá-lo. Nenhuma voz contrária, nenhuma voz dissidente. Desde a escola primária até a universidade, não se pratica apenas o conformismo emocional; busca-se também uma subordinação intelectual e moral completa, um entusiasmo confiante, a devoção mística de uma religião. Bolchevismo, Fascismo e Nacional Socialismo são religiões e devem ser religiões. Para criar esse estado de alma [stato de l’animo], apenas a escola já não é suficiente. Em vez disso, são necessários outros meios: o livro do Estado, o jornal estatizado e centralizado, cinema, rádio, esporte. Tudo isso não é apenas controlado, mas direcionado a um objetivo: o culto do Estado, sob o signo da nação, da raça, da classe.”
A característica fundamental de um regime totalitário é a crença numa Weltanschauung (cosmovisão total) à qual todos devem aderir
Também desenvolvendo nos anos 1930 as suas reflexões sobre – e o seu embate existencial contra – os totalitarismos comunista e nazifascista, destacou-se o cientista político russo-alemão Waldemar Gurian. Desde cedo, Gurian reconheceu paralelos significativos nas estruturas políticas da Alemanha nazista, da Itália fascista e da União Soviética. Para ele, as semelhanças não estavam apenas nas práticas de governo desses regimes, mas nos objetivos comuns de preencher uma sociedade desorientada e desencantada com um sentido artificial. Em sua marcante análise sobre o bolchevismo no livro O Bolchevismo: Introdução à sua história e doutrina, Gurian discerniu nesse regime a proposta de uma “completa politização e socialização do ser humano”, cujo objetivo era promover a “absolutização do mundo social secular”. Mais tarde, esses elementos estariam presentes em sua definição geral de totalitarismo.
Quanto ao nacional-socialismo, Gurian enxergou-o inicialmente como sintoma e parte de um novo nacionalismo, marcado pela “elevação do político e do social à condição de poderes que determinam e sustentam tudo”. O fenômeno era marca registrada da ideia de “Estado total”, muito discutida na Europa às vésperas da ascensão de Hitler ao poder na Alemanha. De maneira polêmica, antes mesmo de chegar à ideia abrangente de totalitarismo, Gurian ampliou o sentido do termo “bolchevismo” para abarcar o próprio nacional-socialismo. Essa caracterização é de 1935, em artigo publicado na revista Deutsche Briefe, que Gurian fundou e editou no exílio na Suíça. Embora o conteúdo específico do artigo consistisse num embate contra o regime de Hitler, a caracterização do bolchevismo antecipava a definição guriana de totalitarismo, entendido como “uma certa atitude básica em relação a todas as questões da sociedade”, bem como por um domínio irrestrito e ideologicamente justificado do partido. “Em ambos os movimentos” – escreve Gurian –, “procede-se a autodeificação do ser humano e de sua obra”.
Também em 1935, Gurian publica O Bolchevismo como Ameaça Mundial, em que dá prosseguimento a essa interpretação. Ele define o bolchevismo como um novo tipo de governo fundado na crença em uma preeminência absoluta da sociedade, bem como na exclusividade do partido único em representar essa sociedade. Detectando o mesmo tipo de modelo político na Alemanha nacional-socialista, Gurian estabeleceu uma comparação de longo alcance entre os dois sistemas totalitários.
Durante esse período, graças às circunstâncias históricas e políticas de seu entorno, Gurian escrevia com urgência, intranquilidade e senso de alerta, num estilo que misturava a análise intelectual com a necessidade de denunciar um perigo existencial imediato, não apenas para a Europa, mas também, pessoalmente, para ele próprio. A partir de 1937, quando se exila nos EUA e passa a lecionar na Universidade de Notre Dame (Indiana), Gurian encontra circunstâncias mais seguras, estáveis e propícias ao aprofundamento de sua investigação sobre o totalitarismo.
Esse novo ambiente intelectual resultou em trabalhos como A Filosofia do Estado Totalitário e As Religiões Totalitárias, nos quais o autor sistematizava as suas ideias sobre a dimensão religiosa do fenômeno totalitário. Nesse último ensaio, por exemplo, aquilo que já havia sido reconhecido anteriormente é reafirmado com firmeza: os movimentos totalitários surgidos desde a Primeira Guerra Mundial são religiosos em sua base, porque não surgiram com o objetivo restrito de mudar instituições políticas e sociais, mas, afirmando encarnar o conhecimento verdadeiro sobre a realidade e o sentido da história, transformar a própria natureza humana.
Distinguindo-o do autoritarismo tradicional, cujo objetivo se restringe à instituição de um Estado forte, Gurian afirma que o totalitarismo não enxerga o Estado forte como meta, mas como meio. A característica fundamental de um regime totalitário é a crença numa Weltanschauung (cosmovisão total) à qual todos devem aderir, de modo que tudo o que não se lhe corresponda deva ser inexoravelmente extirpado – se não na realidade, ao menos na consciência dos indivíduos. Nos regimes totalitários, diz Gurian, “a ordem de Deus é substituída por uma ordem feita pelo homem, uma ordem artificial exigida pela doutrina e criada pelo poder exercido em seu nome”. Daí que o conflito do regime totalitário com a Igreja tradicional seja inevitável. Porque, ao contradizer o conteúdo das religiões totalitárias, a Igreja representa um desafio intolerável. Portanto, as religiões políticas seriam a forma totalitária do secularismo. Nos regimes comunista e nazista, diz Gurian:
“Os líderes são deificados; as reuniões públicas em massa são consideradas e celebradas como ações sagradas; a história do movimento torna-se a história da salvação, que os inimigos e traidores tentam impedir da mesma forma que o diabo tenta minar e destruir o trabalho daqueles que estão a serviço da Cidade de Deus. Não há apenas fórmulas e rituais sagrados, mas também crenças dogmáticas, imposição de obediência absoluta e condenação dos hereges em nome da verdade absoluta, autoritariamente determinada pelos líderes do movimento... Claro, os movimentos totalitários são religiões secularizadas. Eles não têm crenças em uma realidade transcendente além deste mundo, além do poder político e da ordem social. Deus é abertamente negado.”
Em março de 1953, um ano antes de morrer, Gurian fez sua última contribuição ao tema com uma palestra proferida na Academia Americana de Artes e Ciências. Na ocasião, o intelectual exilado apontou a inversão promovida pelos regimes totalitários (agora também por ele chamados de “ideocracias”) em relação à função religiosa tradicional. Enquanto, segundo uma observação de Montesquieu, a religião tradicional impedia o detentor do poder de exercê-lo de modo irrestrito, os regimes totalitários faziam da religião a força motriz do novo despotismo. A tensão entre religião e poder era eliminada, sendo substituída por uma unidade dinâmica composta por ambos. A religião totalitária reivindicava o lugar que a religião tradicional costumava ocupar na vida do ser humano.
O estudo das “religiões políticas”, longe de uma curiosidade intelectual do passado, continua mais urgente do que nunca, tanto quanto era para os opositores dos regimes totalitários do passado
Diante da análise de Gurian sobre o totalitarismo, é impossível não lembrar da definição de Antonio Gramsci sobre a natureza do partido comunista, por ele chamado, à luz de Maquiavel, de “o moderno príncipe”. Disse Gramsci:
“O moderno príncipe, desenvolvendo-se, subverte todo o sistema de relações intelectuais e morais, na medida em que o seu desenvolvimento significa de fato que cada ato é concebido como útil ou prejudicial, como virtuoso ou criminoso, mas só na medida em que tem como ponto de referência o próprio moderno Príncipe e serve para acentuar o seu poder, ou contrastá-lo. O Príncipe toma o lugar, nas consciências, da divindade ou do imperativo categórico, torna-se a base de um laicismo moderno e de uma laicização completa de toda a vida e de todas as relações de costume.”
E, se por acaso o autor julgou totalitária essa definição, pode estar certo que o juízo é acertado. Pois foi o próprio Gramsci – pai intelectual do presente regime lulopetista que comanda o Brasil – quem o admitiu no primeiro volume dos seus Cadernos do Cárcere: “O materialismo histórico, por isso, terá ou poderá ter esta função não só totalitária como concepção do mundo, mas totalitária na medida em que atingirá toda a sociedade a partir de suas raízes mais profundas.”
Vê-se que o estudo das “religiões políticas”, longe de uma curiosidade intelectual do passado, continua mais urgente do que nunca, tanto quanto era para os opositores dos regimes totalitários do passado.
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