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Flávio Gordon

Flávio Gordon

Sua arma contra a corrupção da inteligência. Coluna atualizada às quartas-feiras

Absolutismo à brasileira

Do “Cave ne cadas” ao “Sois rei”

A nova presidente do TSE, ministra Cármen Lúcia, entre o presidente Lula e o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, durante sua cerimônia de posse. (Foto: Alejandro Zambrana/Secom/TSE)

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O “Triunfo” era uma das mais solenes cerimônias da antiga Roma e a principal honraria concedida aos generais vitoriosos. Trajando púrpura e ostentando uma coroa de louros na cabeça, o triunfador era conduzido por uma magnífica quadriga, carro puxado por quatro cavalos brancos. Precedido por senadores, rodeado por parentes e amigos, seguido por todo o seu exército e aclamado por um grande número de cidadãos, o general vitorioso era conduzido com pompa e circunstância até o Capitólio Romano. À sua frente, eram exibidos os despojos dos inimigos vencidos, bem como os reis e os chefes do inimigo, devidamente acorrentados e subjugados. Às suas costas, se arrastavam as vítimas que deveriam morrer em sacrifício a Júpiter e honra do Império. Tudo na cerimônia induzia à soberba e à húbris, fazendo do triunfador romano a própria encarnação do deus.

Mas, posto que terrificantes, as instituições antigas não deixavam de ser sábias. Tanto que, para atenuar a sensação de onipotência que um tão deslumbrante aparato cerimonial pudesse infundir ao triunfador, um escravo especialmente designado lhe acompanhava no carro, contrapondo as aclamações da multidão com uma voz solitária de alerta, com a qual transmitia mensagens satíricas e pouco lisonjeiras, bem como exortações a que, por assim dizer, o triunfador baixasse a bola. “Lembra-te que és homem”, gritava ele ao vitorioso, acrescendo a fórmula verbal que deu nome à instituição: “Cave ne cadas!” (“Cuidado para não caíres!”). Repetindo-a incessantemente, o escravo fazia lembrar ao general romano de sua natureza mortal, para que a embriaguez do poder não o fizesse desabar.

Nos últimos anos, os triunfadores da alta magistratura não cessaram de celebrar suas vitórias político-ideológicas, exibir em triunfo os inimigos derrotados e humilhar pelo menos metade da sociedade brasileira com a ostentação de seu poder sem freios e contrapesos – poder esse que, hoje mesmo, acaba de produzir novas vítimas, os presos políticos do 8 de janeiro, dentre eles pais e mães de família, bem como avôs e avós, sem antecedentes criminais e sem acesso a um devido processo legal, e assim mesmo arrancados de casa, como se terroristas armados fossem, por supostos agentes da lei munidos de fuzis. Ao contrário dos generais romanos, esses militantes em corpo de magistrados jamais tiveram quem lhes dirigisse um cave ne cadas. A imprensa, que deveria vigiar e contrapor o seu poder, tudo lhes cedeu em nome de uma pretensa “defesa da democracia” contra uma fantasiosa “ tentativa de golpe de Estado”. Em lugar de lhes frear a húbris, só o que fez foi alimentá-la, tornando-a gulosa e insaciável.

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Isso ajuda a explicar a autoimagem exacerbada, indulgente e delirante da juristocracia nacional, manifesta em seus recorrentes discursos políticos e panfletos de autocongratulação. Tudo se passa como se, no carro, junto aos triunfadores, se lhes acompanhassem escravos de um tipo bem diferente, tipos à la Daniela Lima, Reinaldo Azevedo, Natuza Nery, Mônica Bergamo ou Andrea Sadi, os quais, ao contrário do cave ne cadas, lhes repetem com voz melosa, como ao reizinho de Jô Soares: “Sois rei! Sois rei! Sois rei!”

De fato, sentindo-se um reizinho, no dia de sua posse na presidência do TSE, Alexandre de Moraes proferiu um discurso político radicalizado em defesa de si próprio e dos companheiros de tribunal contra os “ataques” dos críticos ao infalível, insofismável, imaculado e inolvidável sistema eleitoral brasileiro. Com uma versão atualizada do célebre dito de Luís XVI, o político de toga por pouco não exclamou “La démocratie c’est moi”. Dois anos depois, sua sucessora, Cármen Lúcia – fundadora do “Estado Excepcionalíssimo de Direito” –, seguiu a mesma toada, tomando a cadeira da presidência do tribunal como palanque, e proferindo toda sorte de impropérios, slogans, chavões de DCE e palavras de ordem contra o que identifica como seus inimigos políticos. E o fez a tal ponto que até um jornal sem convicções e espinha dorsal como o Estadão – que, até então, tudo fez para legitimar esse estado de coisas e permitir que supostos juízes falem abertamente como militantes de extrema esquerda –, achou exagerado.

Mas, na ausência de um cave ne cadas, que no Brasil contemporâneo foi trocado pelos coloridos pompons das cheerleaders de redação, talvez a própria queda venha a ensinar uma lição tardia. Porque, a despeito de toda a propaganda e de toda a autocongratulação histerioforme, parece que o público não está tão entusiasmado com o espetáculo triunfal. Segundo pesquisa recente do Poder Data, por exemplo, a avaliação positiva do STF despencou de 31% para 14%. Haja queda! Isso quer dizer que, enquanto na província dos estúdios e das redações a porcentagem de simpáticos ao STF talvez seja maior que 90%, ela é de apenas 14% na população brasileira em geral. Desse jeito, os grandes idealizadores do espetáculo, os Soros e Omidyares, terão de multiplicar seus cursos de formação de escravos-bajuladores e exigir que os Reinaldos, as Danielas, as Natuzas e as Mônicas agitem com mais força os seus pompons e gritem ainda mais alto: “Sois rei! Sois rei! Sois rei!”.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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