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“Perguntemo-nos se nossa agitação febril e assustadora não passa da ânsia voraz de um homem faminto em busca de alimento.” (Friedrich Nietzsche, O Nascimento da Tragédia)
Publicado logo após os atentados de 11 de setembro de 2001, Dostoïevski à Manhattan marca um dos momentos culminantes da reflexão de André Glucksmann sobre o mal e a violência no mundo contemporâneo. Herdeiro direto da tradição dos nouveaux philosophes – grupo de intelectuais franceses surgido nos anos 1970 em reação à ortodoxia marxista e ao totalitarismo soviético –, Glucksmann já havia dedicado grande parte de sua obra a denunciar as justificações ideológicas da barbárie. Em livros como La cuisinière et le mangeur d’hommes (1975) e Les Maîtres penseurs (1977), propôs-se a rastrear, na filosofia ocidental, as raízes racionais do genocídio moderno. Em Dostoïevski à Manhattan, porém, o inimigo já não é o totalitarismo burocrático do século 20, mas a dissolução niilista do século 21.
A tragédia de 11 de setembro é definida pelo autor como uma reviravolta histórica, um ponto de inflexão simbólico. Ao contrário das leituras políticas dominantes, Glucksmann recusa ver os atentados apenas como “choque de civilizações”, “retaliação anti-imperialista” ou “resposta à hegemonia americana”. Para ele, o terrorismo islâmico é apenas a forma histórica assumida por algo mais profundo e universal: o niilismo triunfante, o ódio à própria existência. Daí a referência a Dostoiévski, o primeiro a antever as consequências destrutivas de um mundo esvaziado de sentido.
Assim, o terrorista do século 21 aparece, em Glucksmann, como a caricatura final do “homem sem Deus”: aquele que busca transcendência por meio do aniquilamento. Diferentemente da famosa interpretação de Huntington, o pensador francês demonstra que a suposta “guerra entre civilizações” é, na verdade, uma guerra dentro da civilização. Em Dostoïevski à Manhattan, a queda das torres não é apenas o colapso de um símbolo americano. É a imagem visível do desmoronamento interior do Ocidente.
Para André Glucksmann, o terrorismo islâmico é apenas a forma histórica assumida por algo mais profundo e universal: o niilismo triunfante, o ódio à própria existência
A tese de Glucksmann afirma que, a despeito da retórica antiocidental dos agentes da Al-Qaeda, o terrorismo islâmico é menos “islâmico” do que seus autores gostariam de acreditar. Seus líderes e ideólogos beberam, de fato, nas velhas fontes da crítica ocidental ao Ocidente. Como observa o cientista político Barry Cooper: “As semelhanças estruturais entre movimentos que, de resto, pouco têm em comum sugerem que o terrorismo contemporâneo nada mais é que uma espécie de sectarismo revolucionário, ideológico e moderno”. E, como levou ainda mais longe John Gray: “Se Osama bin Laden tem um precursor, este é Sergei Netchaiev, o terrorista russo do século 19”.
Foi por isso que, em uma coluna de 2021 – duas décadas após o atentado às Torres Gêmeas –, insisti nas influências ocidentais de Sayyid Qutb, o arquiteto intelectual da jihad contemporânea. Escrevi então:
“Na condição de figura emergente da Irmandade Muçulmana, em 1948 Qutb foi estudar nos EUA, na University of Northern Colorado, onde obteve o título de mestre em Educação. De modo algo similar ao de pensadores ocidentais modernos como Rousseau, Freud, Marcuse e Foucault, o jovem egípcio tornou-se crítico veemente da decadência espiritual e moral do Ocidente, que via como uma espécie de doença contagiosa – jahiliyyah – um conceito corânico originalmente relativo ao estado de ignorância e afastamento de Deus próprio da humanidade anterior à revelação de Maomé, mas que Qutb politizou e imanentizou com notável radicalidade.”
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O atentado ao World Trade Center foi cometido por um grupo profundamente inspirado nas ideias do patriarca intelectual da Irmandade Muçulmana. Osama bin Laden, herdeiro de Qutb, fabricou uma ideologia híbrida, na qual se mesclavam elementos tradicionais do fundamentalismo islâmico e uma retórica herdada da política identitária e vitimista da contracultura ocidental.
Também em 2021 – mais precisamente na véspera do 20.º aniversário do atentado em Nova York –, o jornalista britânico Brendan O’Neill publicou na Spiked o artigo “Quando a política de vitimização se tornou violenta”, no qual sugere que o 11 de Setembro foi um ato de identitarismo apocalíptico, uma espécie de wokeísmo avant la lettre. Nas suas palavras: “Em muitos aspectos, Bin Laden foi tanto um produto do Ocidente – e, em particular, de sua política de queixas – quanto seu mais temido inimigo terrorista. Seu reinado de terror pode ser visto como uma manifestação violenta do que desde então passou a ser conhecido como wokeness.”
O’Neill argumenta que a Al-Qaeda – e, em especial, seu líder – não era alheia aos modismos intelectuais do Ocidente. Ao contrário, deixava-se influenciar avidamente por eles, sobretudo pelos gurus radicais e pensadores da Nova Esquerda acadêmica. É verdade que os discursos de Bin Laden vinham revestidos de retórica islâmica, cheios de referências à Irmandade Muçulmana e a ideólogos jihadistas. Mas, por baixo da roupagem religiosa, havia algo notavelmente ocidental: citações entusiasmadas de Robert Fisk e Noam Chomsky, ecos de teorias conspiratórias da extrema-esquerda euroamericana, lamentos sobre o aquecimento global e diatribes contra a “mídia hegemônica” e as “corporações vampíricas”.
Para O’Neill, Bin Laden foi um reciclador ideológico, um catador de ideias que adaptava, com agudo senso de oportunismo, as angústias e os slogans da moda woke. Em cada nova proclamação, revelava não apenas fanatismo religioso, mas também o desejo de alinhar a causa jihadista às neuroses morais do Ocidente moderno – revestindo de indignação global aquilo que, em essência, era um projeto de vingança teocrática.
A eleição de Zohran Mamdani em Nova York parece consagrar – e encarnar politicamente – a velha aliança entre niilismo e islamismo, entre jihadismo e wokeísmo
Apoiando-se nas análises do intelectual indo-canadense Faisal Devji, O’Neill mostra que, assim como outros movimentos contemporâneos, a Al-Qaeda expressa uma visão de mundo pós-nacional, moldada por uma sensibilidade deliberadamente globalista. Eis por que, mais de duas décadas após o 11 de Setembro, sua conclusão soa tão precisa:
“O terrorismo islâmico surge como uma manifestação violenta da cultura da vitimização. Parece-me uma função – ou, pelo menos, um produto – da ideologia do multiculturalismo, do próprio cultivo ocidental do separatismo religioso e étnico e do convite ao ódio antiocidental que o multiculturalismo implicitamente faz a certas comunidades... O niilismo islâmico é uma espécie de política de identidade nesse sentido. É o identitarismo que se tornou apocalipticamente violento. É a autoaversão do Ocidente voltada contra o Ocidente, de forma sangrenta.”
A eleição de Zohran Mamdani para prefeito de Nova York parece consagrar – e encarnar politicamente – essa velha aliança entre niilismo e islamismo, entre jihadismo e wokeísmo. Se o jihadismo contemporâneo nasce, em parte, de uma filtragem corânica das filosofias revolucionárias do Ocidente – ou, para falar simbolicamente, do casamento entre o Corão e O Capital –, nada mais natural que a cidade-vítima escolha por líder um marxista islâmico. À destruição física de Manhattan segue-se, mais de duas décadas depois, sua destruição cultural e espiritual. E, posto que ardendo eternamente no mármore do inferno, Qutb sorri de canto de boca.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




