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Flavio Morgenstern

Flavio Morgenstern

Caso Filipe Martins

A Polícia Federal misturou Stalin com Loucademia de Polícia

PF prende Filipe Martins por uma viagem que não fez; surrealismo jurídico e perseguição política expõem absurdos no Brasil atual. (Foto: Arthur Max/Ministério das Relações Exteriores)

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O ministro Alexandre de Moraes (sempre ele, quem mais seria?) pediu à Polícia Federal que explicasse a não-viagem não-realizada por Filipe Martins, ex-assessor de Bolsonaro, que “justificou” sua prisão preventiva.

O delegado Fábio Shor (sempre ele, quem mais seria?) respondeu com a mais brilhante peça do surrealismo jurídico desde… Adão e Eva, provavelmente.

Segundo Fábio Shor, a Polícia Federal tinha fortes indícios de que Filipe Martins, de fato, teria ido para os Estados Unidos, e seu paradeiro era “desconhecido”.

Em um país normal, seria igualmente normal lembrar que ir para os Estados Unidos e Moraes e Shor não saberem em que quarteirão você está não é crime; pelo contrário, é o normal da vida, a última tendência em países livres, uma demonstração de que agentes do Estado não devem nos monitorar, saber a que horas vamos ao banheiro, o que estamos falando, com quem, ou a cor de nossas roupas íntimas etc. Mas há algo ainda mais podre no Reino do Xandaquistão.

A preocupação em saber o “paradeiro” (note-se o vocabulário) de Filipe Martins, como se Moraes, Shor ou quem quer que fosse tivesse o direito — talvez o dever — de saber nosso “paradeiro”, advém de uma coluna do jornalista Guilherme Amado, então no Metrópoles. Amado (sic) escrevera: “Investigado, ex-assessor de Bolsonaro foi a Orlando em 2022 e evaporou”. Depois, trocou a chamada para “Investigado, Martins teve entrada registrada nos EUA e depois evaporou”.

Até o governo americano já admitiu que Filipe Martins não pisara mais nos EUA desde 2021. Mas, caso tivesse ido para os EUA e “evaporado”, que relação teria tal fato com a Polícia Federal, Moraes, Shor, Amado ou quem quer que fosse? Mesmo chamando-o de “investigado” (nunca se sabe, já que todos os processos importantes do Brasil hoje são secretos, e apenas alguns jornalistas selecionados a dedo descobrem quem é investigado ou não), ir aos EUA não é crime. “Evaporar” nos EUA não é da alçada da PF (ou do Amado). E pior… Filipe Martins nem isso fez.

Por que a PF teria de usar uma “reportagem” de Guilherme Amado como fonte para algo perigoso (sim, ela foi citada no processo)? O mesmo Guilherme Amado, posteriormente, escreveu que um registro do governo americano dava conta de que, sim, Filipe Martins havia entrado nos EUA.

O documento, i-94, não é oficial e não tem valor legal. Pior: acessar o i-94 de terceiros é crime federal nos EUA, ensejando penas de pelo menos 12 anos. Por que Amado insistiria tanto na viagem? Os EUA sabem que Guilherme Amado acessou o i-94 de Filipe Martins?

Mas este é apenas o prólogo.

De acordo com Fábio Shor, em resposta a Alexandre de Moraes (sempre eles, sempre juntos, uma bela amizade), a não-viagem seria problemática porque Filipe Martins estaria “provavelmente” (estes advérbios têm sido citados com extrema frequência) fugindo às “consequências penais”.

De qual crime? Bom, do 8 de janeiro (sempre essa data). Mas o 8 de janeiro foi em 2023, e a não-viagem de Martins, em 30 de dezembro de 2022. Logo, como Filipe Martins estaria viajando com 10 dias de antecedência para fugir às consequências de uma suposta tentativa de golpe de Estado frustrada?

Como no filme Minority Report, no qual pessoas são punidas por futuros crimes que poderiam vir a cometer antes de cometê-los, aqui a viagem só seria suspeita se… veja bem… respire fundo e tente ler num fôlego só: se 8 de janeiro fosse mesmo uma tentativa de golpe frustrada — ou seja, se não houve porcaria de “golpe violento contra o Estado democrático de direito” nenhum, se fosse só uma baderna aleatória, uma violência niilista sem sentido e objetivo, e se as autoridades que se dizem “golpeadas” não sofressem golpe nenhum, continuassem em seus cargos com todo o poder absoluto em mãos, impávidos e colossos, e resolvessem perseguir Filipe Martins mesmo assim.

Aí sim faria algum “sentido” dizer que Filipe estaria fugindo em dezembro das “consequências” de uma suposta tentativa de golpe ocorrida em janeiro, já que os não-golpeados então poderiam dar “consequências penais” a Filipe, justamente porque não houve golpe nenhum, e estariam perseguindo inocentes dizendo que foram vítimas de um suposto golpe.

Deu pra entender? É, eu também não entendi. Mas calma, dá para piorar.

VEJA TAMBÉM:

Filipe Martins, suspeito de fugir antecipadamente, foi preso pela Polícia Federal, que tratou uma não-viagem aos EUA como se uma viagem aos EUA fosse crime (leia devagar), depois de ter “evaporado” nos EUA

Martins foi preso em… Ponta Grossa. Alguém sabe se essa cidade fica na Pensilvânia ou no Kentucky? Sou meio ruim de geografia do Paraná. Aliás, o Paraná é a capital de New Hampshire? Então alguém agora pode ser preso por viajar aos EUA. Aí é preso em Ponta Grossa. WHAT THE FOCA?, como dizia Sócrates.

Então, se Filipe Martins entrou escondido nos EUA (tão escondido que ninguém o achou), teria entrado ainda mais escondido de volta no Brasil, apenas para… para… bom, para ser preso. Por uma viagem que não fez. Que não seria crime.

Hoje sabemos que a Polícia Federal e a Procuradoria Geral da República já tinham dados da geolocalização de Filipe Martins, sabendo, portanto, que ele estava no Brasil o tempo todo, meses antes de mandá-lo prender. Mas isto parece que Fábio Shor “esqueceu-se” de comentar. Falhas na memória, é a idade.

Mas não é tudo. Quatro meses depois de já estar preso (pela viagem, que não ocorreu), aparece magicamente um registro de entrada de Filipe Martins em Orlando. O registro, posteriormente, também foi considerado fraudulento pelo governo americano. O FBI investiga o caso.

Então, qual a explicação de Fábio Shor para todas essas contradições — digo, fatos curiosos — acima? Simples. De que Filipe Martins forjou uma viagem aos EUA antes do 8 de janeiro, manipulando duas vezes o sistema migratório menos poroso do mundo para confundir a gloriosa Polícia Federal. Posteriormente, iria investigar algo ocorrido depois da viagem, pois assim conseguiu ser preso por 6 meses, passar 11 dias numa solitária, ser torturado e estar proibido de usar redes sociais, de se comunicar, estar de tornozeleira eletrônica e sendo monitorado todo santo dia, para então poder dizer que está vivendo em uma ditadura.

Não dá para negar que Fábio Shor tem um ponto em uma dessas alegações.

Todos os criminosos do mundo tentam esconder seus crimes. Filipe Martins seria o primeiro do cosmo a esconder que não cometeu crime nenhum, para então confundir a PF, que o prendeu, dando motivos para a “narrativa” de que existe perseguição jurídica no Brasil (não dá para entender, né?), fazendo com que a Polícia Federal, prendendo um inocente, tenha agora de prendê-lo de novo e investigar outros inocentes porque ficou provado que há uma “organização criminosa” capaz de usar a internet para “espalhar narrativas” de perseguição jurídica no Brasil. Ufa!

A resposta final de Fábio Shor é exigir doravante o monitoramento de todos os jornalistas, influenciadores, comentaristas e (não ache que você vai escapar, leitor) cidadãos que critiquem alguma falha no trabalho da PF e de Shor nesta pitoresca trama. Todos os caminhos levam à monitoração das redes sociais pela PF.

Ainda bem que, assim, a democracia é salva e todo mundo finalmente entende que não podemos dizer que estamos em uma ditadura. Porque não podemos mesmo.

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