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Uma dificuldade de muitos ao fazer análises políticas é que precisamos saber de onde viemos para saber onde estamos e, por fim, para onde vamos. As famosas três perguntas dos mineiros: Doncovim? Noncotô? Prundieuvô? Ou poderíamos — e deveríamos — ampliar o escopo da questão.
Não se tratam exatamente de análises políticas, mas sim de questões públicas. Problemas coletivos. Destinos compartilhados. Vicissitudes que, não necessariamente, vão passar por partidos, eleições, burocratas engomadinhos e tiranetes com vocabulário brega, que não sabem a terceira declinação de latim.
Por isso, para entender a possível queda de Bolsonaro, antes seria preciso compreender como Bolsonaro foi parar lá e como o Brasil passou a ter algo que possa ser chamado de “direita”. Antes ainda de se pensar nas eleições de 2018, quando algo meio amorfo que pode ser chamado de “direita” passou a existir politicamente, deve-se entender o que a direita estava fazendo.
Para tanto, urge entender que, mais do que vivermos em um momento que periga ser “pós-Bolsonaro”, certamente estamos sob os auspícios de uma era pós-Olavo de Carvalho
O professor Olavo de Carvalho, que pensou sozinho em termos conservadores, quando até estar um tiquinho mais a favor do PSDB do que do PT ainda era um palavrão, não tinha pretensões político-partidárias como nesta circunstância atual, na qual o único assunto das redes sociais é um eterno regressus ad infinitum da mesma discussão partidária.
Seu trabalho, em termos exageradamente brutos, era criar uma espécie de cultura conservadora que pudesse rivalizar e, paulatinamente, substituir a dominação esquerdista nos meios que controlam a produção cultural — mormente as faculdades, o jornalismo, as artes e os ambientes altamente intelectualizados.
Muitos perguntam o que é a tal cultura. Falam hoje em “cultura”, citam esvaziadamente os nomes de Gramsci e da Escola de Frankfurt (como se fossem um monobloco), mas entendem com este termo apenas “discutir política partidária em redes sociais”.
Uma fenomenologia cultural é uma empreitada profunda, secular e de revisões constantes. Mas a crítica de Olavo, em termos superficiais, seria a de que a esquerda, depois da Revolução Bolchevique, transformou todos os meios culturais em mecanismos de propagação ideológica revolucionária. No processo, expulsou totalmente o pensamento conservador — ou melhor, qualquer pensamento além da mera repetição propagandística — da discussão intelectual.
Se a direita precisava renascer, depois de décadas soterrada, precisava retomar algum espaço nesses meios de debate. Por isso, Olavo considerava que o primeiro trabalho era formar intelectuais capacitados para conhecer muito bem a esquerda e também um pensamento que nenhum figurão acadêmico conhecesse.
Ora, é fácil perceber que os maiores nomes da academia das últimas décadas, seja no Direito ou na Sociologia, seja um Leonardo Boff ou Leandro Karnal, não conhecem nem o nome de um Eric Voegelin ou Kuehnelt-Leddihn, sendo metafisicamente incapazes de ler duas páginas de Garrigou-Lagrange, Nikolai Berdyaev ou Mário Ferreira dos Santos sem seu cérebro escorrer pelas orelhas.
Um dos grandes problemas é que esse mesmo oceano que separa os gênios dos menininhos comentadores, e que fez os primeiros grandes debates entre a esquerda e a nascente nova direita lá pelos idos de 2016 (quando Trump apareceu com um discurso de renovação conservadora e sacudiu o mundo), acabou sendo um convite tentador para a ruína do próprio, digamos, movimento.
Afinal, “debate” deixou de ser entre grandes ideias. Com a materialização repentina do conservadorismo, com aspas ou não, em matéria político-eleitoral, deixou-se de discutir as ideias conservadoras — digamos, se A Nova Ciência da Política de Voegelin é superior a um livrinho beócio do porte de Como as Democracias Morrem, tão citado por Alexandre de Moraes para justificar suas arbitrariedades — e passou-se unicamente a discutir eleições.
A direita, que estava fazendo pequenos manifestos nas ruas, no MASP, em livrarias (repetindo: L-I-V-R-A-R-I-A-S), reunindo-se em pequenos workshops e palestras para discutir e aprender a obra de Olavo de Carvalho e o manancial intelectual aberto por ele nas três décadas anteriores, de repente discutia… eleições.
Eleições não são mais discutidas pela superioridade qualitativa, e sim pela superioridade quantitativa. O que René Guénon (um gênio pilantra e mistificador) chamava corretamente de “reino da quantidade”, em linguagem pitagórica. Não se trata mais de um cérebro saber melhor, mas de um influencer comentando notícias e influenciando mais pessoas.
Da formação intelectual ao marketing
Além da queda intelectual de uma direita que não durou uma década, ainda tivemos o peso morto de alojar em nossos cérebros tão disputados personalidades variando de Joice Hasselmann e Abraham Weintraub a Mário Frias e Nando Moura. Saem os intelectuais discutindo filosofia, história e literatura nas universidades com professores bambambans, entram aqueles que ganham likes, seguidores e uma legião abobada torrando tempo com os mesmos comentários de sempre, porque atuam como cabos eleitorais 25 horas por dia, 8 dias por semana.
Saem de cena T. S. Eliot, Shakespeare, Dostoievsky e C. S. Lewis; arrombam a porta políticos de gosto duvidoso e influencers toscos, incapazes de ganhar um debate com figuras diminutas como Jones Manoel, Átila Iamarino ou Gabriela Prioli (ou mesmo Jean Wyllys, Felipe Neto ou Anitta, em alguns casos), mas que arregimentam muito da direita por especularem com a commodity mais cara da era digital: a atenção e a retenção. E nada retém mais gente do que falar em eleição o dia inteiro. Até ex-presos pela Lava Jato, pelo mensalão e pelo petrolão perceberam que a direita hoje pode lhes dar uma base para suas negociatas seguirem firmes e fortes.
Não é preciso vencer uma discussão sobre Habermas com Vladimir Safatle nem mostrar como Roger Kimball faz picadinho de Foucault contra um Alysson Mascaro: basta falar de eleições. Como se a direita, que defende uma tradição de Platão até Mearsheimer, fosse apenas número.
A disputa, para piorar, foi jogada no colo da esquerda, naquilo que ela sempre foi melhor: convencer as massas pela irracionalidade — e os intelectuais, pelo reducionismo, simplismo e generalizações imprecisas e caricaturais. Se toda a preocupação universal são eleições — e numa ditadura! — como fazê-lo se só falam para si próprios em redes sociais e canais nos quais a atenção é retida apenas pregando para convertidos?
A verdade é que Olavo de Carvalho, com o perdão do clichê, estava certo de novo: a eleição de Bolsonaro foi só atacar a cabeça de uma hidra, que faz três cabeças aparecerem no lugar
Sem um movimento consistente, sem a construção intelectual e artística de cultura com diálogo com a tradição, sem a demonstração pontual da superioridade moral e de raciocínio dos conservadores, a direita foi apenas um movimento eleitoral passageiro, que se perdeu em suas alianças e burocracias — tal como foram Maluf, Collor e outros seres dos quais ninguém gosta de se lembrar, muito menos de se associar.
Infelizmente, o projeto de longo prazo — que nada tem a ver com algo fascistóide como “projeto de país” — de formar intelectuais e pensadores, iniciado por Olavo de Carvalho, começou a definhar muito antes de Bolsonaro perder uma eleição e ser preso. Felizmente, ainda é um projeto de longo prazo. E ainda pode ser retomado por umas poucas pessoas que saibam viver sem o monotematismo oco das eleições.




