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Um espectro ronda o Brasil: o espectro do Zé-Droguinha. Não se trata apenas do usuário de drogas, do maconheiro universitário, do ouvinte de Planet Hemp legalize-já. Trata-se do profissional do crime, o traficante sem camisa e fuzil à mostra, o dominador opressivo que derrete entidades de direitos humanos e é incensado como bastião da reforma social pela Rede Globo e afins. O homem que manda nos morros, mas sociólogos chamam de “vítima”, porque a desigualdade social colocou um fuzil de R$ 50 mil em suas mãos traficado da al-Qaeda por uma rede internacional de tráfico de drogas, armas e escravas sexuais. Aquele ser que, nas priscas eras em que podíamos dar nomes corretos às coisas, era chamado simplesmente de bandido.
Bons tempos que não voltam mais.
Se podemos dizer uma verdade sem que ditadores venham nos censurar, a verdade é que a maior parte do problema do Comando Vermelho, do PCC, do tráfico de drogas em geral, é o quanto o criminoso armado até os dentes não foi apenas normalizado, mas foi mesmo glorificado.
O píncaro das celebridades é ser reconhecido pela Rede Globo. A emissora da família Marinho está preocupada em elevar à categoria heroica o pai de família suando pelo pão de cada dia? Alguma moral coletiva nas novelas da emissora - são “de graça” porque são o maior controle social do Ocidente - é atribuída aos honestos, aos religiosos, aos policiais, aos “normais”?
Não se trata apenas do usuário de drogas, do maconheiro universitário. Trata-se do profissional do crime
Luciano Huck, o segundo porta-voz oficial da emissora (e, poderíamos dizer, do regime), incensou os traficantes mortos em confronto com a polícia numa mata, de madrugada. Todos sabem da posição de Huck sobre o desarmamento, todos sabem que Huck sobe o morro com escolta do BOPE, armados até os dentes. Onde está o lamento da emissora, pausa dramática na programação, talvez a chamada com a famigerada musiquinha do Plantão, quando Rafaela Ferreira, de apenas 15 anos, foi assassinada com um tiro no peito por se recusar a namorar um chefe do tráfico? E Sther Barroso, 22, que se recusou a sair de um baile funk com um chefe do tráfico? Teve o rosto desfigurado de tão espancada, tendo seu corpo sido jogado diante de sua casa por um “segurança” do traficante Coronel, em agosto. O mesmo destino de Thaís Guimarães da Silva, de 21 anos, que também se recusou a namorar um chefão do tráfico em Belford Roxo.
Parece haver um padrão entre chefões do tráfico. Foi uma reunião destes chefões que a polícia interceptou na mata, levando mais de 120 deles para a vala. Nem mesmo a típica conversinha de “morreram inocentes entre os traficantes” colou dessa vez. Mesmo assim, a Rede Globo lamentou - repetindo: LA-MEN-TOU - a operação. Guilherme Boulos pediu um minuto de silêncio pelos assassinos quando assumiu como ministro da Secretaria-Geral da Presidência. Os chargistas da Folha de S.Paulo envidaram seus melhores esforços “artísticos” para mostrar que a popularidade do governador Cláudio Castro aumentou sobre um monte de cadáveres. Pela lógica, parece que precisamos de mais. Quantas meninas obrigadas a serem escravas sexuais destes anjinhos puderam respirar aliviadas?
Merecer um minuto de silêncio do governo ou um “editorial falado” da Rede Globo, deveria ser para heróis. Nem é preciso daquela típica jornada do herói, com uma história de superação, desafios, chamados para a desistência, encetada por uma superação dos desafios que fez com que alguém tenha abraçado o tráfico de drogas por falta de opções e para subir na vida. Quem merece tais homenagens são os vencedores esquecidos. Aqueles que devem ser exemplos, arquétipos, espelhos sociais, modelos de conduta.
Os heróis cantados na epopeia brasileira não são Aquiles e Odisseu, Enéas e Vasco da Gama, Rolando ou o coitado do Tom Sawyer - pessoas imperfeitas, mas inspiradoras. O modelo heroico brasileiro não é nem mesmo a professora Heley de Abreu, que morreu protegendo pelo menos 25 crianças de um incêndio criminoso em um atentado terrorista. Menos ainda um policial. O arquétipo heroico nacional, cantando em funks na programação matinal e louvado como justiceiro social, é o traficante. Aquele que mata meninas que se recusam a serem suas namoradas. Aqueles que matam pais de família porque têm um primo policial. Aquele que manda fechar o comércio local porque não aceita que alguém ganhe o pão de cada dia quando um traficante morre. Aquele que sequestra e desfere dúzias de tiros de fuzil em qualquer carro que entre em seu morro sem querer. Este é o herói foucaultiano. É um oprimido pelo sistema. É alguém a merecer a nossa glória de joelhos. É o modelo de conduta a ser ensinado às crianças.
Prestemos um minuto de silêncio pelo nosso futuro.




