Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Francisco Escorsim

Francisco Escorsim

Rio de Janeiro

A testemunha dos mortos no Complexo do Alemão

operação policial rio de janeiro
Moradores retiram corpos de mortos durante operação policial no Rio de Janeiro. (Foto: André Coelho/EFE)

Ouça este conteúdo

Sim, vi tudo. Os tiros começaram cedo. De tão rotineiros, aprendemos a não contar os disparos, apenas esperar acabar para o tempo da vida voltar. Não naquele dia. Demorei a perceber como continuavam e continuavam. Constantes, por horas.

Vi os ônibus travando as ruas. Vi os drones lançando explosivos. Vi o caos. Só não vi o medo, escondido dentro dos barracos. Homens correndo por minhas encostas. Perseguidos, perseguidores. Traficantes fugindo. Policiais perseguindo. Corpos caindo, ficando, tornando-se parte de mim.

É perturbador me chamar Serra da Misericórdia. Não sei quem me nomeou assim. Provavelmente um padre, talvez uma freira. Misericórdia... Como se eu pudesse oferecê-la, como se eu a abrigasse. Mas apenas testemunho a sua ausência.

Lembro quando construíram os engenhos de açúcar. Por causa deles, vários dos bairros que carrego em minhas costas surgiram. Engenho da Rainha, Engenho de Dentro, Engenho Novo, cada nome era uma esperança de quem chegava, cada propriedade uma promessa de riqueza.

Talvez a misericórdia comece sendo chorona. Vai ver sou uma promessa ainda não cumprida

Depois criaram outros. Cascadura, Pilares, Vigário Geral, Olaria. Gosto do nome Bonsucesso, talvez pela distância da realidade, como o meu. Tem também o Abolição, como se o nome significasse liberdade. Enfim, 27 bairros ao todo.

Vieram os imigrantes. Vieram os que fugiam da seca do sertão. Vieram os que buscavam trabalho nas estações de trem, na Central do Brasil, na Leopoldina. Construíram casas. Plantaram raízes. Nomearam seus filhos. Recebi todos, guardo todos.

Os bairros cresceram. As casas subiram pelos meus morros, amontoadas, precárias. Eram favelas demais, confundindo-se, formando um labirinto. E então inventaram outro nome. Complexo do Alemão. A guerra foi se instalando, mais veloz do que o sumiço de minhas matas.

Quando as coisas se aquietaram naquele dia e a noite chegou, os moradores vieram buscar os corpos largados numa das poucas matas que sobraram, a “Mata da Pedreira”. Dezenas, talvez centenas. A resignação era maior do que o lamento. Havia o cheiro também, daqueles que impregnam na alma, que não sai nunca mais.

VEJA TAMBÉM:

Ao carregarem os mortos, vi homens e mulheres comuns, deserdados pelo Estado, reféns do tráfico, recolhendo os filhos perdidos para o crime. Eram ajudados por vizinhos, praticando o que eu não conseguia oferecer. Então era isso a misericórdia.

É perturbador me identificarem assim. É como chamar a seca de chuva. Talvez devessem me devolver o nome original: Serra Chorona. Minhas nascentes eram muitas e brotavam como lágrimas que nunca acabam, daí o nome. Algumas ainda existem, mas os rios se tornaram valões de esgoto. Como os moleques engolidos pelo tráfico.

Mas dizem que nome é destino. Talvez a misericórdia comece sendo chorona. Vai ver sou uma promessa ainda não cumprida. Até lá, sigo observando e recolhendo os desperdícios de vida, de esperança. Ao menos, naquela noite, por algumas horas, não fui um nome vazio.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.